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b) O sentido espiritual ou místico

3. O RÍGENES E O C ÂNTICO DOS C ÂNTICOS

3.2. O RÍGENES , COMENTADOR E PREGADOR DO C ÂNTICO DOS

3.2.1. Orígenes como comentador

Como já referimos anteriormente, ao falarmos de Orígenes como comentador da Escritura, o seu Comentário sobre o Cântico dos Cânticos é o primeiro comentário sistemático e continuado a este livro bíblico. Composto em dez livros, só chegaram até nós os três primeiros livros numa tradução latina de Rufino304 e alguns fragmentos gregos305. Obra de grande

erudição, estruturada segundo uma pedagogia escolar, com uma linguagem mais didática e magistral, o Comentário é antecedido por um grande prólogo306, que é como que o seu pórtico

304 Referimo-nos à versão crítica das Sources Chrétiennes: ORÍGENES, CCt, T. 1, Cerf, Paris, 1991 (SC 375); T. 2, Cerf, Paris, 1992 (SC 376).

305 Estes fragmentos encontram-se em ORÍGENES, Phil. 27, 13 (310-314); alguns na cadeia de Cramer (cf. CRAMER, J. A., Catenae graecorum Patrum in Novum Testamentum, Vol. 8, Oxford, 1844, 115-116) e outros mais importantes na cadeia de Procópio de Gaza: «scholia in cantica canticorum» (cf. PG 17, 253-288).

72 de entrada. Inexistente nas Homilias, este prólogo oferece-nos uma interessante explicação do seu programa exegético para este texto bíblico307. Com efeito, para o nosso autor, toda a

hermenêutica da Escritura deve basear-se na experiência espiritual, que a sustém e cresce com ela, pois o sentido do texto é indissociável do estado espiritual do seu leitor308. Assim,

interpretar o Cântico dos Cânticos será sempre, para ele, o arriscar de um ato de inteligência, testemunhado pelos múltiplos «mihi videtur», a partir dos dados bíblicos e da sua experiência espiritual309, sob a ação iluminadora da graça divina, pela qual o Logos de Deus, verdadeiro

didáskalos310, inscreve na alma o sentido profundo deste texto sagrado. Por isso, afirmando no início deste prólogo que «este pequeno livro é um epitalâmio, isto é, um “canto nupcial” escrito por Salomão sob a forma de um drama», em que as personagens, bem identificadas, entram em diálogos e ações311, o alexandrino apresenta-nos uma série de disposições e conselhos para o

ler, pois trata-se de um texto classificado como «alimento sólido»312, destinado aos que já

progrediram na vida espiritual.

Dado que o tema do amor está no centro deste livro, o prólogo apresenta-nos também um importante desenvolvimento sobre o amor e a caridade, salientando a distinção entre o amor espiritual e o amor carnal, que caraterizam o “homem exterior” e o “homem interior” que existe em cada um de nós e afirmando, desde já, que a maturidade espiritual necessária para ler este livro não depende da idade natural do crente, mas do grau da sua configuração com o Verbo de Deus313. Para chegar a esta maturidade espiritual é preciso um caminho ascético-espiritual que

passa pela pedagogia implementada na ordem ascensional dos três livros de Salomão, que

307 Cf. TORJESEN, K. J., Hermeneutical procedure and theological method in Origen's exegesis, 54. 308 Cf. ORÍGENES, CCt Prol. 1, 4-6 (82-84): estamos assim perante a afirmação implícita do tema dos sentidos espirituais, que lhe é bem familiar.

309 Cf. PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 275.

310 Cf. ORÍGENES, Princ. I, 2, 3 (114): «hoc modo etiam verbum dei eam esse intellegendum est per hoc, quod ipsa ceteris omnibus, id est uniuersae creaturae, mysteriorum continentur, aperiat».

311 Cf. ORÍGENES, CCt Prol. 1, 1-3 (80-82). Logo no início a novidade em relação à tradição anterior é afirmada: a Esposa deste epitalâmio é quer a alma, feita à imagem de Deus, quer a Igreja.

312 Cf. ORÍGENES, CCt Prol. 1, 4-7 (82-86). Ele guarda aqui a tradição judaica que reservava este livro para a idade madura e perfeita, colocando-o na lista dos deuteróseis, que não se explicava a toda a gente

73 correspondem à das disciplinas filosóficas gregas (Moral, Natural, Inspetiva) e às figuras dos três Patriarcas (Abraão, Isaac, Jacob)314.

Finalmente, explica o título Cântico dos Cânticos315, que exalta a supremacia deste “canto nupcial” sobre os outros cânticos bíblicos, pondo-o em paralelo com «o Santo dos Santos» (Ex 26, 34) e o «Sábado dos Sábados» (Lv 16, 31). Portanto, já neste prólogo sobressaem, por um lado, a relação indispensável que existe entre a hermenêutica e a vida espiritual, e a pedagogia magistral que orientará todo o seu Comentário. Trata-se, certo, de uma explicação erudita, mas que não suprime a presença enunciativa do comentador, que prefere colocar o “nós” magistrático e o “vós” face a face, arriscando tantas vezes dar a sua opinião pelas expressões como «Mihi videtur», «puto ergo», de modo que, num comentário com cariz “científico”, não nos pretende oferecer “o sentido” do texto, mas propor “um sentido” fundamentado na Escritura e no seu sentido espiritual316.

