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f) Amor/dilectio/caritas

3. U MA ONTOLOGIA DA AFETIVIDADE

O itinerário espiritual delineado pelas Homilias inscreve-se numa rede relacional, mas sobretudo enfatiza o “jogo de sedução” mediante o qual os amantes do epitalâmio, na afirmação

729 A unificação interior que deriva do cumprimento desta terceira condição afirma a singularidade do homem, como ser para Deus, em vista da sua semelhança com o Logos: tudo isso são sinais de uma afetividade redimida na Páscoa do Senhor, como veremos mais tarde [cf. SKALTSAS, G., «La question de l’extase chez Origène et Grégoire de Nysse», in Orig. XI (2016) 704-711].

730 Cf. CROUZEL, H., Théologie de l’image de Dieu chez Origène, 217-245.

731 ORÍGENES, HCt II, 1 (104): «Tu igitur, ut spiritalis (1 Cor 3, 1), audi spiritaliter amatoria uerba cantari et disce motum animae tuae et naturalis amoris incendium ad meliora transfere secundum illud: Ama illam,

197 profunda das suas liberdades se procuram, se desejam e se atraem732. Todo este dinamismo

realiza-se numa atitude de progresso espiritual, mediada pelo aprofundamento gradual do sentido místico da Palavra de Deus, tornado possível pela vinda/Encarnação do Esposo. Por isso, cientes de que para o alexandrino a exegese leva à vida espiritual e vice-versa, pretendemos agora, depois de ter analisado a riqueza exegética das Homilias e as suas implicações relacionais na vida do crente, aprofundar a teologia espiritual que possibilita, alimenta e brota desta exegese. Ora, a dimensão relacional fundamental para que haja uma vida espiritual cristã e o campo experiencial do encontro com o Esposo que defina a teologia espiritual ajudam-nos a pensar que a própria teologia espiritual das Homilias desenvolve-se num espaço essencialmente afetivo, pois vida e afetividade são indissociáveis733. Para isso,

depois de descobrirmos qual o estatuto ontológico da afetividade, o que nos levará à pré- existência com o mistério da Criação, o nosso itinerário espiritual que se inscreve na dinâmica que vai do arché ao télos permitir-nos-á ver como é que a afetividade colabora neste progresso que dividimos em três grandes fases: o noivado, a Encarnação do Verbo e seus efeitos e a realização plena das núpcias na consumação escatológica734.

A afetividade que descobrimos em Orígenes como predisposição natural a ser tocado e relacionar-se com Deus e toda a criação de forma pessoal e personalizada liga-se diretamente a temas como a criação do homem “segundo a imagem” para a semelhança divina, reservada no fim e a sua sensibilidade espiritual, pela qual pode atingir Deus na sua essência, Ele que é “espírito”, «natureza intelectual simples»735 e «Criador de todas as coisas»736.

732 Cf. MONTEIRO, A. T., Os sentidos espirituais no Comentário ao Cântico dos Cânticos de Orígenes, 287.

733 Cf. BERNARD, C. A., Théologie affective, 371-374. A subjetivação usada na hermenêutica origeniana dá conta desta realidade.

734 Esta subdivisão em três fases da história de amor que une o Verbo a sua Esposa respeita os próprios dinamismos das Homilias e vai ao encontro do que apresenta CASTELLANO, A., «La Encarnación como fundamento del progresso en el Comentario al Cantar de los Cantares de Orígenes», 505-516; CHÊNEVERT, J.,

L’Église dans le Commentaire d’Origène sur le Cantique des Cantiques, Desclée de Brouwer, Bruxelles-Paris,

1969: o início do mistério (cap. 1-4); a Encarnação (cap. 5-6); a Igreja e a perfeição com grande teor escatológico (cap. 7).

735 ORÍGENES, Princ. I, 1, 6 (100): «intellectuals natura simplex». 736 ORÍGENES, HCt II, 1 (104): «uniuersitatis conditor Deus».

