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1.2. A TEORIA HERMENÊUTICA DE O RÍGENES : A AFETIVIDADE COMO

1.2.1. Os sentidos da Escritura e a preeminência da exegese espiritual

1.2.1.2. O sentido literal: importância e limites

O sentido literal, histórico ou corporal da Escritura constitui, para Orígenes, o significado primeiro e imediato na sua «materialidade bruta» anterior, se for possível, a qualquer tentativa hermenêutica171. Este distingue-se claramente da conceção moderna do

sentido literal, visto como o significado que o hagiógrafo quis exprimir. Fiéis então ao vocabulário e à lógica origeniana, percebermos, com esta distinção, por que razão é que, para ele, «a linguagem figurada não tem sentido literal válido»172: o significado das parábolas,

metáforas e antropomorfismos presentes na Bíblia encontrar-se-ia apenas no sentido espiritual. Do mesmo modo, quando o sentido literal parece absurdo, irracional, chocante, impossível ou indigno de Deus, deve-se concluir a sua inexistência173.

Todavia, o sentido literal, existente na maior parte da Escritura174, tem uma grande

importância na hermenêutica origeniana. Com efeito, ciente de que toda a Escritura tem um sentido espiritual, mas que nem sempre tem um sentido literal175, ele sabe que é importante

investigar profundamente o sentido literal, base sólida que permite a reta subida para o sentido espiritual176. Por isso, vemo-lo usar de toda a sua arte para estabelecer uma letra ou texto seguro

e expor explicitamente o sentido literal, usando dos recursos científicos do seu tempo e da sua formação filológica177. Esta prática é muito habitual nos seus escritos sobre o Cântico dos

Cânticos, sobretudo nos Comentários178 onde lhe dedica muitas páginas, garantindo assim a não arbitrariedade da interpretação alegórica. De facto, ele reconhece que, mesmo se é preciso procurar o sentido mais edificante da Escritura, a própria letra não deixa de ser útil para

171 Cf. CROUZEL, H., Origène, 93.

172 Cf. CROUZEL, H., «Origène et le sens littéral dans ses “Homélies sur l’Hexateuque”», 249. 173 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 3, 1-3 (342-356).

174 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 3, 4 (356). 175 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 3, 5 (362). 176 Cf. SIMONETTI, M., Origene esegeta, 20.

177 Cf. ORÍGENES, HCt II, 11 (140), onde ele fez recurso à ciência natural do seu tempo para apontar o vigor que está na base do nome gazela ou corça.

42 alguns179e, até nalguns casos, deve-se ficar pelo sentido literal, que, já por si mesmo, é evidente:

por exemplo, «não matarás!».

Apesar desta importância basilar do sentido literal, este permanece insuficiente para o crente, porque a Escritura deve ser compreendida segundo o Espírito Santo que a inspirou. A sua finalidade não pode ser a história, mas o ensinamento religioso e espiritual, no decorrer da história. Portanto, deve-se procurar sempre um outro sentido para além da letra. Isto não se refere apenas ao AT, que era como que uma imagem das realidades futuras, cumpridas em Cristo, e cujo sentido cristológico ou espiritual o mantém atual e importante para os Cristãos180.

Mesmo no NT, já marcado pela vinda de Cristo, na sua dupla natureza, convém procurar o seu sentido mais profundo, até nas palavras mais simples de Cristo. De facto, «feitas para revelar o

Logos, a Encarnação e a Escritura escondem-no primariamente»181. Toda a Escritura nos foi,

então, dada para nos alimentar espiritualmente, tal como no-lo recorda Orígenes, citando frequentemente182 1 Cor 10, 11: «estas coisas aconteceram-lhes para servir de exemplo e foram

escritas para a nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos». Neste sentido, a letra, mesmo quando não tem um sentido literal, deve ser estudada com toda a atenção para nela encontrar a vontade divina, os mistérios escondidos183.

