• Nenhum resultado encontrado

b) O sentido espiritual ou místico

SEGUNDA HOMILIA

3. O meu bem-amado é, para mim, um

feixe de Mirra (Ct 1, 13), isto é, “gotas”440. No

Êxodo (Ex 30, 34-35), lemos que, sob a ordem de Deus, foi preparado mirra, resina, cássia e

gálbano para uma composição aromática e

para a unção sacerdotal. Se vires, portanto, o meu Salvador descer até às coisas terrenas e humildes, verás também como, a partir de uma grande virtude e majestade divina, uma

122

441 Orígenes, simbolicamente, apresenta a Encarnação do Verbo como uma gota de mirra que desceu até nós. Se no Êxodo a finalidade do mandato do Senhor acerca da preparação do perfume era para uma unção sacerdotal, analogicamente, a Encarnação de Cristo vem ungir-nos da sua divindade, perfumando a nossa humanidade para que sejamos, pelas nossas boas obras, o bom odor de Cristo em toda a parte, como disse S. Paulo (2 Cor 2, 15), citado por Orígenes na primeira Homilia.

diuina ad nos modica quaedam. stïlla defluxerit. De hac stilla et propheta cecinit dicens: Et erit de stilla populi

huius congregandus congregabitur Iacob (Mq 1, 4). Et sicuti secundum

alium sensum lapis erat praecisus e

monte sine manibus (Dn 2, 34) nostri in

carne Saluatoris aduentus — neque enim totus mons fuit, qui descendit ad terras nec poterat humana fragilitas totius montis magnitudinem capere, sed

lapis ex monte, lapis offensionis, petra scandali (1 Pe 2, 7; Is 8, 14) descendit

in mundum —, sic secundum alium intellectum stilla nuncupatur. Oportebat quippe, ut, quia omnes gentes in stillam

situlae reputatae sunt (Is 40, 15), is qui

pro omnium salute factus est omnia, etiam stilla ad eas fieret liberandas. Quid enim pro nostra salute non factus est? Nos inanes et ille exinaniuit semet

ipsum formam serui accipiens (Fil 2, 7)

. Nos populus stultus et non sapiens, et ille factas est stultitia praedicationis (1 Cor 1, 21), ut fatuum Dei sapientius

fieret hominibus. Nos infirmi, infirmum Dei fortius hominibus factum est (1 Cor

1, 25). Quia igitur uniuersae gentes ut

stilla situlae et ut momentum staterae reputatae sunt (Is 40, 15), idcirco factus

est stilla, ut per eum a uestimentis

pequena gota se escapou até nós. Desta gota, o profeta cantou, dizendo: e duma gota deste

povo congregar-se-á Jacob, que deve ser reunido (Miq 2, 11-12). E, do mesmo modo

que, num outro sentido, a Encarnação do nosso

Salvador era uma pedra retalhada do monte sem intervenção das mãos – de facto, não foi o monte todo que desceu à terra e nem a

fragilidade humana podia conter toda a grandeza do monte, mas, apenas uma pedra do

monte, uma pedra de tropeço, uma pedra de escândalo (1 P 2, 7) desceu ao mundo – assim

também, segundo um outro entendimento, ela é chamada uma gota441. Na verdade, porque

todas as nações foram consideradas como uma gota no balde (Is 40, 15), era necessário que

aquele que, pela salvação de todos, se fez tudo, se fizesse também gota para as libertar. De facto, o que é que ele não se fez pela nossa salvação? Nós somos nada e ele aniquilou-se a

si próprio, tomando sobre si a forma de servo

(Fil 2, 7). Somos um povo louco e insensato e ele tornou-se a loucura da pregação (1 Cor 1, 21), para que a insensatez de Deus fosse mais

sábia do que os homens. Somos fracos, mas a fraqueza de Deus tornou-se mais forte do que os homens (1 Cor 1, 25). Visto que todas as nações foram consideras como uma gota no balde e como o peso que faz pender a balança

