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Por séculos, a realidade encontrada na Europa indicou que não havia um espaço claro para a infância. Sem as informações sanitárias necessárias ligadas à higiene e profilaxia de doenças era comum tanto a mortandade materna quanto a infantil. Os cuidados mais diretos com a criança eram estabelecidos nos primeiros dias de vida e prosseguia no convívio com adultos e crianças, não necessariamente seus familiares. Ainda não havia o conceito de privacidade e as crianças eram inseridas no mundo adulto onde participavam plenamente.

O conceito de infância só começou a ser delineado do século XII ao XVII, pois segundo Philippe Ariès apud Silva que divide didaticamente sua análise em períodos, sendo que:

No primeiro período, segundo ele, a criança era considerada um adulto em miniatura por não haver distinção entre o mundo adulto e o mundo infantil, ou seja, a criança "ingressava na sociedade dos adultos". No segundo período, conforme evidencia o teórico, ocorreu uma mudança na perspectiva de criança. Agora, a sociedade passa a prezar pela inocência da mesma, portanto, a separa da vida dos adultos ao enclausurá-la na instituição escolar sob vigia dos preceptores (professores). Por fim, o terceiro período é caracterizado pela consolidação do conceito de infância. Ariès destaca que, neste período, a criança começa a ocupar o lugar central da família. (2011, p. 01).

Neste último período a percebe-se que a educação das crianças foi se estruturando e começou a ser de exclusiva responsabilidade da família e, sobretudo à mulher eram imputadas tarefas ligadas aos cuidados com a nova vida.

Educar a infância é a melhor e mais sólida maneira de introduzir mudanças e transformações sociais. A infância, entendida em primeira instância como potencialidade é, afinal, a matéria-prima das utopias, dos sonhos políticos dos filósofos e educadores.

No Currículo em Construção20 que versa sobre as Diretrizes Curriculares de Educação Infantil (1998) está escrito que “pensar a condição infantil é importante, porque retira a criança da falácia de uma infância única, universal, comum a todas as crianças de todas as faixas etárias, fazendo aparecer às inúmeras diferenças de

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SME. DEPE. Currículo em Construção- Educação Infantil elaborado em 1998, atualmente está sendo elaborada as Diretrizes Curriculares da Primeira Etapa da Educação Básica da Educação Infantil pública do município de Campinas.

56 infâncias” (p.13).

Moyses Kullman (1998) explicita que “todos os pequenos passam por determinadas idades e são crianças, mas nem todos têm oportunidades de vivenciar a infância enquanto direito social, ou seja, nem todos têm direito ao lúdico, ao exercício de todas as competências infantis, ao não trabalho” (apud CURRÍCULO EM CONSTRUÇÃO, 1998, p.12).

Pensando assim há necessidade de discutir a infância num contexto sócio cultural, partindo das relações sociais e caminhando para a dimensão cultural.

A criança é produtora e consumidora da cultura e as brincadeiras ininterruptas e cíclicas, construídas e renovadas a cada minuto, oferecem, a seu modo, negação da racionalidade do mundo adulto, cuja relação tempo- espaço é diferente da relação tempo espaço da criança (idem, p.13).

A infância é uma condição da criança que valoriza o conjunto das experiências vividas em diferentes tempos e lugares.

Ao refletir que a produção de conhecimento na infância está ligada ao lugar social que a criança ocupa na relação com o outro precisamos entender as transformações e orientações dos modos de “ser” da infância ao longo dos tempos para entendê-la nos dias de hoje.

Os conceitos desenvolvidos sobre a infância pela sociedade interferem diretamente no comportamento das crianças, adolescentes e adultos, modelando as formas de agir de acordo com as expectativas criadas nos discursos que passam a circular entre as pessoas. Os conceitos estabelecidos, por sua vez, correspondem aos interesses culturais, políticos e econômicos da sociedade.

Por entender a infância dessa maneira é que inicialmente nesse documento voltamos ao tempo e assim categorizá-la em diferentes fases. Inicialmente pensar na infância, enquanto política higienista, onde a criança lutava pela sobrevivência diante da mortalidade. No iluminismo a infância era entendida como depositária em potencial de algo que iria se revelar no futuro, ou seja, o modo como a sociedade torna as crianças, homens dotados de razão. Cabe à educação realizar essa tarefa de transformar esses pequenos seres em homens dotados de linguagem e logos. Esse período chamado de Ilusionismo entendia que a criança era um pequeno adulto, o homem do amanhã.

