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b) O sentido espiritual ou místico

3. O RÍGENES E O C ÂNTICO DOS C ÂNTICOS

3.2. O RÍGENES , COMENTADOR E PREGADOR DO C ÂNTICO DOS

3.2.2. Orígenes como pregador

Contrariamente ao seu Comentário, cuja extensão e estilo escolar, se dirige mais a crentes com uma grande formação intelectual e uma certa maturidade espiritual, combatendo ao mesmo tempo algumas correntes gnósticas, mormente a metafísica valentiniana326, nas

Homilias sobre o Cântico dos Cânticos, com um estilo mais simples, predomina o tom

exortativo, apelando à conversão dos ouvintes. Todavia, este estilo próprio das homilias, marcado pelo contexto litúrgico, não reduz em nada o rigor exegético do alexandrino na

322 Cf. ORÍGENES, CCt II, 4, 1-3 (330-332); 11-12 (334-336). O sentido tem uma tão grande importância que o nosso autor não hesita a explica-lo e voltar a explicitá-lo se necessário, como é o caso aqui.

323 Cf. LETTIERI, G., «Origene interprete del “Cantico dei Cantici”: la risoluzione mística della metafisica valentiniana», 141-186.

324 Cf. MONTEIRO, A. T., Os sentidos espirituais no Comentário ao Cântico dos Cânticos de Orígenes, 52.

325 Cf. ORÍGENES, HCt I, 1 (70).

326 Cf. LETTIERI, G., «Origene interprete del “Cantico dei Cantici”: la risoluzione mística della metafisica valentiniana», 141-142.

76 formação dos cristãos pela interpretação continuada, verso a verso, deste epitalâmio, para que todos cheguem à perfeição do amor pelo Esposo327. Dirigindo-se a um público, fortemente

composto por “principiantes”, convida-o a desejar ser como a Esposa e apresenta-lhe, pela escada de sete cânticos bíblicos, interpretados à luz do cristianismo, o itinerário espiritual que deve fazer para poder lá chegar328. Por isso, a relação do pregador com o texto tal como o lugar

do destinatário são marcados por uma maior subjetivação do que no Comentário:

«Observa diligentemente qual das duas derramou o perfume sobre a cabeça do Salvador… Observa, digo-te, e verás que, no texto evangélico, não são fábulas e narrações que foram escritas pelos evangelistas, mas são mistérios que foram escritos»329.

O itinerário espiritual traçado nestas Homilias, que culmina no poder cantar festivamente o epitalâmio como Esposa, implica uma maior vigilância e participação do destinatário na arte interpretativa do pregador. Por isso, exorta-o a abrir-se à compreensão deste texto com o propósito de o viver, pois o caminho que lá conduz implica purificação e maturação espiritual330. A seguinte frase é uma das muitas exortações que afirmam a necessidade do

progresso espiritual neste itinerário: «e quando tiveres atravessado tudo isso, sobe mais alto ainda, para que possas, ó alma bela, cantar também com a Esposa este Cântico dos Cânticos»331.

Dado que o objetivo nas Homilias é incitar o destinatário, que está ainda num processo de purificação, ao amor espiritual332, Orígenes, inserindo-o progressivamente no drama,

espiritualmente interpretado, convida-o a comunicar «como a Esposa com os sentimentos do

327 Reparamos que a diferença entre os versos comentados, que possuímos na versão latina de Rufino, e aqueles apresentados nas suas Homilias é apenas de um verso: o Comentário trata de Ct 1, 1-2, 15, enquanto as

Homilias tratam de Ct 1, 1-2, 14.

328 Cf. ORÍGENES, HCt I, 1 (66-68).

329 ORÍGENES, HCt I, 4 (80): «Diligenter obserua, quae de duabus super caput fuderit Saluatoris (…). Obserua, inquam, et inuenies in euangelica lectione non fabulas et narrationes ab euangelistis, sed mysteria esse conscripta».

