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Condições de emergência de novos elementos éticos

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2. Capítulo

2.2. O movimento de contracultura e o capitalismo pós-industrial

2.2.1. Condições de emergência de novos elementos éticos

Em “A ética protestante e o espìrito do capitalismo”, WEBER (2000) demonstra como a visão de mundo protestante vai influenciar a gestação da concepção moderna de trabalho, revestindo-o de um sentido religioso, e criar condições para o desenvolvimento do capitalismo moderno. Não havendo mais os meios mágicos que de alguma maneira o

catolicismo ainda preservara para obter a salvação, a conduta moral do puritano deveria ser rigidamente controlada por ele próprio, de uma maneira sistemática e planejada. Essa conduta deveria repercutir numa ação sobre o mundo, não apenas como meio de obter a convicção, a prova de sua eleição pelo crente, mas também com o propósito de aumentar a glória de Deus. Assim, o caráter metódico, sistemático, racional no exercício de sua piedade se estenderia a toda a vida do crente, a todas as suas ações, promovendo e possibilitando, ao lado do desenvolvimento técnico e científico, o desenvolvimento da racionalidade econômica e do capitalismo moderno. Tal ética também teria, em certa medida, favorecido a acumulação, uma vez que o usufruto dos bens materiais encontraria limites na idéia de que “o ócio e o prazer” (WEBER, 2000:112) são condenáveis, pois não glorificam a Deus. Apesar do relaxamento que o tempo imprimiu a essa ética racionalista, ela ainda se encontrava presente no pensamento ocidental até meados do século XX, principalmente nos países capitalistas hegemônicos.

Nos anos 60 esse estilo de vida burguês torna-se objeto de contestação do movimento de contracultura e das novas religiosidades que surgem do interior do movimento, os chamados Novos Movimentos Religiosos – NMR17, assim como dos movimentos feministas que também nesse período intensificam suas lutas pelos direitos das mulheres. A crítica não se restringe à racionalidade técnica, mas abrange vários aspectos da ideologia burguesa dominante, já desprovida do seu sentido religioso. O slogan do movimento “sexo, drogas e rock‟n‟roll” é revelador da forma e sentido de sua oposição aos valores então dominantes: ao excesso de racionalidade contrapõe-se a emoção, a perda de lucidez, quer seja pelo uso de drogas, quer seja pela valorização de experiências extáticas; à ciência e à tecnologia, a natureza; ao controle das emoções, o controle da mente e as psicoterapias; à busca por sucesso e realização profissional e ao trabalho vocacionado e sistemático, o desprendimento material, o lazer e a busca por realização pessoal; à guerra, a paz; ao “discurso polìtico, a expressão artìstica” (HOLLANDA E GONÇALVES, 1982: 69), ao

17 Por vezes nos utilizaremos da forma abreviada –NMR- para indicar Novos Movimentos Religiosos. Estes abarcam também antigas religiões, contextualizadas ao novo momento histórico e cultural. Dentre elas destacam-se as religiosidades orientais ou de inspiração oriental, passando por aquelas de caráter „cientìfico‟ ou de auto-ajuda, até aquelas de inspiração protestante, como é o caso do neo-pentecostalismo, que é o que tem tido maior penetração no Brasil. Uma abordagem mais detalhada de valores associados a novas formas de religiosidade e do processo de instrumentalização destes na nova fase capitalista pode ser encontrada em Naira SANTOS, 2006c e Naira SANTOS, 2006d.

intelectualismo árido, a experiência; ao autocontrole e prazer postergado, a liberação sexual, o hedonismo; à organização burocrática, rígida, tradicional, a fluidez de novas idéias e conceitos adaptados às necessidades e interesses de cada indivíduo; à rotinização da vida, a magia, a busca por novo sentido. Não que a racionalidade, a técnica, a ciência estivessem sendo negadas, recusadas, mas estavam sendo sim contestadas na maneira pela qual foram instrumentalizadas, no caráter pretensamente unívoco e uniforme que a ideologia dominante pretendia imprimir à própria vida, o padrão único de referência: para a racionalidade – o cálculo; para o sexo - o homem; para a mulher – a domesticidade; para a vida - o trabalho.

No entanto, o capitalismo também estava diante de uma nova fase. As observações de Jacques Rozner, transcritas do Le Monde de 23 de junho de 1970 por MARCUSE, ilustram bem o momento que o capitalismo vivia:

“o desenvolvimento do „setor terciário‟, o dos „serviços‟, ocorre doravante num ritmo acelerado. Absorve uma crescente procura e requer investimentos improdutivos cada vez maiores. O crescimento desse setor gera desequilíbrio das forças que, até agora, gravitaram inteiramente em torno da multiplicação de bens e da lucratividade da produção. Não é um paradoxo se o produtor começa recuando cada vez mais diante do consumidor, se a vontade de produzir enfraquece, diante da impaciência de um consumo para o qual a aquisição de coisas produzidas é menos importante que a fruição de coisas vivas...A revolta da jovem geração contra a sociedade de consumo nada mais é do que uma manifestação intelectual da vontade de ultrapassar a era industrial, a busca de um novo perfil da sociedade que está situado, de algum modo, para além de uma sociedade de produtores” (1973:28).