57 utilidade e de lucro passam a ser regulados pelo tempo, pelo relógio e precisamos nos perguntar qual o lugar da infância nesse tempo tão apressado? Nesse nosso tempo a ciência e o saber especializado assumem o papel de explicar a infância.

A criança no mundo moderno está sempre respondendo as questões da temporalidade que envolve seu crescimento e desenvolvimento no que diz respeito a razão, prontidão, amadurecimento, pressa, rotina catalogada, trabalho infantil, erotização, objeto de consumo, enfim, uma infância cada vez mais empurrada para o futuro, para o mundo adulto. Brinquedos, peraltices, imaginação, barulho tudo isso ficou no passado. Agora a pergunta é: já é uma mocinha, é homem feito. E o tempo? O tempo passou pela janela como diz a musica popular.

O importante é pensar que a história não surge de um ponto de partida primordial ela pode ser constantemente refeita e recontada.

Walter Benjamin apud Pereira e Souza comenta

que a criança reconstrói o mundo baseada em seu olhar infantil e que ela não é um ponto zero da existência humana, nem a velhice é seu ponto final. O individuo constrói a sua história ao longo da vida, ela não desaparece com sua morte, transcendem-na e transforma-se em criação coletiva de uma época (1998, p.34).

Podemos pensar que a infância pensada na temporalidade não se esgota na experiência vivida, mas é ressignificada na vida adulta por meio da memória.

O conceito de infância está em constante processo de transformação e para ser refletido nas Unidades Educacionais precisa contar com alguns indicadores como: gênero,etnia, idade, origem social e cultural, identidade, cidadania. Estes indicadores quando compostos e relacionados pelos profissionais da educação, promovem reflexões necessárias no que se refere à criança e a infância, numa construção cotidiana de posturas da sociedade para com a criança.

As crianças estabelecem relações entre si nos espaços e tempos em que convivem dentro ou fora das Unidades Educacionais de Educação Infantil, as relações vão acontecendo em suas vivências cotidianas, mediatizadas pelas culturas.

Essas são estabelecidas na dinâmica pedagógica organizada pelos educadores, que atuam cotidianamente com as crianças, e são totalmente observáveis no interior das Unidades Educacionais.

58 (...) as teorias sociológicas da infância devem se libertar da doutrina individualista que considera o desenvolvimento social infantil unicamente como a internalização isolada dos conhecimentos e habilidades de adultos pela criança. Numa perspectiva sociológica, a socialização não é só uma adaptação e internalização, mas também um processo de apropriação, reinvenção e reprodução. O que é fundamental para essa visão de socialização é o reconhecimento da importância coletiva e conjunta – como as crianças negociam, compartilham e criam cultura com adultos e entre si. A noção de socialização na infância escrita por Corsaro é denominada de

Reprodução Interpretativa, que segundo o autor, expressa no termo “reprodução” a

“restrição das condições da estrutura social e de reprodução social, além dos processos históricos que constituem sociedades e culturas e afetam as crianças e infâncias como suas integrantes,” e abrange os aspectos inovadores e criativos da participação da criança, junto à sociedade, isto é, as manifestações e as representações do mundo adulto criada e transformadas pelas crianças no processo de socialização.

A saída da mulher para trabalhar fora do lar exigiu a abertura de instituições públicas e privadas com o fim de educar e cuidar das crianças, assim houve necessidades de mudanças nas políticas públicas, para que outros pudessem cuidar das crianças durante o período de trabalho das mães.

Dalberg, Moss e Pence pontuam que:

(...) esse cuidado alternativo, não materno, deve ser proporcionado às crianças pequenas para que suas mães sejam empregáveis, não deve ser notado para seus “pais” serem empregáveis, pois o discurso dominante sobre gênero determina ideias sobre os papéis e sobre os relacionamentos, produzindo uma suposição tacitamente aceita de que os pais saem para trabalhar, e as mães são primariamente responsáveis por garantir o cuidado das crianças modernas (2003, p. 68).

O trabalho feminino vem se qualificando e ampliando o seu espaço. As políticas educacionais se esforçam para também qualificar e aprimorar os profissionais que cuidam das crianças pequenas, ao mesmo tempo aumenta consideravelmente o número de instituições infantis que querem “cuidar e educar” as crianças.

A concepção de criança também mudou, não podemos ter a imagem da criança como ser inocente e até um pouco primitivo que intrigava a todos, como vemos quando assistimos filmes ou lemos livros, que retratam uma infância romantizada, de forma “polianica”, que intrigou a todos por muitos séculos. Também não podemos ver a criança de forma sentimentalista, quase uma visão utópica, na qual a infância é vista como os anos dourados.

