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b) O sentido espiritual ou místico

2.1. N A T RADIÇÃO JUDAICA

A canonicidade e a santidade do Cântico dos Cânticos, unanimemente aceites no judaísmo, segundo o testemunho de Rabi Aqiba242, sustentam a sua rica tradição interpretativa,

241 Cf. ORÍGENES, HCt II, 12 (142). Cada sentido é uma “janela” pela qual o Esposo observa e por onde podemos deixar entrar quer a vida quer a morte. Assim, o conhecimento que temos da Escritura e do Esposo passa também pela orientação que dêmos à mensagem que captamos pelos nossos sentidos. Quem se limitar aos sentidos corporais, tenderá a ficar pela letra ou por um conhecimento humano de Cristo, mas quem progredir para os sentidos espirituais, saboreia com cada sentido os mistérios de Cristo, subindo para o conhecimento perfeito da sua divindade.

242 Cf. PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 380-382. Falando dos debates sobre a canonicidade do Cântico dos Cânticos, esta autora oferece-nos o testemunho de Rabi Aqiba : «ninguém nunca contestou em Israel que o Cântico dos Cânticos sujasse as mãos. Pois, o mundo inteiro fora incomparável no dia em que o sublime Cântico dos Cânticos tinha sido transmitido a Israel, porque todas as Escrituras (Kethoubim) são santas, mas o Cântico dos Cânticos é a mais santa das Escrituras».

56 mormente na época tanaítica. A leitura tradicional judaica243 é fundamentalmente alegórica e tipológica.

Alegoricamente o epitalâmio é interpretado, na sua base, como cântico do amor nupcial entre Deus e Israel. A partir desta perspetiva teológica, as leituras tipológicas veem apresentados neste livro os momentos chaves da história salvífica de Israel, mediante a prática de figurações históricas e messiânicas, por um lado, e pela prefiguração escatológica, atendendo ao contexto do povo contemporâneo a esta interpretação244. Assim, a posição doutrinal do

Cântico dos Cânticos, nesta leitura tradicional judaica, deve aproximar-se da teologia da aliança

nos seus precursores proféticos como Os 2; Is 40-66; Jr 31; Ez 16 e 23245.

Esta aproximação realça claramente que este livro, escrito para o progresso espiritual do leitor, numa dinâmica de aliança com Deus, é fundamentalmente considerado, na tradição judaica, como um epitalâmio do amor divino, que traduz a figuração idealizada da relação esponsal de Deus com Israel, materializada na sua história salvífica. Por isso, os rabinos reconhecem que, pela sua natureza e complexidade, facilmente aberta a uma leitura erótica, é preciso ter uma certa maturidade espiritual antes de abrir e ler este livro246, que «suja as mãos»,

segundo a expressão de rabi Aqiba.

Afirmada a convicção teológica de que o Cântico dos Cânticos, na sua riqueza simbólica, é um diálogo nupcial entre Deus e o seu povo Israel, que colabora com Ele na realização da História da Salvação e da manifestação universal da sua glória, os rabinos, numa

243 Não tendo acesso à literatura rabínica deste período, nem instrumentos suficientes para a sua melhor interpretação, o que não é o nosso propósito neste trabalho, basear-nos-emos nos seguintes estudos, que nos parecem bem fundamentados: KAPLAN, J., My perfect one: typology and early rabbinic interpretation of Song

of Songs, OUP, Oxford, 2015; PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 379-411 (Shir há Shirim:

quelques aspects de subjectivation dans la tradition juive).

244 Cf. BONSIRVEN, J., «Exégèse allégorique chez les Rabbins tannaïtes», in RSR 24 (1934) 1, 37-46 : atendendo a esta perspetiva judaica, o autor conclui que a prática alegórica não é muito aprofundada na exegese rabínica do epitalâmio, o que não lhes permitiu aprofundar o conteúdo da relação esponsal Deus-Israel que tinham descoberto alegoricamente neste livro, nem se abrir à sua dimensão profética.

245 Um bom estudo sobre esta temática da aliança nos Profetas, vista como precursores do autor do Cântico dos Cânticos pode ser lido com interesse no seguinte livro: FEUILLET, A., Le Cantique des Cantiques: étude de théologie biblique et réflexions sur une méthode d’exégèse, Cerf, Paris, 1953, 140-192.

57 leitura histórica, relacionam-no com os acontecimentos chaves da relação Deus-Israel, nomeadamente a travessia do Mar Vermelho e a teofania do Sinai247. Esta aproximação

permitia-lhes dar voz à sua visão social da relação ideal que, no presente, deveria existir entre Israel e Deus, marcada por um amor recíproco, expresso mediante os mandamentos. Assim, quer relacionando-o com os momentos fundadores do passado (Êxodo, travessia do Mar Vermelho, teofania do Sinai), quer com a história posterior de Israel na sua relação com os outros povos, esta leitura tipológica ajudou-os a criar um espaço social e hermenêutico para a sua piedade, assinalada por uma devoção afetiva para com Deus mediante os mandamentos248.