330 Cf. PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 260-263.

331 ORÍGENES, HCt I, 1 (68). O carácter superlativo do Cântico dos Cântico afirmado por uma analogia com «o Santo dos Santos» e «o Sábado dos Sábados», tal como o seu septenário de cânticos bíblicos, que tem o seu cume neste epitalâmio, afirmam logo no início destas Homilias a maturidade espiritual, fruto desse itinerário, que é preciso ter para o ler e compreender profundamente.

77 Esposo»333. Esta dimensão exortativa, parenética e formativa, própria da pregação, leva a que

o procedimento aqui seja menos focalizado na elaboração e afirmação da excelência dos ensinamentos de Cristo, como no Comentário, mas conduza a alma do destinatário a Cristo, apresentando-lhe a sua excelência e beleza como Esposo em contraste com a nossa condição de pecadores334. Por conseguinte, se em ambas as obras a interpretação começa com o texto e

só é completa pela participação do destinatário, os caminhos que levam à participação deste no sentido espiritual do texto é diferente. Nas Homilias, em que a interpretação de cada cena do drama é mais sintética, é-nos oferecido apenas o sentido espiritual, interpretando o epitalâmio imediatamente como drama de amor entre Cristo e a Igreja.

A dupla interpretação feita no Comentário, quanto à Igreja e à alma, reduz-se aqui principalmente à relação esponsal Cristo-Igreja335, em que o que se diz da Igreja é muitas vezes

implicitamente referido à alma, chamada a ser Esposa de Cristo, como a Igreja, bela e sem mancha (Ef 5, 27)336. Temos assim uma condensação, ditada pela própria especificidade do

destinatário e do contexto litúrgico, que geralmente segue as seguintes etapas337: a explicação

espiritual dos trechos que integram cada unidade interpretativa; um convite parenético a viver como a Esposa, mesmo que se esteja ainda no estado das donzelas e, finalmente, uma implicação do destinatário no diálogo338.

333 ORÍGENES, HCt I, 3 (78): «Communica ut sponsa cum sensibus sponsi».

334 Cf. TORJESEN, K. J., Hermeneutical procedure and theological method in Origen's exegesis, 60-61. 335 Cf. ORÍGENES, HCt I, 1 (68): a explicação espiritual das personagens deste drama, aqui apresentada, identifica fundamentalmente a Esposa com a Igreja. A alma, que neste caso não se distingue do destinatário, é colocado entre as outras personagens, consoante o estado do seu progresso, e é chamada a ser Esposa.

336 Cf. ORÍGENES, HCt I, 3 (78-80); I, 6 (88-90): nestes fragmentos em que temos uma aplicação explícita à alma, há quer uma insinuação de que esta alma, a do pregador, já se tornou Esposa de Cristo, quer um convite a sê-la pela penitência. Karen Jo TORJESEN afirma mais categoricamente que nas Homilias é omissa qualquer referência especial à alma (cf. TORJESEN, K. J., Hermeneutical procedure and theological method in

Origen's exegesis, 58).

337 Cf. PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 262 : antes de apresentar estas três etapas, conforme está no nosso texto, esta autora sublinha que a condição requerida é ter a experiência da situação encenada para poder ler e compreender.

338 Temos um exemplo disso em HCt II, 2 quando interpreta Ct 1, 12: «o meu nardo ofereceu o seu odor». Depois de dar o sentido espiritual deste verso, numa intertextualidade com os Evangelhos, as duas etapas seguintes são realizadas na seguinte frase: «E Tu, toma então o nardo para que, depois de o teres derramado como suave odor sobre a cabeça de Jesus, possas dizer corajosamente: o meu nardo ofereceu o seu odor e possas ouvir esta resposta de Jesus porque onde quer que for proclamado este Evangelho, dir-se-á também, em memória dela, o que

