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b) O sentido espiritual ou místico

3. O RÍGENES E O C ÂNTICO DOS C ÂNTICOS

3.3. A S H OMILIAS SOBRE O C ÂNTICO DOS C ÂNTICOS

3.3.1. O texto e a sua história

As Homilias sobre o Cântico dos Cânticos inscrevem-se no quadro das pregações de Orígenes em Cesareia da Palestina. De facto, depois dos problemas que teve sucessivamente com Demétrio e Héraclas, bispos de Alexandria, e a sua ordenação sacerdotal pelos bispos da Palestina347, estabeleceu-se em Cesareia, provavelmente a partir dos anos 235-240. Nesta sua

nova cidade, pregou e ensinou abundantemente, testemunhando a sua erudição e a sua solicitude pastoral, marcadas por um ardente desejo de levar os crentes à perfeição de vida.

Ainda que seja difícil apresentar uma data exata em que foram pronunciadas, problema comum a todas as suas Homilias, pensa-se, porém, que foi por volta do ano 244348. O texto não

346 Cf. SIMONETTI, M., «Cantico dei Cantici», in DO, 61. 347 Cf. EUSÉBIO DE CESAREIA, HE VI, 8, 4-5 (96).

348 Perante a dúvida que existe sobre a verdade do testemunho de Eusébio que colocaria a escrita de todas as Homilias de Orígenes a partir do ano 245 [cf. HE VI, 36, 1 (138)], alguns autores colocam a sua redação antes do ano 244 (cf. ROUSSEAU, O., Introduction», 9) e outros situam-na no conjunto das obras compostas em Cesareia nos anos 244-254 (cf. HARL, M., Origène et la fonction révélatrice du Verbe incarné, PatSor 2, Seuil,

81 nos chegou na sua língua original, mas na versão latina, realizada com fidelidade ao original grego por São Jerónimo, por volta do ano 383349 e dedicada ao Papa Dâmaso350. Esta versão

latina, mais conhecida na posteridade latina do que o Comentário, traduzido por Rufino, no fim da sua vida por volta do ano 410351, foi na Idade de Média muito copiada e abundaram os

manuscritos, realizados em grandes mosteiros e bibliotecas. Modernamente, dispomos de cerca de quarenta edições352. A edição das Sources Chrétiennes provém da edição crítica de

Baehrens353. Existe ainda uma edição crítica do texto latino realizada por Manlio Simonetti

(1998)354, mas que parece não modificar substancialmente a clássica edição alemã de Baehrens

(1925), dado que a publicação da Sources Chrétiennes (2007), que lhe é posterior, não a considera.

As Homilias, depois de «uma breve introdução» que sintetiza algumas temáticas apresentadas no Prólogo do Comentário355, interpretam de forma continuada a seguinte perícope: Ct 1, 1 – 2, 14. Pronunciadas perante uma assembleia heterogénea, distinta daquela mais homogénea da Escola, as duas Homilias retraçam o mapa de um itinerário espiritual em que todos, cada qual segundo o seu estado356, podem ter a esperança de dialogar com o Esposo

como a Esposa deste epitalâmio. O tema principal, subjacente a esta esperança, é o da adesão progressiva ao amor espiritual, cuja máxima expressão é a união mística com o Esposo357. Ora,

para esta caminhada ao mesmo tempo hermenêutica e espiritual, toda a Escritura é convocada

349 Cf. ROUSSEAU, O., «Introduction», 10. 350 Cf. ORÍGENES, HCt Prol. (62).

351 Cf. CROUZEL, H., «Introduction», 13. 352 Cf. ROUSSEAU, O., «Introduction», 47-55.

353 Cf. ROUSSEAU, O., «Introduction», 8. A edição de Baehrens das Homilias encontra-se em GCS, Vol. 33, Leipzig, 1925.

354 Cf. ORÍGENES, Omelie sul Cántico del Cantici, a cura di Manlio SIMONETTI, Fondazione Lorenzo Valla: Amoldo Mondadori Editore, Milão, 1998.

355 Cf. SIMONETTI, M., «Cantico dei Cantici», 61.

356 Orígenes mostra bem, com varias afirmações, que está perante uma assembleia muito diversificada, composta de catecúmenos [HCt II, 7 (126)], os recém-batizados alimentados ainda pelo leite [HCt I, 1 (68)] e os mais avançados que podem correr o risco de cair na infidelidade [HCt I, 9 (98)].

82 como guia importante, que em harmonia com a perícope interpretada, ajuda a penetrar nos seus mistérios, iluminando o caminho desta ascensão mística para Deus358.