Ao analisarmos os diversos contornos da conceção origeniana do sentido literal, podemos dizer brevemente que este é particularmente importante pelas seguintes razões: é a base fundamental que nos permite chegar ao sentido espiritual e, em alguns casos, contribui já por si para uma boa orientação moral da vida dos “simples”, oferecendo-lhe modelos e leis.

179 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 6 (318).

180 Orígenes mostra, de facto, que o sentido literal da maior parte dos textos veterotestamentários é insatisfatório para os cristãos, pois com a vinda de Cristo ele caducou, guardando importância e utilidade cristã apenas pelo seu sentido místico ou espiritual. Não se trata, porém, duma contestação do sentido literal desses textos, mas do interesse que tem para o cristão. Por isso, mais do que nos textos do Novo Testamento, o cristão, ao ler o Antigo Testamento, deve procurar o seu sentido espiritual (cf. CROUZEL, H., «Origène et le sens littéral dans ses “Homélies sur l’Hexateuque”», 250-259).

181 BORRET, M., «Introduction», 15.

182 Cf. CROUZEL, H., «Origène et le sens littéral dans ses “Homélies sur l’Hexateuque”», 244. 183 Cf. DE LUBAC, H., Histoire et esprit, 96.

43 Todavia, a própria importância deste primeiro nível de interpretação marca já os seus limites: o sentido literal não é um fim em si mesmo, mas aponta para o verdadeiro sentido da Escritura, aquele que é digno de Deus. Tal como se deve passar pela humanidade de Cristo para chegar a contemplar a sua divindade, assim o sentido literal deve preparar-nos para contemplar o Logos, cujos mistérios a “letra” esconde. Se não for o caso, a “letra” do AT, em grande parte, caducaria depois da vinda de Cristo184. O sentido corporal é, portanto, insuficiente para o crente e, até em

alguns casos, pode ser escandaloso, impossível ou contrário ao ensinamento de Cristo.

Esta perspetiva origeniana, que afirma a centralidade de Cristo na História da Salvação e que, no cristianismo, lhe permite salvar o lugar e a importância do Antigo Testamento contra os marcionistas e gnósticos, abre-se, contudo, à crítica pelo desejo profundo que o anima a afirmar a preeminência do sentido espiritual. A sua insuficiente consideração pelo autor inspirado e pelas “histórias” em si mesmas, sobretudo no que diz respeito ao Antigo Testamento185, mostra que Orígenes não terá tido consciência da evolução que neste se dá, nem

do «progresso das exigências morais e religiosas» que lhe são subjacentes186.

Estes pequenos detalhes que testemunham, aos olhos dos exegetas contemporâneos, a incompletude do seu procedimento, longe de desvalorizarem o seu gênio hermenêutico, sublinham claramente dois modos diferentes de relação com o texto bíblico187. Na Patrística, o

papel do hermeneuta não consiste tanto em aplicar um método para descobrir o que queria dizer o hagiógrafo, mas em abrir o texto para que nos ofereça o “oceano de mistérios divinos” e sentidos que contém188. Por isso, mais do que preocupar-se com a aplicação de um método,

que, em si, é importante para uma boa interpretação, é a dimensão soteriológica que determina o seu modo de relação com a Escritura: a hermenêutica origeniana é sobretudo um exercício espiritual de procura de Deus, um lugar de crescimento espiritual, uma oportunidade de

184 Cf. CROUZEL, H., «Le contexte spirituel de l’exégèse dite spirituelle», in Orig. VI (1995) 337. 185 Cf. CROUZEL, H., «Origène et le sens littéral dans ses “Homélies sur l’Hexateuque”», 262. 186 Cf. CROUZEL, H., Origène, 93-94.

187 Cf. PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 280-287.

44 encontro e união esponsal do homem com Deus pela mediação da Escritura e à luz da Tradição eclesial189. A passagem para o sentido alegórico é então fundamental para podermos desvelar a

“letra” e alimentar-nos dos mistérios escondidos nela