59 Esta é a criança de Rousseau, refletindo a sua idéia de infância como o período inocente da vida de uma pessoa – os anos dourados - a crença de que a capacidade de auto regulação e o inato da criança vão buscar a Virtude, a Verdade e a beleza; e a sociedade que corrompe a bondade com a qual todas as crianças nascem (idem, p.66).

Hoje, ainda, a criança é entendida pelos adultos como reprodutor de conhecimento, identidade e cultura, a criança de Locke, uma criança “iniciando a vida sem nada e a partir do nada - como um vaso vazio ou tábula rasa”, aquela que precisa ficar pronta para aprender e que tem como desafio o ensino obrigatório, essa criança é aquela em que os adultos consideram que:

(...) tem que ser equipada com os conhecimentos, com as habilidades e com os valores culturais dominantes, que já estão determinados socialmente e prontos para serem administrados, um processo de reprodução ou transmissão, tem também de ser treinada para se adaptar às demandas estabelecidas pelo ensino obrigatório (DALBERG, MOSS e PENCE, 2003, p.65).

Essa exigência em relação aos conhecimentos e habilidades para enfrentar a demanda do ensino obrigatório pressupõe que o movimento progressivo ocorrido na infância se realiza somente a partir:

(...) da aquisição de habilidades adequadas e o cumprimento de estágios ou marcos sucessivos e de uma autonomia crescente: a metáfora é a subida da escada. Por isso cada fase da infância é a preparação, ou prontidão para a próxima fase mais importante, e a primeira infância é o primeiro degrau da escada é um período de preparação para a escola e para a aprendizagem que se inicia (idem, p.65).

Essa forma de conceber a infância considera a criança como reprodutora de conhecimentos e habilidades e a infância não é entendida como um movimento onde a criança se envolve por inteiro, mas um movimento onde a criança se desenvolve por pedaços, períodos ou fases, para uma vida adulta realizada, confirmando a fala de que “a criança ainda vai ser, um” (JENKS, 1982 apud DALBERG, MOSS e PENCE, 2003, p.65).

A criança acaba sendo reduzida a categorias separadas do desenvolvimento, em vez de ser considerada como um todo, como funções inter - relacionadas dentro do processo de mudança.

A criança passa a ser um ator social rompendo com a posição durkheiniana sobre o conceito de socialização e com a cegueira das ciências sociais, quanto à ausência das crianças, das falas, das expressões, do imaginário infantil e das práticas sociais, ressurgem as crianças tanto nas práticas consumidoras como no imaginário social,

60 (SIROTA, 2001, p.10).

Mollo e Bouvier apud Sirota (2001) argumentam:

(...) que as crianças são atores sociais, participam das trocas, das interações, dos processos de ajustamento constantes, que animam, perpetuam e transformam a sociedade. As crianças têm uma vida cotidiana, cuja análise não se reduz à das instituições (p. 2001, p. 10).

Segundo Corsaro (2005, p. 444) “a aceitação no mundo das crianças é particularmente desafiadora por causa das diferenças óbvias entre adultos e crianças em termos de maturidade comunicativa e cognitiva, poder (tanto real como percebido) e tamanho físico”. O adulto tem papel distinto com as crianças e é considerado uma base para que a criança se torne um ser social.

Para Dalberg, Moss e Pence (2003, p.71) dizem que o paradigma atual reconhece que:

- a infância é uma construção social, elaborada para e pelas crianças, em conjunto ativamente negociado de relações sociais. Embora a infância seja um fato biológico, a maneira como ela é entendida é determinada socialmente;

- a infância como construção social, é sempre contextualizada em relação ao tempo, ao local e a cultura, variando segundo a classe, o gênero e outras condições socioeconômicas. Por isso, não há uma infância natural nem universal, e nem uma criança natural ou universal, mas muitas infâncias e crianças;

- as crianças são atores sociais, participando da construção e determinando suas próprias vidas, mas também a vida daqueles que as cercam e das sociedades em que vivem, contribuindo para a aprendizagem como agentes que constroem sobre o conhecimento experimental. Em resumo, elas têm atividade e função;

- os relacionamentos sociais e as culturas das crianças são dignos de estudo por direito;

- as crianças têm uma voz própria e devem ser ouvidas de modo a serem consideradas com seriedade, envolvendo-as no diálogo e na tomada de decisões democráticas, e para se entender a infância;

- os relacionamentos entre os adultos e as crianças envolvem o exercício de poder do adulto e é mantido e usado, assim como a elasticidade e resistência das crianças a esse poder.

