• Nenhum resultado encontrado

Os grandes princípios hermenêuticos de Orígenes e as Homilias sobre o Cântico dos Cânticos

1.2. A TEORIA HERMENÊUTICA DE O RÍGENES : A AFETIVIDADE COMO

1.2.1. Os sentidos da Escritura e a preeminência da exegese espiritual

1.2.1.1. Os grandes princípios hermenêuticos de Orígenes e as Homilias sobre o Cântico dos Cânticos

Os princípios hermenêuticos origenianos constroem-se sobre três pressupostos doutrinais fundamentais142: toda a Escritura, na qual cada palavra inspirada tem o seu lugar,

deve ser espiritualmente útil para a salvação do seu intérprete 143; a unidade dos dois

139 Cf. CROUZEL, H., «Origène et le sens littéral dans ses “Homélies sur l’Hexateuque”», in BLE 70 (1969) 261.

140 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 7 (326-332).

141 Cf. HARL, M., «Introduction», 102. O vocabulário usado por Orígenes é sugestivo desta exigência: νοῦς, βουλή, λόγος, etc. todavia, Orígenes reconhece que mesmo o sentido literal, nos casos em que existe, pode contribuir à salvação dos “simples”, que não se elevam até ao sentido mais profundo que está sob “a letra” [cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 8 (332-334)].

142 Cf. SIMONETTI, M., Lettera e/o alegoria, 79. 142 Cf. SIMONETTI, M., Lettera e/o alegoria, 79.

37 Testamentos, centrada em Cristo mediante a leitura tipológica do AT, identificando assim o conteúdo espiritual com o conteúdo cristológico, dado que em Deus há um único Logos144; e a

dualidade estrutural de todo o universo criado (visível e invisível) que lhe permite defender a exigência de passar do sentido literal para aquele espiritual145. Neste último assenta sobretudo

a prática da alegoria, que nunca significa negação da letra, mas o seu desvelamento146. A

Escritura deve ser, portanto, interpretada de um modo digno de Deus147, em sintonia com a

Igreja, segundo a sucessão apostólica148 e sob a graça do Espírito Santo, numa atitude de oração

e de fé inquebrantáveis149.

Destes pressupostos derivam então os seguintes princípios fundamentais apresentados essencialmente no tratado De Principiis, mas também progressivamente descobertos e afirmados nas outras obras, à medida que interpreta a Escritura: para uma leitura digna da Escritura, temos de abandonar o sentido literal sempre que se trata das coisas absurdas, impossíveis e indignas de Deus150. Nestes casos, em que nos defrontamos com realidades

impossíveis historicamente, difíceis ou ilógicas literalmente, devemos procurar o seu sentido escondido151, pois assim o quis Deus na sua pedagogia para que não nos limitemos à letra, mas

passemos, pelo estudo, ao sentido espiritual que lhe é digno152. Para fazer esta caminhada

144 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 1, 6 (280-282).

145 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 2 (300-304). Falamos de dualidade e não de dualismo platónico, mesmo se a visão platónica dos dois mundos influencia Orígenes, porque nele não há uma separação/conflito entre o visível e o invisível, cuja origem é o único e mesmo Deus Criador, mas o primeiro é como que o sinal do segundo, a base que permite atingi-lo. Há portanto um esforço de harmonia entre a perspetiva platónica e a essência anagógica do Cristianismo (cf. ROUSSEAU, O., «Introduction», in ORÍGENES, HCt, 18).

146 Cf. DE LUBAC, H., Histoire et esprit, 278-279. Mostra-se nestas páginas que a prática alegórica origeniana não é uma mera réplica duma inteligência helénica, mas fundamenta-se sobretudo na convicção paulina de que devemos passar das realidades visíveis para as invisíveis, ir da criatura até ao criador. A exegese origeniana, segundo este autor, seria então um esforço para reconhecer o espírito na história ou «assegurar a passagem da história ao espírito».

147 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 9 (334-340). 148 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 2 (300).

149 Cf. ORÍGENES, EpGr, Cerf, Paris, 1969, 192-194 (SC 148).

150 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 3, 1 (342): «Quem será tão ignorante ao ponto de pensar, Deus como um agricultor, a plantar um jardim no Éden no lado do Oriente, a colocar uma árvore sensível e visível nesse jardim... Não podemos duvidar de que tudo isso, expresso numa história que parece ter sucedido, mas que não sucedeu corporalmente, indica de forma figurada certos mistérios».

