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Estas duas palavras que parecem ser semanticamente sinónimos têm, quer pela sua etimologia quer pela perspetiva origeniana, algumas diferenças. Ambas traduzem a ação de desejar, mas com enraizamento e força diferentes. Cupio traduziria o grego ἐράω e significa etimologicamente «desejar vivamente», tendo na sua forma substantivada (cupido/cupidine) a tradução latina do ἒρως grego. Desidero, que traduziria o grego ἐπιθυμέω, significa, por sua vez, um “desejar” ou “procurar”, que surge da experiência duma ausência, contendo assim uma dimensão de saudades, sem forçosamente entrar no campo semântico da sensualidade coberto por cupio484.

Nas Homilias, o uso de cupio, que aparece com as suas variantes dez vezes (cupio,

cupiunt, cupidine, concupiui, concupisco, concupiscendum), traduz algo específico: trata-se de

um desejo interior forte, um movimento inato e natural, mas não automatizado, que orienta fundamentalmente a alma para as realidades espirituais485, mesmo se alguns, orientando-o mal,

podem fazer dele uma “paixão” terrena486, marcada pela concupiscência, que é uma deviação

infeliz do desejo487. Esta perspetiva origeniana reconhece bem que esta força que move a alma

é um dom de Deus e, portanto, encontraria nele a sua finalidade última. Neste sentido, não deixa de ser marcante que, o alexandrino, para se referir a esta dinâmica natural no De Principiis, já não use o neutro desiderium, mas fale de «rei ipsius cupiditas»488: este desejo é

484 Cf. ERNOUT, A., MEILLET, A., DELL, Klincksieck, Paris, 19513, 282-283 (cupio) ; 1101 (sidus/desidero).

485 Cf. ORÍGENES, HCt I, 2 (72-74): «Iam ipsius cupio ora contingere, ipse ueniat ipse descendat» ; «spiritali cupidine uel amore…» ; II, 9 (136): «sermo diuinus…suscitatur uero eorum uocibus, qui cupiunt sponso uigilante saluari».

486 Cf. ORÍGENES, HCt II, 8 (132): «Alius iaculum carnei amoris excepit, alius terreno cupidine uulneratus est».

487 Cf. ORÍGENES, HCt II, 12 (142): «Quando uideris mulierem ad concupiscendum earn, mors adscendit per fenestras uestras».

154 fundamentalmente o de piedade e comunhão com Deus, que leva o homem a conhecer Deus mercê das suas obras e da sua revelação em Cristo489.

O primeiro uso de cupio nas Homilias traduziria, segundo a letra, o estado duma esposa que está atormentada pelo desejo de se encontrar fisicamente com o seu esposo, depois de ter sido seduzida pelos seus nobres presentes, enviados mediante os seus mensageiros. Este estado natural de quem está apaixonado predispõe todo o seu ser a acolher o seu amado490. Reparamos

no duplo movimento da afetividade aqui expresso: recetiva aos “beijos” dos mensageiros, a Esposa, depois deste tempo de enamoramento, toma a iniciativa de afirmar o seu desejo mediante súplicas ao pai do Esposo; nela arde uma paixão491 de atingir os próprios lábios do

Esposo. Passando da letra ao espirito deste desejo, cupio traduz, no itinerário espiritual da alma já educada pela Igreja do AT, o ardente desejo que tem a Esposa de receber fisicamente o Esposo: é o pedido da sua Encarnação que ela manifesta. Estamos assim numa fase central do caminho em que a alma precisa de conhecer o Verbo pela sua humanidade: a importância da presença física fundamental para levar a decisão madura das núpcias entre amantes está aqui expressa.

A afetividade, neste estado, encontra na mediação da presença sensível492 o lugar da

satisfação do seu ardente desejo de se unir ao Verbo: é a fase da espera/procura da sua vinda493.

Não é, portanto, indiferente o modo como se deseja “atingir os lábios” do Esposo, pois o Verbo pode estar na alma, sem que esta o tenha reconhecido e só o grande ardor com que se o deseja

489 Cf. ORÍGENES, Princ. II, 11, 4 (402); CROUZEL, H., Origène et «la connaissance mystique», 107. 490 Cf. ORÍGENES, CCt I, 1, 3-4 (178).

491 As paixões que dizem algo do estado afetivo são por essência neutras e, acompanhando a constituição corporal do homem, visam sobretudo a sua perfeição: o desejo, a cólera, o temor, a ansiedade…são bons quando as realidades divinas são o seu objeto (cf. LEKKAS, G., Liberté et progrès chez Origène, 216-219).

492 A «teoria» platónica do conhecimento humano que parte do sensível para o inteligível (cf. CROUZEL, H., Origène et «la connaissance mystique», 13) ganha aqui em Orígenes uma particularidade: o sensível é assumido na sua sacramentalidade e constitui o ponto inicial e indispensável do conhecimento humano, abrindo- o a uma realidade superior [cf. ORÍGENES, Princ. IV, 4, 10 (428)]. Por isso, dado que neste mundo o nosso conhecimento dos mistérios é parcial, «através de um espelho, em enigma», só chegamos a conhecer o Verbo mediante a sua humanidade que, mesmo chamados a ultrapassar para contemplar a sua divindade, nunca conseguimos pô-la de lado completamente nem duravelmente (cf. CROUZEL, H., Origène et «la connaissance

mystique», 108).

