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f) Amor/dilectio/caritas

2. A AFETIVIDADE , CHAVE HERMENÊUTICA NAS H OMILIAS

2.2. U MA EXEGESE ORIENTADA PARA A FRUIÇÃO DOS SENTIDOS ESPIRITUAIS

A exegese praticada nas Homilias, pela grande rede relacional que constrói, aponta para uma decisão vital de adesão integral ao Esposo, seguindo-o pelos caminhos da sua vida na carne até aos seus mistérios escatológicos. Este progresso para a visão beatífica, ponto culminante do itinerário espiritual, realiza-se no “Caminho” que é Cristo (Jo 14, 6) pela obediência às suas exortações, traduzindo assim a forte relação afetiva e cognoscitiva que deve existir entre quem caminha e o Esposo714. Tal foi também a própria experiência do alexandrino, marcada por um

amor apaixonado e terno por Cristo715. A exegese que favorece este crescimento relacional e se

enriquece também com ele tem uma grande implicação antropológica e moral a partir da fruição dos sentidos espirituais que ela possibilita.

Se a Esposa por excelência é a Igreja no seu mistério (Ef 5, 27), com ela a alma chegada à perfeição é também Esposa e, nela, cada alma crente, inserida nesta rede de relações que a constitui, caminha com as outras para a mesma finalidade: unir-se ao Esposo. Por isso, harmonizando dimensão comunitária e dimensão pessoal do crescimento espiritual em tensão

712 Cf. ORÍGENES, HCt II, 5 (122): «trabalha tu também para travejar a tua casa, para que de ti se possa dizer: as vigas das nossas casas são de cedro e os nossos pavimentos são de cipreste (Ct 1, 17)».

713 Cf. ORÍGENES, HCt I, 8 (96): «Quem de nós, pensas tu, é digno de chegar até ao meio-dia para ver onde o Esposo apascenta e está deitado ao meio-dia?».

714 Cf. CROUZEL, H., Origène et «la connaissance mystique», 347-350. 715 Cf. BERTRAND, F., Mystique de Jésus chez Origène, 153.

194 esponsal, as Homilias oferecem-nos algumas condições subjetivas necessárias para que os frutos de um tal progresso hermenêutico e espiritual deem conta da Árvore na qual somos enxertados, Cristo, o nosso Esposo e Salvador.

Se a graça divina oferecida a todos é fundamental para desvendar os mistérios escondidos sob a letra do epitalâmio, é numa “relação recíproca”716 e consoante o esforço

ascético-espiritual de cada um que eles se tornem mais evidentes ou não717. Assim, para poder

dar frutos como a Esposa no termo da segunda Homilia, é preciso começar por exercitar a inteligência718 através do estudo e da meditação das Escrituras719, pois o exercício é também

necessário aos sentidos espirituais, que em nós desenvolvem a conaturalidade com Deus720.

Neste sentido, perscrutando e escutando a Escritura, a personalização da relação com o Verbo de Deus começa pelos sentidos corporais da visão e da audição721, que progressivamente

conduzem à “visão” e “audição” espirituais, quando se recebe misticamente a visita do Verbo, a sua Encarnação na alma722. Todavia, para poder aproximar-se do Verbo e falar-lhe de perto,

não basta ter uma erudição bíblico-doutrinal, é preciso ter subido pelos méritos da vida até que, na oração, estejamos como a Esposa dignos de em nós se cumprir esta palavra profética: «enquanto tu ainda estás a falar, dir-te-ei “eis-me aqui”» (Is 65, 24). Portanto, é o bom odor duma vida moral e ascético que predispõe a uma tal proximidade723.

O estudo e a meditação da Escritura não só favorece uma melhor hermenêutica do epitalâmio, como se pode verificar pela prática abundante da intertextualidade, mas sobretudo

716 Cf. ORÍGENES, CC VI, 57 (332). 717 Cf. ORÍGENES, CC VI, 13 (210).

718 Cf. ORÍGENES, Princ. I, 1, 6 (102): «Non enim corporalibus incrementis simul cum corpore mens usque ad uicesimum uel tricesimum annum aetatis augetur, sed eruditionibus adque exercitiis adhibitis acúmen quidem elimatur ingeni…».

719 Cf. ORÍGENES, HCt 1, 1 (66-68): percorrer os grandes cânticos da Escritura como preparação para cantar o epitalâmio traduz, porventura, esta condição necessária.