151 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 3, 5 (362). Ele mostra aqui que a finalidade principal deve ser procurada no sentido espiritual, sobretudo quando o sentido literal parece impossível e absurdo. Neste caso, a alegoria é o método favorável.

38 ascética da “letra” ao “espírito”, a alegoria é o método adequado153. A sua prática deve

conservar, porém, estes dois modos de “ler” a Escritura quando possível, salvaguardando assim os seus três sentidos: literal, moral e espiritual154.

Estes princípios básicos são ilustrados, confirmados e completados nas suas Homilias

sobre o Cântico dos Cânticos. Com efeito, falando de Deus que ensinaria também os

“perfumistas” (Ex 31, 3. 11), na interpretação que faz das palavras da Esposa em oração, «que

ele me beije com beijos da sua boca» (Ct 1, 2), o nosso pregador afirma a necessidade de

compreender espiritualmente a Escritura para não reduzir as palavras divinas às simples historietas, indignas de Deus155. Este passo a fazer, já afirmado na sua obra De Principiis, ganha

aqui peso pela sua consequência na vida de cada ouvinte. Este deve esforçar-se «para não viver segundo a carne e o sangue», mas «tornar-se digno dos segredos espirituais» ao alimentar em si uma “paixão espiritual”, pois são mistérios que foram escritos e não fábulas156. Para poder

realizar este progresso, precisamos de deixar que seja o próprio Cristo a abrir-nos as Escrituras, pela sua graça, de tal modo que, com os olhos puros que são “pombas”, possamos compreender espiritualmente a Lei e os Evangelhos como estes querem ser lidos e proclamados157. Se a graça

divina é fundamental para a hermenêutica, o intérprete deve, porém, pela ascese que ordena a própria vida moral, mostrar-se digno dos tesouros contidos na Escritura. De facto, interpretando

153 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 6 (322-324): fundamentando-se na afirmação e prática paulina em Gl 4, 21-31, ele interpreta alegoricamente as figuras de Sara e Agar, Isaac e Ismael como símbolos das duas alianças.

154 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 4 (310-316).

155 Cf. ORÍGENES, HCt I, 2 (74): «Se estas coisas não fossem compreendidas no sentido espiritual, não seriam elas apenas historietas? Se não tivessem algum segredo, não seriam indignas de Deus?». Este princípio já estava afirmada em ORÍGENES, Princ. IV, 3, 1 (342).

156 Cf. ORÍGENES, HCt I, 2 (74); I, 4 (80); Princ. IV, 2, 9 (338-340). Poder-se-ia pensar que a necessidade de passar da letra ao espírito dizia apenas respeito ao Antigo Testamento, que era a “sombra” dos mistérios futuros realizados em Cristo, mas o nosso hermeneuta deixa bem claro que mesmo sob o véu dos textos evangélicos é preciso descobrir os mistérios divinos lá escondidos: a própria Encarnação do Verbo, pela dupla natureza de Cristo, aponta para isso.

157 Cf. ORÍGENES, HCt II, 4 (118): «Se compreendes espiritualmente a Lei, os teus olhos são pombas; se compreendes o Evangelho, como o próprio Evangelho quer ser compreendido e proclamado, verás que Jesus curava toda a doença e enfermidade (Mt 4, 23), não só naquele tempo, em que estas curas foram feitas de modo carnal, mas, cura ainda hoje, e não só naquele tempo desceu para junto dos homens, mas desce ainda hoje e está presente; pois, eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século (Mt 28, 20)». O sentido espiritual como sentido último encontra-se já afirmada em ORÍGENES, Princ. IV, 2, 7 (326-328).

39 o versículo «ordenai em mim a caridade» (Ct 2, 4), o alexandrino encontra nele o seguinte princípio: «A Palavra de Deus não é desordenada, nem prescreveu coisas impossíveis»158.