155 (cupio e não desidero) pode levar a melhor reconhecer e acolher a sua vinda494. Há, portanto, a

necessidade de uma relação pessoal com Jesus, que não se pode limitar aos ensinamentos dos seus mensageiros, mas deve estabelecer-se pela experiência da sua humanidade até ao íntimo conhecimento da sua divindade. Por isso, é preciso que a alma tenha uma “paixão espiritual” (spiritali cupidine), fruto do toque esponsal do Verbo e duma decisão radical de abandonar o pecado, para poder aproximar-se de Jesus495. Mesmo que a tentação de pecar não se afaste

totalmente da alma que, tendo acolhido o Esposo no seu coração, se tornou formosa, é preciso purificar o seu olhar para poder ver retamente como “as pombas” e não cair na infelicidade da concupiscência, isto é, olhar a mulher do outro para a cobiçar (concupiscendum)496. A vigilância

deve ajudar ao reto uso dos sentidos corporais, para que estes não sejam portas por onde entram o pecado e a morte, mas expressões duma afetividade transfigurada em Cristo. Para lá chegar, a alma deve ter desejado ardentemente estar (concupiui) na sua “sombra”, a fim de que coberta, como na anunciação pela sua “sombra”, o Verbo encarne também nela. De facto, «o seu nascimento não começou apenas em Maria a partir duma sombra, mas, se fores digno, o Verbo de Deus nasce também em ti»497. Por fim, preferindo Cristo a tudo, é preciso ordenar em si a

caridade para poder, quando ele nos explica o sentido da Escritura, ser “ferida de caridade” e não, pelo contrário, ferida por “uma paixão terrena” (terreno cupidine)498.

Desidero, numa relação complexa com o desejo natural de conhecer a verdade (rei ipsius cupiditas), é, por sua vez, o desejo enraizado na vontade, como movimento anímico pelo

qual o sujeito, na sua existência concreta, constrói a sua subjetividade e personalidade

494 Cf. BERTRAND, F., Mystique de Jésus chez Origène, 54.

495 Cf. ORÍGENES, HCt I, 2 (74): se ouvir os ensinamentos de Jesus supôs uma preparação veterotestamentária, a alma que vê Jesus ensiná-la pode, porém, permanecer ainda distante. Para se aproximar dele, ouvi-lo de perto, já não como as multidões, mas como os discípulos, é preciso realizar um êxodo interior, libertando-se da escravidão do pecado e recebendo os perfumes do Esposo, que alimentam na alma uma paixão ou amor espiritual.

496 Cf. ORÍGENES, HCt II, 4 (116). 497 ORÍGENES, HCt II, 6 (126). 498 Cf. ORÍGENES, HCt II, 8 (132).

156 espiritual, pelo exercício do seu livre arbítrio499. A afetividade virada para o exterior, nesta sua

relação com a alteridade, é também expressão explícita da interioridade do sujeito.

Usado quatro vezes nas Homilias, unicamente na sua forma verbal (desiderat, desidero,

desideret, desideraui), o desejo assim manifestado traduz ativamente uma identidade, que se

reflete na vontade expressa do sujeito. Assim, para conhecer a Cristo, é preciso manifestar a vontade de ir ao seu encontro, aprendendo a reconhecê-lo presente na Escritura pela sua interpretação espiritual, o que implica um novo estilo de vida: viver “segundo o espírito” e não “segundo a carne”500; uma vez que se fez a experiência da sua presença, é preciso acolhê-lo na

nossa vida e desejar que ele fique connosco, mesmo que ainda não tenhamos a alma tão bela que possa ser a sua morada501; ora, para que o Verbo de Deus nasça em nós, devemos ter

desejado vivamente (concupiui) estar na sua “sombra”502 a fim de que, saciados pelos seus

frutos, passemos às realidades melhores, realizando-se assim na nossa alma a realidade da anunciação a Maria e da Encarnação do Verbo. De facto, «os progressos são sempre assim, visto que no início qualquer pessoa deseja (desideret) manter-se, pelo menos, na sombra da virtude»503.

Estas duas palavras traduzem, portanto, no contexto de um itinerário espiritual o papel dinâmico do desejo, que é chamado a ser orientado com reto discernimento para poder chegar ao seu fim sobrenatural. Compreende-se então que, na perspetiva do alexandrino, as esferas do natural e do sobrenatural não são sobrepostas, pois o natural está implicitamente contido no sobrenatural504. Este dinamismo inter-relacional, movido pelo desejo (cupiditas/desiderium),

manifesta assim que a afetividade da pessoa é, neste processo, um centro de iniciativa, feito de recetividade e atividade, em que o conhecimento do Esposo supõe uma reciprocidade de amor

499 Cf. CROUZEL, H., «L’anthropologie d’Origène : de l’archè au telos», 39.

500 Cf. ORÍGENES, HCt I, 2 (74) : «Necesse est igitur eum, qui audire scripturas spiritaliter nouit aut certe qui non nouit et desiderat nosse, omni labore contendere, ut non iuxta carnem et sanguinem conuersetur…». 501 Cf. ORÍGENES, HCt I, 7 (94): «Rursum igitur desidero eius aduentum et nonnumquam iterum uenit…».

502 Cf. ORÍGENES, HCt II, 6 (126): «Ego, inquit, desideraui in umbra eius requiescere…». 503 ORÍGENES, HCt II, 6 (126).

157 entre o Logos e o crente505. Sem ser ligada quer ao corpo quer ao espírito, a afetividade tal como

a alma, cujos movimentos ela exprime506, pode orientar-se totalmente para o corpo, isto é, para

as realidades terrenas, ou realizar a sua assunção, ao tender fundamentalmente para as realidades espirituais507.