A partir do cenário dramatúrgico do epitalâmio, Orígenes constrói então a dimensão subjetivada da sua interpretação, nesta relação que o liga ao texto, como o seu comentador, e ao seu destinatário, com quem caminha na procura dos mistérios divinos, a partir de um procedimento hermenêutico adaptado ao seu contexto escolar e ao estado avançado dos seus ouvintes ou leitores. Por isso, cada livro do Comentário está dividido, na sua unidade, em vários conjuntos, onde podemos notar geralmente este procedimento em cinco etapas317.

Na primeira etapa, é-nos apresentado o verso a comentar, que é a fonte da sua interpretação posterior. A seguir, o nosso hermeneuta procura identificar a personagem que fala neste verso e reconstruir o contexto dramático em que este é proferido: é identificação do seu sentido literal. O verso é de novo repetido, já enriquecido pela sua contextualização. Na terceira fase, o mesmo verso é agora reinterpretado no contexto da Igreja e de seguida interpretado no

314 Cf. ORÍGENES, CCt Prol. 3, 1-23 (128-142). 315 Cf. ORÍGENES, CCt Prol. 4, 1- 35 (146-172).

316 Cf. PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 274-276.

74 contexto do itinerário espiritual da alma: é a afirmação do seu sentido espiritual. Finalmente, pelo uso do «nós», introduz o seu leitor ou ouvinte nesta situação dramática tal como foi aplicada à alma318. Esta sequência, que relaciona níveis de interpretação com diversas atitudes

de leitura, conduz facilmente, no Comentário – coisa que não acontece nas Homilias – à identificação do destinatário com a alma, que diz as mesmas palavras que a Igreja, o seu modelo nesta união esponsal com Cristo319. Esta estruturação sistemática da hermenêutica do

Comentário não pode porém erguer-se em regra absoluta, pois não são raras as vezes em que

Orígenes passa sem transição da Igreja Esposa à alma Esposa, manifestando assim o equilíbrio entre o coletivo e o individual, ou interpreta alguns versos apenas referindo-se a uma delas320.

Ao percebermos a relação de Orígenes com o Cântico dos Cânticos à luz do seu

Comentário, podemos dizer que, se o amor está no centro deste livro, o principal objetivo do Comentário é o progresso da alma no conhecimento dos mistérios321. Com efeito, Cristo,

Esposo, já não é apresentado apenas como modelo a seguir para aqueles que, nas Homilias, serão chamados a purificar-se e a cultivar o amor espiritual, mas é exaltado pela superioridade dos seus ensinamentos e mistérios. Isto é possível apenas se o destinatário, conforme as advertências do prólogo, fiéis à tradição judaica sobre a leitura deste livro, já se encontra num estado espiritual bem avançado, marcado por uma preferência pelas realidades espirituais.

O próprio contexto escolar e a identidade dos seus destinatários, que presidem à redação deste Comentário permitem, portanto, que o Adamantios desenrole nele todo o seu arsenal exegético, científico e místico, apresentando geralmente o «sentido literal» do versículo que

318 Cf. ORÍGENES, CCt I, 1-15 (176-186).

319 Cf. ORÍGENES, CCt I, 14 (184): «assim, todas as vezes que descobrirmos no nosso coração, sem conselheiros, algo que é procurado entre as doutrinas e os pensamentos divinos, acreditemos que tantas vezes os beijos nos foram dados pelo Esposo, o Verbo de Deus…». Nas Homilias, porém, interpretando o mesmo verso, «que ele me beije com beijos da sua boca» (Ct 1, 2), a introdução do destinatário, pelo uso do «nós», é feito, não por uma identificação direita com a alma perfeita, mas de seguinte modo: «se o Esposo me tocar, eu também serei de bom odor e ungido de perfumes e até mim também chegarão os perfumes dele… Todavia, embora oiçamos isto, ainda temos o cheiro fétido dos pecados e vícios, dos quais o penitente diz pelo profeta: as minhas feridas

apodreceram completamente e corromperam-se por causa da minha loucura (Sl 37, 6)». 320 Cf. CROUZEL, H., Origène, 167.

75 comenta como base para chegar ao seu sentido espiritual, ponto de chegada da sua hermenêutica322. Estas duas realidades, erudição do texto e a restrição do público-alvo,

poderiam levar-nos naturalmente a concluir que Orígenes é elitista ou esotérico no seu

Comentário. Ora, uma tal conclusão seria precipitada e injusta, pois o alexandrino na sua

postura antignóstica323 sempre defende, a partir da Encarnação do Verbo, o acesso de todos aos

mistérios, mas insiste sobre o progresso espiritual que permite aceder a estes pela mediação do

Logos divino324.

Assim, as suas Homilias sobre o Cântico dos Cânticos, dirigidas ao povo em geral, constituem bem esta sua preocupação de levar “o pão quente” da Palavra a todos os crentes, nomeadamente deste livro por tradição restringido aos “perfeitos”, apelando cada qual ao progresso espiritual, para que possam vir a «dizer com a Esposa o que ela diz»325.