Assim, se um dos objetivos do movimento de contracultura e dos próprios NMR parecia ser o de “exceder os limites de significação impostos pela cultura moderna [...] levando, ao invés da afirmação da tradição dominante, a uma abertura dos campos de sentido” (AMARAL, 1999:72), este não era um imperativo que se restringia ao movimento cultural e religioso, mas que se impunha em certa medida também ao capitalismo como condição ao desenvolvimento de sua fase pós-industrial. A emergência dos movimentos de contracultura, dos novos movimentos religiosos (NMR) e dos movimentos feministas, ao lado do desenvolvimento de novos conhecimentos técnico-científicos (BORGES e YAMAMOTO, 2004) criam, nesse sentido, as condições de estabelecimento da nova fase

capitalista, dita pós-industrial, trazendo em seu bojo significativas mudanças na configuração do mundo do trabalho. Contudo, uma vez que “a ideologia teme tudo quanto possa ser instituinte ou fundador, [só podendo] incorporá-lo quando perdeu a força inaugural e tornou-se algo já instituído” (Marilena CHAUÍ, 1980:5), a instrumentalização dos valores contraculturais pelo capital só se fez possível mediante a domesticação de sua força inaugural.

Embora essa movimentação cultural assuma características diferenciadas de acordo com o país, grande parte de seu ideário vai se difundir, por todo o ocidente capitalista, ainda que em tempos e intensidades distintos e diversos. Ademais, os instrumentos de domesticação também variaram segundo o contexto. No caso dos EUA, por exemplo, a injeção de recursos na indústria fonográfica cumpriu um papel importante nesse sentido18, enquanto em diversas outras partes do mundo19 - dentre as quais o Brasil – foi prioritariamente a imposição de regimes ditatoriais que se encarregou de cumprir esse papel. Assim, no Brasil, o contexto mundial de guerra fria e a ascensão do regime militar certamente resultaram no amortecimento e prolongamento do tempo necessário à difusão do ideário contracultural. Contudo, muitos de seus aspectos se manifestam também no contexto brasileiro em face da exposição cultural decorrente não só da expansão dos meios de comunicação, como da própria presença de empresas multinacionais e das relações que o País estabelece com países capitalistas hegemônicos, particularmente com os EUA. Estes procuraram garantir a difusão tanto do ideário econômico quanto cultural. Nesse sentido, as receitas e ideários econômicos de organismos internacionais e mesmo os economistas, advogados, empresários e outras elites do poder internacional e nacional constituiriam, respectivamente, meios e agentes de políticas de exportação simbólica (DEZALAY, 2004).

18 MUGGIATI (1985) destaca que a injeção de recursos na indústria fonográfica transformou o rock num negócio bilionário já no início da década de 70 e cita depoimento de Clive Davis em 1973, então presidente da gravadora Columbia, ilustrativo do papel das gravadoras na absorção do potencial revolucionário do movimento: “Um tipo de som absorveu quase tudo nos anos 60. Em certo sentido, foi uma revolução. Mas o universo da música já a assimilou e está se expandindo em todas as frentes” ( MUGGIATI:1985: 60).

19 Apesar do caráter preventivo que, na avaliação de MARCUSE (1973:11), a contra-revolução possuía, particularmente no mundo ocidental, a sua amplitude também é evidenciada pelo autor, ao afirmar que: “o mundo ocidental atingiu uma nova fase de desenvolvimento: agora, a defesa do sistema capitalista exige a organização da contra-revolução interna e externa. [...] Massacres indiscriminados, na Indochina, Indonésia, Congo, Nigéria, Paquistão e Sudão, são desencadeados contra tudo o que seja rotulado de „comunista‟ ou que se revolte contra governos subservientes dos países imperialistas. Perseguições cruéis prevalecem nos países latino-americanos sob ditaduras fascistas ou militares” (MARCUSE :34, 35).

Do mesmo modo, em que pesem as desigualdades regionais e as condições tardias em que algumas dessas mudanças se verificaram em face da ditadura, valores culturais tidos como avançados, mesmo que despontando numa região específica, serviam de referência, ao menos idealmente, às demais regiões do país20.

O Brasil viria a ser, assim, tanto palco da revolta (Olgária MATOS, 1981:25) quanto da contra-revolução. Nesse sentido, não obstante a extensão das conseqüências políticas das mudanças culturais tenham sido, até certo ponto, controladas ou domesticadas pela ditadura, a realidade do contexto contracultural brasileiro pode ser ilustrado tanto pela efervescência cultural que marca o surgimento do tropicalismo em 1968, e que se propunha “ser uma ruptura estética e ideológica” (OLIVEN, 2002:34), quanto pelo surgimento de lideranças sindicais e mesmo pela assinatura da primeira convenção coletiva de trabalho em fins da década de 70 (MARRAS, 2001). O Brasil também vai apresentar nesse período expansão das novas religiosidades, predominantemente do neopentecostalismo que, em certa medida também vai ser alvo de contestação21 e na qual é possível identificar muitos dos elementos presentes no ideário da contracultura. Exemplos marcantes nesse sentido são, além da flexibilidade institucional, a valorização do êxtase e da emoção além do hedonismo, manifesto não apenas na busca por bens materiais, mas sobretudo na aprovação e estímulo ao desfrute destes.

2.2.2. Alguns aspectos da penetração do ideário contracultural no mundo

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