(Is 40, 15), ele fez-se gota, para que, por ele, o odor da gota se exale das nossas “vestes”,

123

442 A palavra fratuelis usada aqui na sua polissemia pode significar bem-amado, como temos vindo a traduzir ou, como parece mais lógico neste caso de relação estabelecida entre Cristo, a Igreja e a Sinagoga, pode significar sobrinho. De facto, Cristo, o nosso Salvador, é filho da Sinagoga e Orígenes não nega, na sua eclesiologia aqui apresentada, esta inserção do Verbo, pela sua Encarnação na história de Israel, prefiguração da Igreja, vinda da gentilidade.

443 Temos porventura uma alusão à interpretação alegórica que faz S. Paulo (Gl 4, 21-31) dos dois filhos de Abraão: a Sinagoga identificada na Jerusalém atual e terrestre é filha de Abraão pela escrava Agar enquanto a Igreja, nossa mãe, a Jerusalém do alto, é filha gerada pela mulher livre, Sara.

nostris odor stillae, procederet iuxta illud: Myrrha et stilla et casia a

uestimentis tuis a domibus elephantinis, ex quibus laetificauerunt te filiae regum honore tuo (Sl 44, 9-10), quae in

quadragésimo quarto psalmo dicuntur ad sponsam.

Fasciculus stillae fratruelis meus mihi (Ct 1, 13). Considerernus, quid sibi

et fratruelis nomen uelit. Ecclesia, quae haec loquitur, nos sumus de gentibus congregati; Saluator noster sororis eius filius est, id est synagogae; duae quippe sorores sunt, ecclesia et synagoga. Saluator ergo, ut diximus, filius synagogae sororis, uir ecclesiae, sponsus ecclesiae, fratruelis est sponsae suae.

Fasciculus stillae fratruelis meus mihi; in medio uberum meorum commorabitur (Ct 1, 13). Quis ita beatus

est, ut habeat hospitem in principali cordis, in medio uberum, in pectore suo sermonem Dei? Tale est quippe, quod canitur: In medio uberum meorum

commorabitur; si non fuerint fractae mammae tuae (Ez 23, 3), in medio

earum habitabit sermo diuinus. Decebat in carmine nuptiali mammas potius

conforme estas palavras: a mirra, a gota e a

cássia exalam das tuas vestes, das casas de marfim, com que as filhas do rei te alegraram pela tua honra (Sl 44, 9-10), como é dito à

Esposa no salmo quarenta e quatro.

O meu bem-amado (sobrinho) é, para mim, um feixe de mirra (Ct 1, 13)442.

Consideremos o que significa para ela o nome

sobrinho. A Igreja, que fala assim, somos nós

que, a partir dos gentios, fomos congregados; o nosso Salvador é filho da irmã deles, isto é, da Sinagoga; com efeito, elas são duas irmãs, a Igreja e a Sinagoga443. Portanto, o Salvador,

como dissemos, é filho da irmã-sinagoga, marido da Igreja, Esposo da Igreja, sobrinho da sua Esposa.

O meu bem-amado é, para mim, um feixe de mirra; Ele demorar-se-á no meio dos meus seios (Ct 1, 13). Quem é assim tão feliz, que

tenha por hóspede, na parte principal do coração, no meio dos seios, no seu peito, o Verbo de Deus? Tal é, de facto, o que se canta:

se não forem descaídas as tuas mamas (Ez 23,

3), no meio delas demorar-se-á o Verbo de Deus. Era necessário que neste cântico nupcial se falasse antes de mamas que de peito. E é evidente saber por que razão é que, para a

124

444 A diferenciação de vocabulário usado aqui por Orígenes, ubera e mammae serve-lhe para traduzir dois estados bem distintos, sobretudo no contexto espiritual de relação com o Esposo, o estado da virgem, que acolhe o Verbo no meio dos seus seios (ubera) e o estado da prostituta, que se deixou levar pela idolatria, aqui insinuada pelo Egipto, e tem as mamas (mammae), cobertas de rugas.