Sem ser a mais importante das Homilias do alexandrino, o nosso texto é talvez o que melhor nos apresenta o drama da vida espiritual, feita de combate, mas também de canto359, dos

“abraços” do Esposo, mas também da sua “ausência”360. O itinerário espiritual que ele traça,

longe de ser uma realidade intimista e individualista, insere-se plenamente na própria experiência esponsal da Igreja. Por isso, apresentando-nos uma eclesiologia e uma teologia mística361, as Homilias põem-nos a caminho, como membros da Igreja peregrina, movidos não

só pelos “perfumes” e pela beleza do Esposo, mas também pela tensão escatológica da visão beatífica. Este caminho de ascensão espiritual passa por uma participação nos mistérios de Cristo, mormente na sua Encarnação (HCt I, 2), Paixão, Morte e Ressurreição (HCt I, 10) e enriquece-se pela descoberta progressiva dos epínoia de Cristo, que nos levam do véu da sua Encarnação até à sua intimidade profunda de Verbo divino. Para tal, Orígenes não deixa de encorajar os principiantes, chamar à penitência os que ainda não «estão nas boas graças da Esposa» e à vigilância os “proficientes”, que correm o risco de andar errantes e assim passar do rebanho das ovelhas ao dos bodes (HCt I, 9). Em tudo, ele exorta sobretudo o seu destinatário a ser digno do Esposo a fim de ser “um monte da Igreja”, i.e., “uma alma perfeita” para junto do qual este mais se aproxima e sobre o qual salta como uma gazela (HCt II, 12).

Procurando construir uma identidade cristã, marcada pela perfeição dos costumes e da doutrina, o alexandrino fá-lo a partir de um projeto hermenêutico que melhor se adequa aos seus ouvintes, maioritariamente principiantes: inspirar no seu destinatário «o amor das

358 Lembramo-nos de que na hermenêutica origeniana, como já vinha da tradição judaica, a Escritura forma um conjunto harmónico, onde cada passo deve ser interpretado à luz de outros textos bíblicos. Notamos isso nestas Homilias onde abundam citações bíblicas.

359 Cf. ORÍGENES, HCt I, 1 (66-68). 360 Cf. ORÍGENES, HCt I, 7 (94-96). 361 Cf. ROUSSEAU, O., «Introduction», 39.

83 realidades celestes e o desejo dos bens divinos» como o fez Salomão ao escrever este epitalâmio362.

A dimensão exortativa e persuasiva, própria do género homilético, permite-lhe fazer recurso à retórica para afirmar a excelência do epitalâmio, a partir das analogias e progressão ascendente363, a excelência do Esposo, que a todos atrai pelos seus perfumes e cujo nome ficou

imediatamente conhecido no mundo inteiro. Isto ajuda-o a influenciar positivamente as emoções do seu destinatário364, indo até ao mais profundo da sua afetividade chamada a ser

educada segundo o espírito, para que possa aderir de todo o coração ao Esposo, tal como o fez progressivamente a Esposa, “negra e formosa”365. O ouvinte deve caminhar, imitando o modelo

do que deve ser a sua identidade cristã: a união esponsal Cristo-Igreja, cujos sinais pode já identificar na experiência espiritual do próprio pregador366.

Se toda a Escritura participa harmoniosamente neste concerto hermenêutico, Orígenes não deixa, porém, de fazer sobressair do texto que interpreta uma doutrina espiritual, que juntamente com os seus princípios hermenêuticos e as considerações teológicas sobre os diversos mistérios divinos presentes neste texto, pode enriquecer a praxis da vida cristã e a inteligência dos próprios mistérios.

Assim, o vocabulário do epitalâmio (os beijos, os perfumes, os seios, o nome, o aposento do Esposo, as ovelhas e os bodes…) tal como o seu cenário (aparições do Esposo, o seu repouso, as procuras da Esposa, os vários diálogos entre as personagens…) permitem-lhe apresentar a

362 Cf. ORÍGENES, CCt Prol. 3, 7 (132).

363 Cf. ADAMIK, T., «La rhétorique dans les homélies sur le Cantique des Cantiques d’Origène (HCt I, 1)», in Orig. IX (2009) 3-5.

364 Cf. TORJOSEN, K. J., «Influence of rhetoric on Origen’s Old Testament homilies», 18-20.

365 Cf. ORÍGENES, HCt I, 2 (72): «Todavia, embora oiçamos isto, ainda temos o cheiro fétido dos pecados e vícios…»; HCt I, 6 (88): «Mas se tu não fizeres penitência, acautela-te para que não se diga da tua alma que ela é negra e feia…»; HCt I, 8 (96): «Quem de nós, pensas tu, é digno de chegar até ao meio-dia para ver onde o Esposo apascenta e está deitado ao meio-dia?».