Esta tradição judaica, que podemos encontrar quer de modo transversal no Talmude249

quer mais consistentemente nos midrashim tanaíticos, não nos oferece uma interpretação continuada do Cântico dos Cânticos, mas refere-se-lhe sobretudo para explicitar a relação de amor que existe entre Deus e Israel através dos acontecimentos da história da sua redenção ou para a projetar numa perspetiva escatológica. Em ligação com a narração da história passada e presente de Israel, as Mekilta de Rabi Yishmael e de Sifre Bemidbar relacionam nomeadamente alguns versos deste epitalâmio com o dom da Tora no Sinai (Ct 1, 12 com Ex 19, 16); partem da íntima relação esponsal que existe entre o Esposo e a Esposa neste texto para apresentar a exclusividade da união de Deus com Israel perante as outras nações (Ct 4, 16 com Ex 15, 8) e, finalmente, usam alguns dos seus versos para dar novos sentidos à prática ritual judaica (Ct 4, 16; 5, 1 com Nm 7, 17)250.

Se a perspetiva histórica domina esta leitura alegórica, existe também uma interpretação proléptica, que, perante a realidade atual de dominação greco-romana em Israel, encontra no

Cântico dos Cânticos o sentido de um regresso a uma visão perfeita da relação de Deus com

Israel no futuro escatológico. Assim, os rabinos consideram Ct 4, 8 como uma prefiguração do

247 Cf. BONSIRVEN, J., «Exégèse allégorique chez les Rabbins tannaïtes», 40. 248 Cf. KAPLAN, J., My perfect one, 26-34.

249 Cf. PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 382-383. 250 Cf. KAPLAN, J., My perfect one, 47-61.

58 regresso escatológico de Israel à terra prometida. Esta leitura tem, porém, uma forte implicação no presente, pois serve para encorajar a fidelidade de Israel na sua relação atual com Deus251,

relação esta que, prefigurada também por este canto poético, tem a sua realização na experiência e prática rabínicas desta época tanaítica.

Esta hermenêutica, quer numa leitura tipológica historicista quer numa perspetiva escatológica, relaciona, portanto, geralmente um verso deste texto com um acontecimento ou personagem da história nacional de Israel, de modo que o epitalâmio sirva de contraponto às narrativas históricas numa dinâmica de intertextualidade e vice-versa 252. Por vezes, porém, o

mesmo verso pode ter muitos referentes: é o caso paradigmático de Ct 1, 8 que serve para caracterizar a experiência da entrada de Israel na terra prometida bem como a sua subjugação ao poder estrangeiro no primeiro século253. Compreendemos então que a hermenêutica judaica

não pretende interpretar este texto em si como algo isolado. Pondo-o em sinfonia com toda a Escritura e, vendo nele como que o resumo da Escritura pela expressão ideal da aliança de Deus com Israel que ele contém, ela é fundamentalmente prática, apelando a uma maior fidelidade de Israel, Esposa, ao seu Esposo. Esta dimensão realiza-se na liturgia da Pesah durante a qual este texto era lido in extenso, situando-o assim em referência com algo central da fé judaica, à qual dava inteligência e cor254.

Perante esta leitura diversificada que nos oferece a rica tradição judaica, podemos chegar à conclusão de que dois dados são fundamentais e invariáveis: o Cântico dos Cânticos é interpretado alegoricamente como epitalâmio do amor esponsal entre Deus e Israel e, como livro canónico, deve ser lido espiritualmente, pois foi para o progresso espiritual do povo que foi escrito, a fim de que Israel permaneça fiel à aliança com Deus, apesar das vicissitudes da história. No entanto, a multiplicidade das interpretações tipológicas e figurativas ou

251 Cf. KAPLAN, J., My perfect one, 65-67.

252 Cf. PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 386. 253 Cf. KAPLAN, J., My perfect one, 71-72.

59 prefigurativas deste texto levou a que se perdesse progressivamente, na exegese rabínica, a preeminência dada ao tema do amor nupcial entre Deus e Israel, como o seu tema principal255.

Notemos, por fim, que a tendência rabínica a atualizar sempre este texto, assim como a influência sociocultural greco-romana e sobretudo a polémica judeo-cristã dos primeiros séculos da nossa era, quanto à interpretação messiânica deste livro, irá reduzir progressivamente o papel dado ao Messias nesta interpretação tradicional judaica. Ora, acolhendo a tradição judaica nos seus grandes fundamentos e reconhecendo que toda a História da Salvação culmina em Cristo, é nesta dimensão messiânica, acentuada no cristianismo, que se manifestará a particularidade da tradição cristã: a relação esponsal Deus-Israel realiza-se agora e de modo definitivo na relação esponsal Cristo-Igreja, como veremos nos pontos seguintes.

2.2. N

A

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