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b) O sentido espiritual ou místico

SEGUNDA HOMILIA

8. Ordenai em mim a caridade (Ct 2, 4).

Ele falou honestamente: ordenai. De facto, a caridade de muitas pessoas é desordenada; o que devem amar em primeiro lugar, amam-no em segundo; o que devem amar em segundo, amam-no em primeiro e aquilo que convém amar em quarto lugar, amam-no em terceiro, e de novo o terceiro em quarto e assim, a ordem da caridade é subvertida em muitas pessoas. Mas, a caridade dos santos é, na verdade,

ordenada. Quero percorrer alguns exemplos

para dar a compreender isto que foi dito:

ordenai em mim a caridade.

A Palavra de Deus quer que tu ames o teu pai, o teu filho, a tua filha; a Palavra de Deus

135 diuinus diligere Christum nec dicit tibi,

ne diligas liberos, ne parentibus caritate iungaris. Sed quid tibi dicit? Ne inordinatam habeas caritatem, ne primum patrem et matrem, deinde me

diligas, ne filii et filiae plus quam mei caritate tenearis. Qui amat patrem et matrem super me, non est me dignus; qui amat filium aut filiam super me, non est me dignus (Mt 10, 37). Recole

conscientiam tuam de patris, matris, fratris affectu, considera qualem circa sermonem Dei et Iesu habeas caritatem; statim deprehendes magis te filium et

filiam diligere quam Verbum, magis te

parentes amare quam Christum. Quis putas ita profecit e nobis, ut praecipuam et primam inter omnes sermonis Dei habeat caritatem, qui in secundo loco liberos ponat? Iuxta hune modum ama et uxorem tuam. Nullus quippe

aliquando suam carnem odio habuit (Ef

5, 29), sed amat ut carnem; erunt inquit

duo non in unum spiritum, sed erunt duo in carnem unam (Ef 5, 31). Ama et

Deum, sed ama ilium, non ut carnem et

sanguinem, sed ut spiritum; qui enim adhaeret Domino, unus spiritus est (1

Cor 6, 17). Igitur ordinata est caritas in perfectis. Vt autem post Deum etiam inter nos ordo ponatur, primum mandatum est, ut diligamus parentes, secundum ut filios, tertium ut domesticos nostros. Si autem filius

quer que tu ames a Cristo e não te diz: não

ames os teus filhos, não estejas ligado aos pais

pela caridade. Mas, o que te diz ela? Não tenhas a caridade desordenada, não ames primeiro o teu pai e a tua mãe e a mim depois, nem estejas mais ligado pela caridade aos teus filhos e às tuas filhas do que a mim. Quem ama

pai e mãe mais do que a mim, não é digno de mim; quem ama filho e filha mais do que eu, não é digno de mim (Mt 10, 37). Retoma

novamente na tua consciência o afeto que tens

pelo teu pai, pela tua mãe, pelo teu irmão;

examina cuidadosamente de que natureza é a tua caridade no que se refere à Palavra de Deus e Jesus. Imediatamente, reconhecerás que amas o teu filho e a tua filha mais do que ao Verbo, que amas os teus pais mais do que a Cristo. Quem de nós, pensas tu, progrediu de tal modo que tenha, como principal e primeira caridade entre todas, a caridade pelo Verbo de Deus e ponha em segundo lugar os seus filhos? Assim, ama também a tua mulher. De facto,

ninguém teve, um dia, a sua carne em ódio (Ef

5, 29), mas ama-a como a sua carne; diz-se que

serão dois, não num só espírito, mas, serão dois em uma só carne (Ef 5, 31). Ama a Deus

também, mas ama-o, não como sangue e

carne, mas como espírito. Quem, na verdade, adere ao Senhor, é um só espírito com ele (1

Cor 6, 17). A caridade é então ordenada nos perfeitos. Mas, a fim de que, depois de Deus, se ponha ordem entre nós, o primeiro mandamento é que amemos os nossos pais, o segundo, que amemos os nossos filhos, o