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3.1. A

CRIAÇÃO DO HOMEM

SEGUNDO A IMAGEM

PARA A SEMELHANÇA DIVINA

A criação não constitui, para Deus, uma saída da ociosidade ou uma mutabilidade no seu Ser, mas o fruto do seu Amor, pois ele é eternamente imutável e Criador: eis a conceção básica de Orígenes que, partindo da regula fidei e com uma argumentação de influência platónica, recusa a coeternidade das criaturas com o Criador tal como qualquer mutabilidade em Deus. Assim, para conciliar a natureza imutável de Deus e a sua essência de Criador, ele emite a hipótese da coeternidade da criação, que sempre existiu na «Sabedoria de Deus substanciada»737 em «prefiguração e preformação antes de ser realizada substancialmente a

seguir»738. Esta distinção substancial entre a Trindade divina e a Criação faz com que a relação

que surge entre Deus e as suas criaturas, sobretudo as racionais, em nada seja intrinsecamente livre, ainda que estas tenham sido feitas para participar da sua natureza divina, crescendo no seu ser quanto maior for a relação com o seu Criador: a distinção entre imagem e semelhança ganha assim maior relevância.

Na perspetiva origeniana, “a imagem de Deus” segundo a qual foi criado o homem é Jesus Cristo, Sabedoria e Filho eterno do Pai por quem «todas as coisas foram feitas»739, porque

«a imagem identifica-se nele com a filiação, visto que ele possui a divindade e as virtudes que lhe são inerentes de modo substancial»740. Cristo, o Logos de Deus, é o mediador entre Deus e

o homem. Por isso, o alexandrino distingue o “segundo a imagem” da semelhança, situando o

737 Cf. ORÍGENES, Princ. I, 2, 2 (112): «…unigenitum filium dei sapientiam eius esse substantialiter subsistendem».

738 ORÍGENES, Princ. I, 4, 5 (172): «…secundum praefigurationem et praeformationem semper erant in sapientia ea, quae protinius etiam substancialiter facta sunt».

739 ORÍGENES, Princ.I, Praef. 4 (80).

199 primeiro na criação como o germe do segundo, chamado a desenvolver-se sob a ação da graça divina e com a adesão do livre arbítrio para atingir a semelhança perfeita na visão beatífica741.

Interpretando a dupla criação relatada em Gn 1, 27; 2, 7 à luz de São Paulo (2 Cor 4, 16; Rm 7, 22), ainda que sem ignorar a doutrina platónica do laço de parentesco que existe entre a alma humana e as realidade divinas742, retomada por Filão de Alexandria743, Orígenes

reconhece que temos em nós os dois homens: o “homem interior” e o “homem exterior”744.

Assim, estas duas narrativas da criação traduzem, para o alexandrino, duas ações divinas testemunhadas na Escritura pelo uso dos verbos ποιεῖν e πλάσσειν, respetivamente. Este facto leva-o a reconhecer que a criação segundo a imagem não é corpórea745, ainda que a sua

dignidade resplandeça também sobre o corpo746: o “segundo a imagem” encontrar-se-á então

na parte superior da alma, que é guiada diretamente pelo pneuma, dom divino ao homem como «órgão da consciência moral»747. A alma, como cerne da vida moral virtuosa, da contemplação

e da oração, do livre arbítrio e, portanto, da personalidade, tem em si a “sensibilidade divina”, mantendo uma dialética com o pneuma748. O corpo, que não é consequência da queda original,

«é o templo daquele que recebeu pela sua participação à imagem de Deus os (carateres) divinos, daquele que tem a alma assim feita e encontra Deus na sua alma por meio do “segundo a imagem”»749.

O facto de fazermos alusão aos componentes do homem leva-nos a considerar sucintamente a antropologia origeniana na sua tricotomia paulina (1 Ts 5, 23) – corpo, alma e espírito –, para melhor percebermos como é que esse conjunto integra o caminho que parte da pré-existência à beatitude escatológica. Antes de mais, Orígenes reconhece que «a ação

741 Cf. CROUZEL, H., Origène et Plotin: comparaisons doctrinales, 403. 742 Cf. CROUZEL, H., Théologie de l’image de Dieu chez Origène, 147. 743 Cf. ROUSSEAU, O., «Introduction», 19-20.

744 Cf. ORÍGENES, CCt Prol. 2, 4-5 (92-94).

745 Cf. ORÍGENES, Princ. I, 2, 6 (122): a imagem implica, na conceção do alexandrino, uma unidade de natureza e substância com o protótipo, por isso, só o Verbo é imagem de Deus e o homem é segundo a imagem.

746 Cf. ORÍGENES, CC VI, 63 (338).

747 Cf. CROUZEL, H., Théologie de l’image de Dieu chez Origène, 154-157. 748 Cf. CROUZEL, Origène, 125.