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f) Amor/dilectio/caritas

2. A AFETIVIDADE , CHAVE HERMENÊUTICA NAS H OMILIAS

2.1. UMA EXEGESE MOVIDA PELOS DINAMISMOS DA RELAÇÃO

Toda a exegese realiza-se numa dinâmica relacional: com o texto, cuja interpretação se quer fazer, com Deus, que a inspirou e marcou com uma estrutura trinitária de sentido684, e com

os destinatários, que de certo modo participam deste exercício espiritual mediante um processo de subjetivação e incorporação no texto685. Partindo do teor esponsal do Cântico dos Cânticos,

as Homilias são a expressão mais viva de uma exegese inteiramente movida pelos dinamismos da relação nesses três planos com uma centralidade cristológica686.

680 Esta necessidade transparece em todas as exortações das Homilias pelas quais Orígenes incorpora o seu destinatário direto ou indireto no drama amoroso do Cântico dos Cânticos que ele interpreta e encontra certamente na ascensão ascética que prepara ao canto deste epitalâmio a sua melhor expressão [cf. ORIGÈNE, HCt I, 1 (66-68)].

681 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 7 (326-332).

682 Cf. BONFRATE, G., Origene e l’esodo della Parola, 137-138.

683 Cf. ORÍGENES, HCt II, 6 (126): «Eu, diz ela, desejei repousar na sombra dele, mas, depois que ele me abrigou na sua sombra, fui saciado com os seus frutos e digo: e o seu fruto é doce na minha garganta (Ct 2, 3)».

684 Cf. ANATHOLIOS, K., «Christ, Scripture and the Christian story of meaning in Origen», in Greg. 78 (1997) 1, 56-58.

685 Cf. TORJESEN, K. J., Hermeneutical procedure and theological method in Origen's exegesis, 58-59. 686 Cf. ORÍGENES, HCt I, 1 (68): todas as personagens do epitalâmio são identificados em relação a Cristo.

189 Num primeiro plano, a própria estrutura das Homilias testemunha uma profunda relação e respeito para com o texto, organizando-o em cenas segundo as suas dinâmicas internas, como convém num drama. O texto não é, de facto, visto como um pretexto para transmitir uma doutrina, mas como a fonte da qual jorra toda a interpretação687.

Reconhecendo que é o mesmo Logos, o Verbo de Deus que nos fala na Escritura688,

todas as palavras do epitalâmio ganham grande relevância e reverência para o nosso pregador, de tal modo que através da letra é com o Verbo, o Esposo, que o exegeta entra em relação. Esta relação com a Escritura não é, porém, algo privado, mas é mediada pela Igreja, pois tudo o que nos revela este “canto nupcial” não o devemos procurar «fora daqueles que foram salvos pela

pregação do Evangelho (1 Cor 1, 21)»689.

Estas duas vertentes fazem do nosso texto o lugar de construção de uma relação mais estreita com a Escritura e com a Igreja, da qual cada alma Esposa, ou que virá a sê-la, caminha ao encontro do Esposo, realizando na sua vida o que compreendeu da Escritura, pois a exegese aponta para a vida, enriquecendo a relação com o Esposo e a Igreja, no seio da qual ela se realiza dignamente:

«Se compreenderes estas coisas e realizares totalmente o que compreendeste, terás feito o que foi prescrito pela palavra do Esposo: introduzi-me na casa do

vinho, ordenai em mim a caridade»690.

Num segundo plano, está a importante e fundamental relação com Deus, pois a compreensão do texto sagrado é sobretudo fruto da Revelação divina que ilumina o intérprete hodierno, levando-o a perceber com clareza o que tinha inspirado no hagiógrafo691. Neste

687 Cf. ORÍGENES, HCt I, 2 (74): «Se estas coisas não fossem compreendidas espiritualmente, não seriam elas conversas? Se não tivessem algum segredo, não seriam indignas de Deus?»; ORÍGENES, Princ. IV, 2, 7 (328).

688 Cf. ORÍGENES, HCt I, 2 (72): «até quando é que o meu Esposo me enviará beijos por Moisés, me enviará beijos pelos profetas? São os lábios dele agora que desejo atingir, que venha ele, que ele desça».