78 Se o pregador é mais avançado que o seu destinatário, as Homilias não são, porém, o palco de um discurso de mestre, mas o lugar de um encontro em que o pregador se faz pastor que caminha com o seu destinatário pelas dificuldades e desafios colocados pelo texto e o progresso espiritual que a sua compreensão pede339. Isto é tão importante que o alexandrino,

numa passagem única em seu género na antiguidade340, partilha com o seu destinatário a sua

própria experiência mística, marcada por uma experiência da presença/ausência do Esposo:

«Em seguida, ela olha para o Esposo, que, depois de ter sido visto, desapareceu. Isto acontece também frequentemente em todo este cântico, o que só pode compreender aquele mesmo que o experimentou. Muitas vezes, Deus é testemunha, vi que o Esposo se aproximava de mim e estava comigo o quanto possível; de repente, ele foi-se embora e não pude encontrar quem procurava. De novo, desejo então a sua vinda e, por vezes, ele volta; e quando ele me aparece e que o tenho em minhas mãos, ele se me escapa novamente e, tendo-se escapado, ele é, de novo, procurado cuidadosamente por mim e ele faz isso frequentemente, até que o segure verdadeiramente e suba, apoiada no meu bem-amado (Ct 8, 5)»341.

Esta experiência do pregador mostra bem não só a relação indefetível que há entre experiência espiritual e compreensão deste epitalâmio, mas também comprova que é possível ao seu destinatário tornar-se Esposa e que o progresso espiritual é uma realidade continuada, pois o Esposo nunca será totalmente agarrado.

Em suma, será que as Homilias são apenas um «aperitivo» para o Comentário, como testemunha São Jerónimo342? O que é que distingue fundamentalmente estas duas obras

origenianas sobre o Cântico dos Cânticos? Acreditamos que, em termos de erudição e extensão,

339 Cf. ORÍGENES, HCt I, 8 (96): «Quem de nós, pensas tu, é digno de chegar até ao meio-dia para ver onde o Esposo apascenta e está deitado ao meio-dia?».

340 Cf. PELLETIER, A.-M., Lectures du Cantique des Cantiques, 273.

341 ORÍGENES, HCt I, 7 (94-96): «Deinde conspicit sponsum, qui conspectus abscedit. Et frequenter hoc in toto carmine facit, quod, nisi quis ipse patiatur, non potest intelligere. Saepe, Deus testis est, sponsum mihi aduentare conspexi et mecum sse quam plurimum ; quo subito recedente, inuenire non potui quod quaerebam. Rursum igitur desidero eius aduentum et nonnumquam iterum uenit ; et cum apparuerit meisque fuerit manibus comprehensus, rursus elabitur et, cum fuerit elapsus, a me rursus inquiritur et hoc crebo facit, donec illum uere teneam et adscendam innixa super fratuelem meum (Ct 8, 5)».

79 as Homilias sejam, pela natureza do seu destinatário, um “aperitivo” que poderá introduzir o incipiente numa hermenêutica mais complexa que, no Comentário, se destina aos “perfeitos”. Se aquelas interpretam o epitalâmio, descobrindo nele a excelência de Cristo, que deve atrair a alma em progresso, este revela-a sob o prisma da excelência dos seus ensinamentos, mas em ambas as obras o sentido atual da interpretação é essencialmente idêntico. As Homilias não pretendem, portanto, ser um resumo ou versão simplificada do Comentário. Estes dois trabalhos exegéticos diferem entre si sobretudo pela pedagogia mediante à qual o destinatário é integrado na interpretação espiritual do texto e dele participa343. Por outro lado, as Homilias, que retraçam

um itinerário espiritual marcado por um progresso até ao estado de alma santa, feita Esposa de Cristo, mediante penitência e ascese, apresentam de modo mais claro, em oito cenas, o enunciado dramático do epitalâmio que interpreta344. Este itinerário desenha também melhor a

importância duma relação afetiva do incipiente com Cristo, que lhe é apresentado na sua beleza, como o Esposo a quem se deve unir como o faz a Igreja, Esposa.