445 A expressão Botrus cypri é diversamente traduzida: a versão da SC 37b tradu-la por “grappe de Troène” e a Bíblia de Jerusalém por “cacho de cipro”. A palavra «cipro» não estando dicionarizado em Português como planta, optamos por seguir a versão francesa (SC 37b), traduzindo-a por «cacho de alfena», dado que o alfeneiro era um arbusto odorífero, sobre o qual a vinha enlaçava-se e que, na época da sua florescência, tinha cachos de flores brancas. Orígenes, no Comentário [II, 11, 1-8 (456-458)], é o primeiro a reconhecer a ambiguidade desta expressão. De facto, diz ele, Cypri pode referir-se à «videira em flor» ou a «um arbusto que produz também frutos sob a forma de flores», que identificamos com a alfena. A sua interpretação parece considerar as duas alternativas, ainda que manifesta uma preferência pela primeira, que traduziria um progresso lógico da flor (Nardo), ao perfume (Mirra) e deste ao fruto (cacho de cipro) em relação à segunda que manifestaria o poder do Verbo que aquece as almas na fé e na Caridade, sobretudo nos momentos de grandes provações [II, 11, 9-11 (460)]. Nas Homilias [II, 3 (114)], ainda que estas duas opções não estejam ausentes, parece-nos que dá mais ênfase à segunda, quando imediatamente recorre à etimologia de Engadi, como o faz na referente interpretação no

Comentário. Ora, tendo notícias da existência das videiras de Chipre, cujas uvas eram de muito boa qualidade e

que Salomão teria transplantado algumas destas videiras para Israel, dado também a referência que faz Orígenes, no parágrafo seguinte, às vinhas de Engadi e às experiência de transplante que tem o Esposo, poder-se-ia traduzir esta expressão por «cacho das uvas de Chipre», dando aqui mais relevância ao primeiro sentido de fruto consagrado no Comentário.

446 A Alfena (cyprus) em grego diz-se κύπρος e a florescência diz-se κυπρισμός. Orígenes terá querido aproveitar a etimologia destas palavras em relação com Sermo (λόγος) e initium (ἀρχή), lembrando Jo 1, 1 (no

appellare quam pectus. Et perspicuum est, cur ad expositionem eius rei, quae dicit: In medio uberum meorum

commorabitur, sit assumptum: Si non fractae fuerint mammae tuae, in medio uberum tuorum commorabitur Sermo diuinus. Vnde dixi: Si non fractae fuerint mammae tuae? De Ezechiel (Ez

23, 3). In eo quippe loco, ubi Hierusalem dominica uoce corripitur, inter cetera dicitur ad earn: In Aegypto

fractae sunt mammae tuae. Castarum ubera non franguntur sed meretricum mammae laxis pellibus irrugantur.

Pudicarum erecta sunt ubera et uirginali rubore tumentia. Suscipiunt sermonem sponsum et dicunt: In medio uberum

meorum commorabitur.

Botrus cypri fratruelis meus mihi

(Ct 1, 14). Initium est sermonis in germine et initium χυπρισμοῦ id est

narração disto, que é descrito: Ele demorar-se-

á no meio dos meus seios, foi escolhida a

seguinte frase: se as tuas mamas não forem

descaídas, no meio dos teus seios demorar-se- á o Verbo de Deus. Donde provêm as palavras

que eu disse: se as tuas mamas não forem

descaídas? De Ezequiel (Ez 23, 3). Naquele

passo, de facto, onde Jerusalém é censurada pela voz de Deus, entre outras coisas, é-lhe dito: no Egipto, as tuas mamas foram

descaídas. Os seios das mulheres castas não são descaídos, mas as mamas das prostitutas

são cobertas de rugas numa pele relaxada444.