720 Cf. CROUZEL, H., Origène et «la connaissance mystique», 401.

721 A fase preliminar que consiste em percorrer o AT [cf. ORÍGENES, HCt 1, 1 (66-68)] mediante os seus diversos cânticos traduz este exercício da visão pela leitura da Escritura e da audição, ouvindo a sã doutrina, que constitui o enamoramento da Esposa. Esta personalização relacional que começa por estes dois sentidos é claramente afirmada em ORÍGENES, CCt IV, 1, 2 (678).

722 Cf. ORÍGENES, HCt 1, 2 (72): «Ao ver aquele, por cuja vinda suplicava, ela pára de orar e, junto dele, fala-lhe de perto…».

195 permite no plano ascético-moral que a alma se vá libertando progressivamente do domínio da “carne”, entrando em sintonia espiritual com os sofrimentos e alegrias do divino Esposo: eis a segunda condição subjetiva dominada pelo combate espiritual724. A alma, que é «disputada pela

carne e pelo espírito», pode deleitar-se no «amor carnal que vem de Satanás» ou construir a sua morada no amor espiritual, cujo princípio é Deus725. Ora, para poder dar frutos de vida em

Cristo, é preciso ser conduzido pelo amor espiritual, colocando-se acima do corpóreo e do sensível, sem os negar, pois se o pecado que obscurece em nós a imagem divina tem algo a ver com a matéria, não se confunde com ela. Por isso, para que esta nossa essência superior, o “segundo a imagem”, não corra o risco de receber a imagem do terrestre726, a nossa vida moral

deve testemunhar a opção preferencial pelos frutos do espírito:

«Se desprezaste todas as realidades carnais, não digo apenas a carne e o sangue, mas também o dinheiro e as posses, a própria terra e o próprio céu – estes, de facto, passarão (Mt 24, 35) - se desprezaste tudo isso, e se a tua alma não está constrangida por nada disso, e se não estás preso por nenhum amor dos vícios, então poderás compreender o amor espiritual»727.

Na impossibilidade de viver, neste mundo, sem pecado como Cristo, a alma deve, porém, renunciar ao pecado, combatê-lo com todas as suas forças e, se pecar, deve “voltar-se para Deus”, reconhecer o seu pecado e fazer penitência para que, não matando em si os seus sentidos espirituais, possa atrair até junto de si o Esposo, reconhecer a sua presença na Escritura meditada, mediante o “entusiasmo”, e ser bela na sua presença728. Esta terceira condição liga-

se profundamente à necessidade da virtude para a fruição dos sentidos espirituais, que

724 Cf. NICULESCU, M. V., «Changing Moods: Origen’s Understanding of Exegesis as a Spiritual Attunement to the Grief and the Joy of a Messianic Teacher», 179-196.

725 Cf. ORÍGENES, HCt 1, 2 (74).

726 Cf. CROUZEL, H., Origène et Plotin: comparaisons doctrinales, 402-403.

727 ORÍGENES, HCt 1, 2 (74-76): «Si omnia corporalia despexisti, non dico carnem et sanguinem, sed argentum et possessiones et ipsam terram ipsumque caelum — haec quippe pertransibunt (Mt 24, 35) —, si ista omnia contempsisti et ad nullum horum tua anima colligata est neque quoquam uitiorum amore retineris, potes amorem capere spiritalem».

196 testemunham uma maior intensidade relacional com o Esposo729, como ele disse: «sem mim,

nada podeis fazer» (Jo 15, 5).

Com estas três condições mais recorrentes nas Homilias, podemos concluir que o progresso da alma para Deus contém sempre uma dimensão ascética e uma dimensão espiritual que não podemos dissociar. Com efeito, se a finalidade desta exegese é conduzir-nos a uma melhor adesão ao Esposo, cujo cume é a união esponsal e a sua consequência positiva é a fruição dos sentidos espirituais, o caminho para lá chegar integra claramente uma vida de virtudes, marcada pela rejeição de tudo o que possa ser obstáculo a tal objetivo, isto é, o pecado e um agarrar-se à “carne”, mas também pela imitação do Modelo, participando das virtudes que ele é por essência730. Por isso, modelada progressivamente pela Palavra de Deus, a nossa

afetividade deve encontrar na Sabedoria divina o sujeito da sua paixão e deixar-se transformar nela:

«Tu então, que és espiritual (1 Cor 3, 1), ouve espiritualmente ser cantadas estas palavras de amor e aprende a levar para as coisas melhores o movimento da tua alma, tal como o ardor do teu amor natural, segundo a seguinte palavra: ama-a (a sabedoria) e ela guardar-te-á; rodeia-a e ela exaltar-te-á (Pr 4, 6)»731.