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458 Este princípio hermenêutico vai bem ao encontro da ideia segundo a qual a Palavra destina-se ao homem todo e tem por finalidade a sua integral salvação [cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 4 (312)]. Seria, portanto, uma contradição afirmar a inspiração divina da Escritura e aceitar que ela possa ser desordenada e nos ordenar coisas impossíveis.

malus est et domesticus bonus, domesticus in caritate filii collocetur. Et ita fiet, ut sanctorum ordinata sit

caritas. Magister quoque noster et

Dominus in Euangelio praecepta de

caritate constituens ad unius cuiusque

dilectionem proprium aliquid apposuit et dédit intelligentiam ordinis his qui possunt Scripturam audire dicentem:

Ordinate in me caritatem. Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo, et ex tota anima tua, et ex tota uirtute tua, et ex tota mente tua. Diliges proximum tuum sicut te ipsum (Mt 22,

37-39). Non ait: Deum ut temet ipsum, proximum ex toto corde, ex tota anima,

ex tota uirtute, ex tota mente. Rursus Diligite inquit inimicos uestros (Mt 5,

44) et non apposuit ex toto corde. Non est inordinatus sermo diuinus nec impossibilia praecipit nec dicit: Diligite

inimicos uestros ut uosmet ipsos, sed

tantum: Diligite inimicos uestros. Sufficit eis quod eos diligimus et odio non habemus; proximum vero ut temet

ipsum, porro Deum ex toto corde, et ex tota anima, et ex tota mente, et ex tota uirtute. Si haec intellexeris et intellecta

compleueris, fecisti quod sponsi sermone praecipitur: Introducite me in

domum uini, ordinate in me caritatem.

terceiro, os nossos servidores. Mas, se o filho é mau e o servidor bom, que se coloque, na

caridade, o servidor no lugar do filho. E assim,

far-se-á que a caridade dos santos seja

ordenada. E, por isso, o nosso Mestre e

Senhor, ao estabelecer no Evangelho os preceitos sobre a caridade, aplicou algo próprio à afeição de cada um e deu a compreensão desta ordem àqueles que podem ter conhecimento da Escritura, dizendo:

ordenai em mim a caridade. Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de toda a tua força e de toda a tua inteligência. Amarás o teu próximo como a ti próprio (Mt 22, 37-39). Ele não diz: amarás a Deus como a ti próprio, o teu próximo de todo o coração, de toda a alma, de toda a força e de toda a inteligência. De novo, diz ele, amai os vossos inimigos (Mt 5, 44) e não acrescentou de todo o coração. A Palavra de Deus não é

desordenada, nem prescreveu coisas impossíveis458 nem sequer diz: amai os vossos

inimigos como a vós próprios, mas apenas: amai os vossos inimigos. É-lhes suficiente que

os amemos e não lhes tenhamos em ódio; mas,

amarás, na verdade, o próximo como a ti mesmo e Deus de todo o coração, de toda a alma, de toda a inteligência e com toda a força. Se compreenderes estas coisas e

realizares totalmente o que compreendeste, terás feito o que foi prescrito pela palavra do

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459 É admirável o jogo comparativo que Orígenes estabelece entre a maçã que tem aqueles duas qualidades acima referidas (perfume e sabor) e a madeira que não tem nada disso.

460 Esta dimensão ascética convida à experiência de morrer pelas coisas terrestres para poder viver apenas para as do alto. Ora, sabendo que na antropologia origeniana o corpo que era luminoso na preexistência torna-se pesado, por causa das «túnicas de pele» (Gn 3, 21) consequentemente à queda, «desnudar os seus membros» não seria renunciar ao corpo, coisa impossível em Orígenes, mas realizar uma subida ascética, capaz de passar da matéria ao inteligível neste mundo material onde o homem foi colocado depois da queda, como lugar de provação e de educação do exercício do seu livre arbítrio (cf. CROUZEL, H., Origène et Plotin: comparaisons doctrinales, 232-237).