A partir deste princípio, compreende-se melhor «que a divina Escritura não fale em vão e não empregue nenhuma palavra por acaso»159. É, portanto, possível que haja uma ligação de

intertextualidade entre diversos livros da Bíblia, marcando a sua harmonia e oferecendo assim chaves interpretativas160. Se as diversas ocorrências duma palavra ou expressões em toda a

Escritura favorecem a sua interpretação pela filologia e facilitam assim a descoberta do seu sentido espiritual, sem passar necessariamente pelo uso da alegoria161, é também possível que

a mesma realidade receba nomes diferentes. Com efeito, «a Palavra de Deus designa, de forma adequada, a mesma coisa, conforme as circunstâncias, com diversos nomes»162, neste caso, a

tradição hebraica duma interpretação etimológica dos nomes e números, bem cara aos alexandrinos163 justifica-se à luz deste princípio. A necessidade da Escritura, como mediação

para o conhecimento dos mistérios divinos, e a profunda sede de quem livremente procura a Deus fazem com que, no texto bíblico, escrito totalmente num contexto da aliança, seja costume usar o imperativo em vez do optativo164.

Em todos estes princípios sobressai a convicção de que «as Escrituras contêm um sentido global, disperso em todas as partes tal como o pneuma divino é disperso em todas as partes do universo»165 e, por isso, a Bíblia é como que «um único livro» que oferece as suas

chaves hermenêuticas, para quem a sabe ler com atenção166.

158 Cf. ORÍGENES, HCt II, 8 (130). 159 Cf. ORÍGENES, HCt I, 8 (96).

160 A exegese origeniana está cheia das citações bíblicas, fazendo com que a Escritura seja a primeira língua da exegese, a primeira fonte de inspiração do pregador, deixando o Logos re-inscrever na sua alma e na dos seus ouvintes a sua Palavra [cf. MUNNICH, O., «Le rôle de la citation dans l’écriture d’Origène: étude des homélies sur Jérémie», in Orig. X (2011) 520-536].

161 Cf. SIMONETTI, M., Lettera e/o alegoria, 87. 162 Cf. ORÍGENES, HCt I, 3 (76).

163 Cf. SIMONETTI, M., Lettera e/o alegoria, 73; Origene esegeta, 22. 164 Cf. ORÍGENES, HCt I, 3 (76).

165 Cf. HARL, M., «Introduction», 101. 166 Cf. ORÍGENES, Phil. V, 5-6 (292-296).

40 Estes vários princípios que acabamos de apresentar concretizam-se na aplicação do método do triplo sentido da Escritura. Dúplice na sua essência, “letra” e “espírito”, a Escritura dá geralmente lugar a dois níveis de leitura: segundo a “letra” e segundo o “espírito”167.

Como se parte então de um duplo nível de leitura para um triplo sentido da sua receção? Entre os sentidos da Escritura e a antropologia espiritual há uma intrínseca relação. Com efeito, a partir do já mencionado princípio segundo o qual toda a Escritura é útil para a edificação e salvação do homem, conclui-se que ela deve edificar o homem todo na sua tríplice dimensão: corpo, alma e espírito. Por conseguinte, o sentido literal, histórico ou corporal constitui o “corpo” do texto enquanto o sentido escondido pode aplicar-se quer à alma, dando assim o sentido moral, quer ao espírito, constituindo o sentido espiritual168. A estrutura tríplice substitui,

então, a ideia fundamental duma dupla lisibilidade dos textos, pois Deus quis que a Escritura fosse constituída à imagem do homem, seu destinatário169. Este argumento antropológico,

baseado na doutrina paulina do homem como corpo, alma e espírito (1 Th 5, 23), realiza o preceito divino (Pr 22, 20) e afirma a pedagogia divina de salvar, não só o homem integral, mas sobretudo os três tipos de homem: os “simples”, os “proficientes” e os “perfeitos”.

Temos subjacente a esta relação entre antropologia e hermenêutica, uma simbologia do progresso espiritual que testemunha a relação pessoal de cada crente com Deus170. Neste nexo

de contacto se situa o estatuto ontológico da afetividade que apresentaremos mais tarde. Convém agora vermos o lugar reservado a cada sentido da Escritura, partindo dos dois modos de leitura.

167 Cf. ORÍGENES, CIo XXXII, §268-269 (302). 168 Cf. HARL, M., «Introduction», 103.

169 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 4 (312). 170 Cf. HARL, M., «Introduction», 104-105.

41