366 Cf. ORÍGENES, HCt I, 3 (78): «Ora, se o Esposo se digna vir também à minha alma, feita Esposa dele, quão formosa deve ela ser para o atrair do céu até si, para o fazer descer à terra, para que venha para junto da amada?»; HCt I, 7 (94): «Muitas vezes, Deus é testemunha, vi que o Esposo se aproximava de mim e estava comigo o quanto possível; de repente, ele foi-se embora e não pude encontrar quem procurava».

84 sua doutrina dos sentidos espirituais, a sua antropologia e vários temas místicos como “a ferida do amor”, “o amor espiritual” e “o conhecimento místico”.

Todas estas componentes concorrem para fazer deste texto um verdadeiro pergaminho da vida espiritual, onde a dimensão subjetiva e coletiva mantêm um equilíbrio367, sustentado

pela mesma finalidade: a perfeita união a Cristo. Assim, o caminho não se faz sozinho, mas com e na Igreja, onde os mais avançados devem estar sempre disponíveis a contribuir ao progresso dos principiantes, até que tenham um contato direto com o Logos divino. Esta contribuição não é unilateral, pois ajudando estes, aqueles mais avançados trabalham também na sua própria fidelidade e progresso368.

Portanto, esta estratificação da vida espiritual não implica uma visão elitista da espiritualidade origeniana, mas afirma, pelo contrário, a sua dimensão comunitária, que vive duma tensão ascético-mística, necessária para que a alma progrida em pureza e integridade, segundo recebeu esta possibilidade de Deus, e tornar-se digna como o seu criador369.

3.3.2. A estrutura

O itinerário espiritual, de que temos vindo a falar, adequa-se à própria estrutura do texto que o ilumina e exprime. De facto, depois do prólogo de São Jerónimo que nos oferece uma pequena ideia sobre a identidade do nosso texto em relação ao Comentário, temos o texto das duas Homilias, que organiza claramente o drama do trecho interpretado em oito cenas370.

367 Cf. ORÍGENES, HCt II, 3 (112): «A Igreja, que fala assim, somos nós que, dos gentios, fomos congregados».

368 Cf. SIMONETTI, M., Origene esegeta, 35-36. 369 Cf. ORÍGENES, Princ. I, 3, 8 (164).

370 ROUSSEAU, O., «Introduction», 40-45: estas oito cenas estão apresentadas claramente nestas páginas e não há necessidade dos as reproduzirmos.

85 Estruturada em dez pontos, a primeira Homilia, depois de uma pequena introdução, interpreta Ct 1, 2-12a. Esta introdução serve-se da analogia e da tradição da escada dos cânticos bíblicos para apresentar a excelência do epitalâmio e o itinerário ascético-espiritual que conduz até ele. Feito isso, apresenta-se as personagens, a sua leitura espiritual e o cenário resumido deste epitalâmio, convidando o ouvinte/leitor a situar-se nele, segundo o seu estado, a fim de poder ser como a Esposa371. A interpretação continuada da referida perícope traça um caminho

que parte do mistério da Encarnação do Verbo, fundamento do progresso espiritual372, até à sua

Paixão e Morte, simbolicamente profetizada no epitalâmio como «repouso» do Rei. A Esposa pode então compreender que, se a penitência e a ascese lhe deram alguma formosura, a sua verdadeira beleza só provém do Esposo, que na sua ressurreição a adornou de ouros e pratas373.

O cenário que dá forma a esta primeira parte do itinerário374 começa com a súplica da

Esposa ao Pai, que decide enviar-lhe o seu Filho, dando-se assim um primeiro encontro entre a Esposa e o Esposo durante a sua oração. A seguir, aquela introduz as suas companheiras que estavam fora e que agora correm atrás do perfume do Esposo, que caminha com a Esposa ao seu lado. O momento central é a introdução da Esposa no aposento do Esposo, que provoca a alegria e os cantos das suas companheiras e a explicação da natureza da Esposa, “negra e formosa”. Habituada até agora à presença do Esposo, vem o momento da sua desaparição que provoca desejos e ativa a sua procura na Esposa. Esta dialoga com a voz do Esposo, que ameaçando-a, convida-a a melhor se conhecer e, a seguir, com doçura, compara-a à sua cavalaria antes de entrar no seu repouso. Esta primeira Homilia encerra-se com uma oração que, falando do que o Esposo fará pela Esposa depois da sua ressurreição, resume qual deve ser o estado da alma de quem está fazendo este itinerário: disponibilidade em deixar agora

