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b) O sentido espiritual ou místico

1.2.2. O estatuto da afetividade na hermenêutica origeniana

O encontro com Cristo alimenta e constitui o elemento essencial da interpretação origeniana da Escritura. O argumento antropológico e pedagógico (Lógica, Ética, Física), que justifica o triplo sentido da Escritura, define também a relação que cada grupo de homens tem com a Escritura e com Deus. Este encontro/relação que se dá a nível eclesial e pessoal, numa harmonia entre o coletivo e o individual, não é algo mecânico e uniforme, mas ganha as cores das duas liberdades e da diversidade da reação/adesão humana ao toque de Deus, mediante a sua Palavra. Ora, esta relação diversificada de Deus com a humanidade, sumamente traduzida na Encarnação do Verbo, imagem perfeita da sua plena união, é possibilitada pela capacidade ontológica do homem ser afetado e relacionar-se com os seus semelhantes, mas sobretudo com Deus. Toda a verdade e o significado da própria Revelação têm, portanto, como estrutura «a estadia de Deus com a humanidade», a sua estadia na alma de cada crente225. Esta estadia divina,

que motiva e alimenta o progresso espiritual, possibilita a passagem da imagem à semelhança com Deus, depende, em muito, do modo de acolhimento e de adesão de cada alma crente: a afetividade é o terreno desta relação.

A analogia que existe entre o triplo sentido da Escritura e a antropologia tricotómica origeniana testemunha o próprio caminho que Deus faz com o homem, convidando-o às realidades celestes para as quais predispõe o seu desejo natural. Ora, se o movimento é conatural a qualquer ser anímico, o desejo natural, comum a todos os homens pela sua natureza de criatura226, que provoca este movimento, vai ao encontro do libre arbítrio, que reside na alma,

para definir a personalidade individual. As duas partes que compõem a alma, mens ou καρδία

225 Cf. ANATHOLIOS, K., «Christ, Scripture and the christian story of meaning in Origen», 74-76. 226 Cf. ORÍGENES, Princ. II, 11, 1 (394): «é certo que, de qualquer maneira, nenhum ser animado pode ficar inativo e imóvel, mas de todas as maneiras deseja mover-se, agir sempre e querer alguma coisa…».

52 e sensus carnis ou θυμός e ἐπιθυμία solicitam-na então quer para a ascensão espiritual (parte superior) quer para uma fixação nos desejos carnais (parte inferior)227.

A antropologia origeniana que, tal como a sua hermenêutica, «é dinâmica e tendencial num contexto de combate espiritual» descobre assim no desejo natural ou «amor à verdade», em nós colocado por Deus228, um dos seus motores, que há-de orientar o homem até ao seu fim

último, a visão beatífica, por Cristo229.

Neste percurso, toda a realidade sensível, que participa da bondade ontológica da criação, como ato divino, tem o papel de orientar o homem para Cristo, «fonte de todos os mistérios»230 e suma Verdade (Jo 14, 6): um discernimento, segundo a própria tensão interior à

alma, é fundamental para atingir esse fim. A inteligência ou parte superior da alma que «permite à pessoa humana receber e aceitar» a graça divina ativa no pneuma e a parte inferior, que constitui o princípio das imaginações, instintos ou paixões da alma, são, na sua essência, o terreno da afetividade, que se distingue bem dos afetos como a nascente do rio. A afetividade é, portanto, entendida aqui não como um conjunto de sentimentos, afetos ou emoções, mas no seu sentido mais profundo como o «poder originário de ser afetado», a condição primeira da possibilidade de qualquer vida afetiva, de toda a experiência fundamentalmente pessoal, subjetiva e inter-relacional231. Sem a afetividade, que nos oferece a possibilidade desta

identificação dos diferentes estados da nossa vivência subjetiva, dificilmente perceberemos as dinâmicas do progresso espiritual e a existência duma distinção entre os três géneros de homens,

227 Cf. CROUZEL, H., «L’anthropologie d’Origène: de l’arché au telos», in SPM 12 (1981) 37-41. A parte superior designa-se pelo termo platónico νοῦς (mens, animus ou sensus), que este autor traduz por “inteligência”, ou pelo termo estoico ἡγεμονικόν (principale animae, mentis ou cordis) ou pelo termo bíblico

καρδία (cor). A parte inferior, acrescentada à alma depois da queda, é assimilada por vezes aos dois elementos

inferiores da tricotomia platónica θυμός e ἐπιθυμία ou é também chamada «o pensamento da carne» (Rm 8, 6-7),

sensus carnis ou sensus carnalis.

228 Cf. ORÍGENES, Princ. II, 11, 4 (402).

229 Cf. MEIS, A., «El “Desiderium Naturale”, según Orígenes, De Principiis II 11, 1-7», in TV 55 (2014) 1, 37.

230 Cf. CROUZEL, H., Origène, 143.

231 Cf. LAVIGNE, J.-F., «Le statut ontologique de l’affectivité: fondement ou épiphénomène ?», in Noesis 16 (2010) 11-26. Artigo disponível em http://noesis.revues.org/1716, consultado a 03|05|2016 pelas 17h.

53 análogo aos três sentidos da Escritura, que marca este itinerário relacional com Deus, numa comunhão eclesial.