689 ORÍGENES, HCt I, 1 (68): «Haec omnia noli foris quaerere, noli extra eos qui praedicatione euangelii sunt saluati (1 Cor 1, 21)».

690 ORÍGENES, HCt II, 8 (130): «Si haec intellexeris et intellecta compleueris, fecisti quod sponsi sermone praecipitur: Introducite me in domum uini, ordinate in me caritatem».

190 sentido, a oração dirigida ao Pai testemunha a disposição da alma que espera acolher a Palavra de Deus: «ela reza então ao Pai do Esposo e diz-Lhe: que ele me beije com beijos da sua

boca»692, ou pede o seu auxílio para melhor entender o que está escondido sob a letra da

Escritura: «Oremos a Deus, para que nos conceda a graça para abrir as Escrituras e assim possamos dizer: como Jesus nos abria as Escrituras (Lc 24, 32)!»693. Desta importante relação

com Deus, que não só permite compreender o sentido espiritual do “canto nupcial”, mas também santifica progressivamente o hermeneuta, destaca-se a relação com o Verbo de Deus.

As Homilias não nos apresentam o Esposo apenas como um Logos/Palavra oferecido sistematicamente ao nosso intelecto para reforçar os nossos saberes. Todo o seu conteúdo, a sua motivação e a sua finalidade são favoráveis a que se teça com o Verbo «uma relação interpessoal de intensidade variada, mas na qual o amor funda o conhecimento», pois Cristo, o Amor, é o conteúdo deste epitalâmio694. Só se pode então cantá-lo, amando, e o crescimento

neste amor, manifestado pelas próprias dinâmicas deste texto, realiza-se com um progresso na apreensão do Esposo, que conduz a uma melhor “estruturação” e “divinização” do homem, graças à sua crescente participação nos mistérios de Cristo695. Por conseguinte, a intensidade

na compreensão das palavras do epitalâmio em muito depende da qualidade e intensidade da relação que se tem com o Esposo:

«E, tendo compreendido isto, ouve o Cântico dos Cânticos e apressa-te a compreendê- lo e a dizer com a Esposa o que ela diz, para que oiças o que ouviu também a Esposa. Todavia, se não puderes dizer com a Esposa o que ela disse, para que oiças o que lhe foi dito, não te demores, se quiseres, a ficar junto dos companheiros do Esposo. Mas se aquelas palavras estão também acima de ti, fica com as donzelas, que estão nas boas graças da Esposa»696.

692 ORÍGENES, HCt I, 2 (72). 693 ORÍGENES, HCt II, 11 (140).

694 Cf. MONTEIRO, A. T., Os sentidos espirituais no Comentário ao Cântico dos Cânticos de Orígenes, 31-32.

695 Cf. MEIS, A., «Origenes y Gregorio de Nisa, “in Canticum”», in Orig. VI (1995) 606-612. 696 Cf. ORÍGENES, HCt I, 1 (70).

191 As diferentes personagens que têm com o Esposo uma relação intensamente diferenciada pertencem todas à comunidade dos que «foram salvos pela pregação do Evangelho» (1 Cor 1, 21). Esta grande diversidade que constitui a Igreja, querida “santa e imaculada” por Cristo (Ef 5, 27), mantém entre os seus diversos membros (“anjos” e “donzelas”) uma mútua implicação, de modo que a Igreja seja ao mesmo tempo a única Esposa perfeita e a multidão que ela conduz à perfeição697. Assim, a Esposa, que é referida inicialmente

como a Igreja e mais tarde identificada também com a alma “bela e formosa”, pode testemunhar junto das donzelas, que virão a ser também esposas, o que ela viu no “aposento do Rei”, dado que já partilha a sua intimidade.