461 Projetando a representação de Eros, a criança com ases que tem o seu arco e as suas flechas, tão frequente nos poetas e artistas helénicos e recordando-se do Eros celeste do Banquete de Platão, Orígenes consegue aproximar Ct 2, 5 e Is 49, 2 para introduzir na tradição mística o tema do traço e da “ferida de amor” [cf. CROUZEL, H., «Origines patristiques d’un thème mystique: le trait et la blessure d’amour chez Origène», in GRANDFIEL, P., JUNGMANN, J. A. (ed.), KYRIAKON : Festchrift Johannes Quasten, Vol. 1, Münster westf, Verlag aschendorff, 1970, 318]. Dado que o Verbo de Deus que nasce e cresce na alma que for digna de o receber deixa nela o traço das feridas formada depois de ouvir a Palavra de Deus, o próprio Verbo é como que a flecha nas mãos de Deus [cf. ORÍGENES, CC VI, 9 (200)].

Quis putas e nobis caritatis est

ordinatae?

Confirmate me in unguentis (Ct 2,

5). Vnus de interpretibus posuit ἐν οἰνάνθῃ. Haec autem sponsa loquitur

Stipate me in malis (Ct 2, 5). In quibus malis? Vt malum in lignis siluae, itafratruelis meus in medio filiorum.

Idcirco in malis eius stipate me, quia

uulnerata caritatis ego (Ct 2, 5).Quam

pulchrum est, quam decorum a caritate uulnus accipere! Alius iaculum carnei amoris excepit, alius terreno cupidine

uulneratus est; tu nuda membra tua et

praebe te iaculo electo, iaculo formoso, siquidem Deus Sagittarius est. Audi Scripturam de hoc eodem iaculo loquentem, immo, ut amplius admireris, audi ipsum iaculum, quid loquatur:

Posuit me itt sagittam electam, et in pharetra sua seruauit me. Et dixit mihi: Magnum tibi est hoc, uocari puerum meum (Is 49, 2.6). Intellige sagitta quid

Esposo: introduzi-me na casa do vinho,

ordenai em mim a caridade. Quem de nós,

pensas tu, é de uma caridade ordenada?

Consolidai-me nos perfumes (Ct 2, 5).

Um dos intérpretes pôs ἐν οἰνάνθῃ. Todavia, a Esposa diz isto: apoiai-me com as maçãs (Ct 2, 5), mas com que maçãs? Como a maçã no

meio das madeiras da floresta459, assim é o

meu bem-amado no meio dos filhos. Por isso, apoiai-me com as suas maçãs, porque eu estou ferida de caridade (Ct 2, 5). Quão belo é! Quão

decoroso é receber a ferida de caridade! Um recebeu o dardo do amor carnal, outro foi ferido por uma paixão terrena; mas tu, desnuda os teus membros460 e apresenta-te ao dardo

escolhido, dardo formoso, pois Deus é o seu arqueiro461. Escuta a Escritura que te fala

acerca deste mesmo dardo e, aliás, para que mais te espante, escuta o que diz o próprio

dardo: ele colocou-me como flecha escolhida e guardou-me na sua aljava. E disse-me: para ti, é uma grande coisa que sejas chamado meu filho (Is 49, 2.6). Compreende o que diz a flecha e de que modo ela foi escolhida pelo

138 dicat et quomodo a Domino sit electa.

Quam beaturn est hoc iaculo uulnerari! Hac sagitta fuerant uulnerati illi, qui inter se inuicem conferebant dicentes:

Nonne cor nostrum ardens erat in uia, cum aperiret nobis scripturas (Lc 24,

32)? Si quis sermone nostro, si quis scripturae diuinae magistério uulneratur et potest dicere quia uulnerata caritatis

ego, hunc et illud forsitan sequitur. Quid

forsitan dico? Manifestam promo sententiam.