371 Cf. ORÍGENES, HCt I, 1 (64-70): esta introdução já delineia um itinerário espiritual, que culminará na união esponsal com Cristo, celebrado neste epitalâmio. Ora, a redução da tradição bíblica dos dez cânticos a um septenário, que recorda a narração da criação, avisa-nos que o projeto hermenêutico que nutre este itinerário é uma «recriação», que o Logos divino, como pedagogo e Mestre por excelência, vai operando na alma do crente. 372 Cf. CASTELLANO, A., «La encarnación como fundamento del progresso en el Commentario al Cantar de los Cantares de Orígenes», in Orig. VII (1999) 510-511.

373 Cf. ORÍGENES, HCt I, 9-10 (98-102). 374 Cf. ROUSSEAU, O., «Introduction», 40-43.

86 ornamentar o «espírito e a inteligência», já não com as consolações dos anjos, mas com “o ouro” do Esposo375.

A segunda Homilia, com uma maior densidade teológica, organiza em treze pontos a interpretação do restante trecho, i.e., Ct 1, 12b – 2, 14. Nesta fase do itinerário, Orígenes começa por afirmar a bondade original de todos os movimentos da alma, introduzindo assim o papel importante do livre arbítrio nas suas orientações quer para o amor espiritual, cujo objeto é a sabedoria e a verdade, quer para o amor carnal, que se focaliza nas coisas menos boas. O crente que faz este itinerário deve, portanto, elevar-se para as realidades divinas, o que lhe vai permitindo descobrir com a Esposa os diversos atributos do Esposo e acolhê-lo «no meio dos seus seios»376. Esta proximidade do Verbo na sua vida embeleza-a e permite que ambos possam

trocar elogios: ela é então convidada, pelo exemplo dos anjos, a «travejar a sua casa» de cedro e cipreste, associando assim firmeza e bom odor. Assim poderá ela atrair do céu o Verbo de Deus, que virá nascer nela, se a achar digna, se não ela permanecerá fora, como os catecúmenos, a ouvir o Esposo dizer-lhe: «introduzi-me»377. Em todo o caso, é preciso ter a caridade ordenada

para que o afeto que se tem pelos nossos parentes não nos impeça de amar a Deus acima de tudo. Só nesta condição é que o Esposo é introduzido na nossa casa e a alma é “ferida de caridade” pelos seus ensinamentos, de tal modo que, sustentada pela sua mão esquerda, possa vir a ser abraçada pela sua mão direita. Por isso, ninguém deve deixar a caridade adormecer na sua alma para poder, ao momento oportuno, ouvir a voz do Esposo, reparar rapidamente na sua vinda e tornar-se “monte da Igreja” sobre o qual ele salta alegremente como uma gazela378.

Quem chegar a este nível que lhe permite discernir os “montes” que pretendem derrubar a “ciência de Deus” poderá então ter o Verbo como guardião dos seus sentidos e assim escapar às armadilhas do diabo e com ele vencer os laços da morte. Depois deste tempo de provação, a

375 Cf. ORÍGENES, HCt I, 10 (102). 376 Cf. ORÍGENES, HCt II, 1-3 (104-116). 377 Cf. ORÍGENES, HCt II, 4-7 (116-128). 378 Cf. ORÍGENES, HCt II, 8-12 (128-142).

87 alma, mais próxima do Esposo, poderá dar os frutos dignos de quem foi salvo e participou na ressurreição do Verbo e ser chamada por ele a contemplar a sua glória “face a face” e a falar com ele direitamente. De facto, o Esposo já poderá dizer a esta alma aperfeiçoada durante este itinerário espiritual: «a tua voz é suave e bela é a tua aparência» (Ct 2, 14), pois foi transfigurada totalmente, na sua afetividade, no mais íntimo do seu ser, pela procura e adesão às realidades divinas379. A oração final que encerra esta segunda Homilia mostra bem que a graça de Deus é

fundamental durante todo este itinerário, pois só ela nos torna dignos do Esposo. Portanto, se bem que a nossa descrição possa levar a pensar num itinerário linear, o próprio conteúdo das

Homilias mostra que se trata de algo mais dinâmico em que o progresso não exclui a vigilância

para não recair nos vícios anteriores tal como não exclui a necessidade de se deixar conduzir pela graça de Deus.