Essas concepções sobre a infância mostram que a infância da criança é permeada por conhecimentos que dão significados ao seu mundo, juntamente com os adultos da família, dos amigos, das outras crianças. Enfim, a ‘aprendizagem’ se dá pela troca, pela fala e pela interação entre a criança e seus pares.

61 (...) tem sido romper com a imagem da criança que aprende, cresce e se desenvolve sozinha, independente do seu contexto. Esta concepção foi formulada e constantemente asseverada pela psicologia clássica. Porém outras teorias estão sendo hoje formulada para compreender o desenvolvimento humano, sempre relacionando a criança á presença de “outros significativos”. Apesar de inicialmente a ênfase ser na relação entre crianças e adultos, nos últimos anos a importância das relações e interações entre pares vem sendo observado como efetiva forma de socialização e desenvolvimento.

Observamos essa interação entre adultos e crianças nos momentos da troca de fraldas, de roupa, do banho, dos jogos, da alimentação, das brincadeiras, da tecnologia, onde percebemos a inter-relação entre os pares, através dos gestos, falas, carinhos, da pesquisa e na escolha das suas preferências.

As crianças reproduzem não da forma que o adulto quer, mas da forma como a criança interpreta. A criança tem poder e ação social para modificar toda uma educação.

Ao olhar para as escolas observo que os Projetos Pedagógicos trazem como foco central do processo educativo a criança e que segundo Corsaro se a criança é:

(...) realmente “o foco efetivamente, é a partir dela que o projeto pedagógico

será construído”. Se as crianças aprendem e se socializam participando do

mundo, é preciso que as propostas pedagógicas sejam congruentes com valores expressos pelas famílias e pelas comunidades. A presença do entorno na educação infantil se faz através da participação ativa dos pais em assembleias, reuniões, visitas e conversas diárias, murais, agendas [...]. Para que a presença do contexto social realmente se concretize na vida diária da escola de educação infantil, é necessário que os educadores sejam formados para aceitar, problematizar e potencializar as contribuições das famílias e das comunidades, concebendo assim a educação como processo compartilhado (apud MÜLLER e CARVALHO, 2009, p. 184).

Todos os momentos formativos desencadeados na instituição infantil são momentos coletivos importantes para revisitar o Projeto Pedagógico, momentos esses, que a partir da socialização dos fazeres e das ações entre os pares esse Projeto Pedagógico é constituído, explorado, reconstruído, com as falas da comunidade escolar e do entorno.

Corsaro (1997) trás a noção:

(...) ‘de adulto atípico’, apresenta uma forma de relacionamento entre adultos e crianças, bastante respeitosa, tanto com as crianças como com as culturas. Ele evidencia a importância de conversar com as crianças e não apenas fazer perguntas, estar com elas, dizer a verdade, entrar relativamente no seu espaço social, pois mesmo sem pertencer ao grupo é possível construir relações mais horizontais. (...) “Por que não ponderamos sobre outros modos de ser professor” (p.184-185).

Os conceitos aqui apresentados oferecem para as instituições escolares condições de reolhar a criança de forma que realmente ela, a criança, seja o foco de

62 ação, que expresse no Projeto Pedagógico a centralidade denotada nas propostas pedagógicas e que não deixem dúvidas sobre qual criança estão falando, pois é, a partir da dinamicidade das crianças e da sua infância produtiva, que são determinados os rumos das propostas das Unidades Educacionais.

É importante que as instituições infantis criem, inventem deem voz, se reafirme, resignifique constantemente suas propostas, ofereçam às crianças e adultos o trabalho com suas culturas e memórias e que novas ideias sejam incorporadas ao fazer pedagógico.

Que os educadores como diz Vasconcellos apud Müller e Carvalho (2009, 187) vão:

(...) compondo o seu trabalho a partir das parcialidades e das incompletudes, das teorias, das complexidades dos contextos sociais e também das reflexões que orientam suas práticas.

Na escrita do Projeto Pedagógico há necessidade de contextualizar as crianças, pois temos as que trabalham desde muito cedo, que são violentadas, que sofrem inúmeros tipos de discriminação e abandono.

As reflexões e discussões coletivas permitem que a Unidade Educacional caminhe para um processo pedagógico mais eficiente, onde a criança seja o norte do trabalho dos educadores, que com sua sensibilidade observe as experiências infantis individuais e coletivas das crianças, as questões de gênero, etnia, tecnologia e meio ambiente.

Elaborar um Projeto Pedagógico com essas características exige que a Unidade Educacional pense num processo de socialização, onde as crianças sejam entendidas como crianças; que a comunidade e o entorno sejam ouvidos e que os adultos permitam que a criança crie e invente, contribuindo assim para sua formação integral.

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