A afetividade sustenta assim a possibilidade humana de progredir nos diversos sentidos da Escritura, conhecendo melhor a Cristo, não apenas intelectual ou doutrinalmente, mas também empiricamente, até à possibilidade de uma união mística. Ela é como que a chave que nos permite perceber a objetividade dos três sentidos da Escritura, vistos também como três modos diferentes de sermos tocados e transformados pela Escritura. A dimensão cognitiva, que marca este processo hermenêutico ascensional, é, portanto, indissociável da afetividade que informa as próprias estruturas da inteligência, como fonte de conhecimento e exercícios cognitivos originais: o conhecimento de Deus nunca se dissocia do amor a Deus, tornado visível na vida quotidiana.

A afetividade, que possibilita e interfere em todos os movimentos da alma, pode acelerar, perturbar, abrandar ou impedir a passagem de um sentido da Escritura a outro e, por analogia, o próprio itinerário espiritual ascensional para Deus. Por isso, as duas partes da alma, nos seus diversos movimentos, podem ser totalmente espiritualizadas ou cair nas redes da “paixão carnal”. Conduzido pelo espírito, a inteligência ou o coração, como «órgão da vida moral e virtuosa, do conhecimento de Deus, da atividade contemplativa e mística», torna-se o suporte dos sentidos espirituais232.

A parte inferior, se for também espiritualizada, torna-se o princípio criativo da linguagem simbólica do amor e da “paixão espiritual” (spiritali cupidine), necessária para progredir na procura/encontro de Cristo-Esposo233. A hermenêutica transforma-se em sequela

Christi, marcada por uma adesão total e integral do crente ao Logos que nasce e cresce na sua

232 Cf. CROUZEL, H., «L’anthropologie d’Origène: de l’arché au telos», 40-41. As grandes metáforas vegetais, animais que tecem o texto do Ct e as suas interpretações espirituais traduzem esta riqueza duma afetividade transfigurada, que sabe partir da realidade sensível como pedagogia para Deus, o seu criador. A idolatria seria então confundir o sensível, que em si é bom, tal como os diversos movimentos da alma [cf. ORÍGENES, HCt II, 1 (104)], com a Verdade (cf. CROUZEL, H., Virginité et mariage selon Origène, Desclée de Brouwer, Paris, 1963, 67-68).

54 alma. O amor, feito de desejo e dom (éros e agapè) como expressão máxima da afetividade234,

domina esta adesão, marcada por uma sensação consoladora da presença do Esposo, mas também com o seu eclipse, que ativa de novo o desejo e convida a uma progressão na virtude e vida espiritual235.

A interpretação da Escritura, marcada por este movimento afetivo, torna-se procura de uma presença que, uma vez encontrada, deixa em nós como que uma “ferida de caridade”, mediante a “beleza” e a “graça do Verbo de Deus”, possibilitando uma progressão através dos três sentidos da Escritura e no itinerário espiritual236. Assim, dos sentidos corporais é possível

adquirir e cultivar progressivamente os sentidos espirituais, porque o seguimento amoroso de Cristo oferece um conhecimento que é adesão progressiva até à união com ele, cume do conhecimento237.

A afetividade joga então um papel decisivo no próprio processo de conhecimento de Cristo pelo estudo da Escritura. Há, de facto, a possibilidade de compreender de modo puramente intelectual os mistérios de Cristo desvelados ao longo do caminho hermenêutico, mas sem a adesão, comunhão e união a Cristo, este nos permanece desconhecido: só «o amor (ἀγάπη) nos une fortemente (κολλᾷ) a Deus»238. Portanto, dado que a união total se realizará

na visão beatífica e que, neste mundo, a união mística prefigura, mesmo que ainda não consigamos estar na posição da Esposa para penetrar no “aposento” do Rei (Ct 1, 4) e ouvir o que ela ouve, convém que nos deixemos tocar pelo Esposo, estar junto dos seus “companheiros”239 ou, como as “donzelas”, correr atrás dele em direção ao odor dos seus

“perfumes” (Ct 1, 3-4) 240.

234 Cf. CROUZEL, H., «Le thème du mariage mystique chez Origène et ses sources», in Missionalia 26 (1977), 37.

235 Cf. ORÍGENES, HCt I, 7 (94).

236 Cf. BONFRATE, G., Origene e l’esodo della Parola, 159-163. 237 Cf. CROUZEL, H., Origène et la connaissance mystique, 518-523.

238 ORÍGENES, HJr V, 2 (286). Reconhecendo que não nos devemos unir firmemente a nada, porque a nossa única preocupação é amar a Deus, Orígenes reconhece que só o amor nos configura a Deus: «ἡ γὰρ ἀγάπη κολλᾷ ἡμᾶς τῷ θεῷ».

239 Cf. ORÍGENES, HCt I, 1 (70). 240 Cf. ORÍGENES, HCt I, 5 (82).

55 A hermenêutica origeniana move-se então num clima afetivo, onde a sensação constitui a sua forma elementar e os diversos sentidos humanos colocam as bases interpretativas, na relação com a Escritura e o Logos divino, em função da posição do hermeneuta neste grande itinerário “esponsal” com Cristo241.

Depois deste primeiro ponto em que percebemos a dinâmica relação vital de Orígenes com a Escritura em geral, ao descobrir o papel chave da afetividade neste processo relacional, compreendemos que seria importante focalizar-nos agora no Cântico dos Cânticos. A dimensão esponsal que a particulariza no meio dos outros livros bíblicos ajudar-nos-á a perceber melhor o lugar da afetividade no itinerário espiritual. Ora, antes de chegarmos à relação origeniana com este livro, convém visitar e conhecer a tradição interpretativa que lhe é anterior.

2.

OC

ÂNTICO DOS

C

ÂNTICOS ANTES DE

O

RÍGENES