Os seios das mulheres púdicas são eretos e estão intumescidos pelo rubor virginal. São estas que recebem o Verbo de Deus e dizem:

Ele demorar-se-á no meio dos meus seios. O meu bem-amado é, para mim, um cacho de alfena445 (Ct 1, 14). Aqui está em

125

princípio era o Verbo), para falar da florescência do Verbo na alma. Sabemos também que os cachos de alfena, com flores tão brancas e odoríferas eram usadas na Síria, porventura em contexto nupcial, pelas esposas que colocavam-na no meio dos seus seios, concentrando aí o seu perfume. Será talvez por esta razão que o alexandrino reserva esta expressão «Botrus cypri» à Esposa. (ver nota 1 da página 114 em SC 37b).

447 Depois de concluir que só as mulheres púdicas podem receber o Verbo de Deus nos seus seios, é provável que Orígenes tenha querido pôr aqui juntos a palavra Sermo (λόγος) e initium (ἀρχή) para significar o princípio da florescência do Verbo na alma, como a sua consequência lógica. Na nota 1 da página 114 em SC 37b, Olivier ROUSSEAU coloca esta hipótese para dar inteligibilidade na sua tradução francesa a este fragmento latino um pouco confuso para nós.

floritionis, in Verbo unde ait: Botrus cypri — id est floritionis — fratruelis

meus mihi. Non omnibus est botrus cypri, sed his, qui eius flore sunt digni.

Aliis uua uaria est; huic soli, quae et

nigra est et formosa, in floris decore se

praebet. Botrus cypri fratruelis meus

mihi. Non simpliciter ait: Botrus cypri fratruelis meus, sed cum additamento mihi, ut doceret non omnibus eum esse botrum cypri.

Videamus autem et in quibus regionibus botrus iste sit sponsae. In

uineis Engaddi (Ct 1, 14). Quod

interpretatur oculus tentationis. In uineis igitur oculi tentationis botrus cypri

fratruelis meus mihi. Tentationis oculus

in praesenti est, siquidem in tentatione moramur, hoc mundo, et tentatio est vita

hominis super terram (Jb 7, 1). Dum in

hac luce uersamur, in uineis sumus

Engaddi; si autem meruerimus postea

transplantari, a nostro agricola transferemur. Nee dubites quia possis de

Engaddi uineis ad loca meliora

transferri; agricola noster ad

κυπρισμοῦ, isto é, da florescência no Verbo447,

donde se diz: o meu bem-amado é, para mim,

um cacho de alfena, isto é, de florescência. Ele

não é um cacho de alfena para todos, mas para aqueles que são dignos da sua flor. Para os outros, existe outro cacho; para ela só que é

negra e formosa, Ele apresenta-se na beleza da

flor, que é negra e formosa. O meu bem-amado

é, para mim, um cacho de alfena. Ela não diz

simplesmente: o meu bem-amado é um cacho

de alfena, mas com um acrescento: para mim,

a fim de nos ensinar que Ele não é um cacho

de alfena para todos.

Ora, vejamos também em que regiões é que se encontra este cacho da Esposa. Nas

vinhas de Engadi (Ct 1, 14), o que se traduz

por “olho da prova”. É, portanto, nas vinhas do “olho da prova” que o meu bem-amado é, para

mim, um cacho de alfena. O “olho da prova” é

no presente, dado que permanecemos ainda na

prova, neste mundo, e que a vida do homem na terra é uma prova (Jb 7, 1). Enquanto vivemos

nesta luz, estamos nas vinhas de Engadi. Mas se, em seguida, merecermos ser transplantados, seremos transferidos pelo nosso agricultor. Portanto, nunca duvides que podes ser transferidos das vinhas de Engadi para lugares melhores. O nosso agricultor já

126

transferendam uineam (Jo 15, 1) crebra

meditatione iam calluit. Vineam ex

Aegypto transtulisti, eiecisti gentes et plantasti earn. Operuit montes umbra eius, et arbusta eius cedros Dei (Sl 79,

9-10). Et haec quidem, quae exposuimus, locuta sit sponsa de sponso significans amorem suum et sponsi uenientis hospitium, quomodo in medio

uberum et sui cordis arcano sponsus

ueniens commoretur.