O uso da imagem e a função representativa, que permite à afetividade ser conduzida mais pela “mente” ou “coração” do que pelas paixões terrenas698, traduzem, nestas Homilias,

não só a personalização da relação com o Esposo, mas também enriquece e define melhor as relações entre a Esposa, as donzelas e os amigos do Esposo. A Esposa, que “vê mais rápido” o Esposo, recebe-o diretamente entre os seus “seios”, exorta as donzelas, que correm atrás do Esposo pelo odor dos seus “perfumes”, para que venham a ser esposas de Cristo699, enquanto

os companheiros do Esposo a consolam e preparam, oferecendo-lhe “imitações de ouro e de prata” (Ct 1, 11-12), para que viva melhor os mistérios escatológicos do seu Esposo700. Um

caso eminente desta relação com finalidade espiritual encontra-se de forma sintética no registro do gosto e do alimento espiritual, que aprofunda a simbólica do “odor”, na lógica dos sentidos espirituais, como movimento do desejo: Cristo é a macieira/maçã entre as “árvores da floresta”, árvore da vida e alimento vital; a Esposa, “ferida de caridade”, pede aos companheiros do Esposo para a apoiar com “as maçãs”, que seriam aqui os bons frutos daqueles em quem Cristo transparece701. Tudo este processo culmina numa sequência de imagens agrícolas que anunciam

697 Cf. ORÍGENES, CCt I, 4, 10 (226).

698 Cf. BERNARD, C. A., Théologie affective, 41. 699 Cf. ORÍGENES, HCt II, 10 (136-138). 700 Cf. ORÍGENES, HCt II, 2 (106).

192 o tempo da ceifa e das vindimas702, em que os frutos recolhidos pelo nosso “agricultor” são

como que o ponto de chegada da obra redentora703, contando com a ação gratificante do

Salvador, o esforço pessoal da Esposa e o contributo de toda a comunidade eclesial.

Se Cristo é o único prémio para o qual todos correm, cada qual se aproxima dele em função do seu estado espiritual: podemos partilhar a sua intimidade como a Esposa, estar-lhe mais próximo como “as sessenta rainhas”, ficar fora à sua espera como “as concubinas” ou correr atrás dele como “donzelas sem número”, sabendo que esta hierarquia relacional culmina na Esposa704.

Num terceiro plano, a exegese relaciona o pregador e o seu destinatário com quem ele procura o sentido mais profundo escondido por trás da letra do epitalâmio. Esta interação que não nos deixou indiferentes, por ser talvez o índice interno que melhor torna este texto sempre atual para quem o lê atentivamente, constrói-se com o uso da retórica705 e da subjetivação706. A

retórica visa sobretudo mostrar a excelência de Cristo707, suscitar no destinatário um

assentimento para com uma vida movida pelo espírito e não pela carne708, como expressão da

sua total adesão ao Esposo e persuadi-lo de que, neste processo hermenêutico em que ambos estão comprometidos, a presença do Logos divino é manifesto e por ele passa a realidade da Salvação709. A subjetivação visa tornar ativo o próprio destinatário neste processo

hermenêutico710, falando-lhe e exortando-o à vigilância711, mas também incorporando-o no

702 Cf. ORÍGENES, HCt II, 12 (146).

703 Cf. MINET-MAHY, V., «Étude des métaphores végétales dans les trois commentaires sur le Cantique des Cantiques (Origène, Apponius, Bernard de Clairvaux)», 178.

704 Cf. ORÍGENES, HCt II, 12 (146).

705 Cf. TORJESEN, K. J., «Influence of rhetoric on origen’s Old Testament », 13-25. 706 Cf. PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 261-265.

707 Cf. ORÍGENES, HCt I, 3 (78).

708 Cf. ORÍGENES, HCt I, 2 (74); II, 2 (108).

709 Cf. TORJESEN, K. J., «Influence of rhetoric on origen’s Old Testament », 14.

710 Cf. ORÍGENES, HCt I, 4 (80): «Observa diligentemente qual das duas derramou o perfume sobre a cabeça do Salvador».

711 Cf. ORÍGENES, HCt I, 6 (88): «Mas se tu não fizeres penitência, acautela-te para que não se diga da tua alma que ela é negra e feia, e que sejas desfigurado por esta dupla fealdade: negra por causa dos teus pecados do passado, feia porque perseveras nos mesmos vícios».

193 próprio texto712, permitindo-lhe assim realizar juntamente com o pregador uma exegese vital e

esponsal713.

Estes três planos não são hierarquicamente estruturados nem funcionam como estanques, mas têm apenas para nós uma função pedagógica, pois no contexto das Homilias eles entrelaçam-se, ainda que haja uma anterioridade da relação com Deus sobre as demais.

2.2. U

MA EXEGESE ORIENTADA PARA A FRUIÇÃO DOS SENTIDOS