• Nenhum resultado encontrado

Gênero e religião no pão de cada dia

No documento Download/Open (páginas 90-93)

2. Capítulo

2.4. Gênero e religião no pão de cada dia

Na sociedade contemporânea, marcadamente racional e secularizada, a religião é freqüentemente representada como algo exterior à „razão‟ e de foro ìntimo, idéias estas implìcitas na máxima „religião não se discute‟. A idéia de que os movimentos feministas trouxeram a igualdade entre os sexos também faz parte do imaginário contemporâneo: a maior autonomia e presença das mulheres no espaço público, particularmente o aumento da sua participação no mercado de trabalho, seriam evidências de que a igualdade constitui uma batalha ganha. No entanto, as representações de gênero continuam a configurar tal presença (ou ausência) feminina no mercado de trabalho. Da mesma maneira, as idéias religiosas não são passíveis de confinamento a tempos e espaços precisos, do culto, da meditação ou da prática religiosa. Representações de gênero e representações acerca da religião e da diversidade religiosa se entrecruzam e interpenetram o espaço público, o dia-a dia da vida e das relações sociais - dentre elas as relações de gênero, as relações de trabalho, no trabalho e com o trabalho – e, por outro lado, são suscetíveis a políticas e variáveis sócio-econômicas.

A história relatada na revista Fique Ligado (ago/2009:11) que, conforme indicado no expediente da revista, é uma publicação dirigida aos funcionários da empresa no Brasil e é produzida pela Comunicação Interna, constitui exemplo desse entrecruzamento. Trata-se da história de um pai que, separado da esposa, tivera “raros encontros e muitos desencontros” com a filha Carina - que já não via há 13 anos - vindo a reencontrá-la na loja do Hypermarché em que ambos trabalham. As declarações de Aldo, o pai, indicam a presença do fator religioso: “Melhor impossìvel. Parece que foi planejado por Deus...” enquanto as declarações de Carina, assim como a própria ausência de Aldo como pai, colocam em evidência representações e práticas de gênero que associam as mulheres à maternidade e fazem pesar sobre estas a responsabilidade pelo cuidado dos filhos. De acordo com o relato, ao ser abraçada por Aldo, Carina aceita o seu pedido de perdão: “Lembrei que sou mãe, que todos erram e a rejeição não tinha sentido...”.

A intervenção de papéis de gênero nas práticas de trabalho e/ou no ambiente de trabalho também pode ser identificada na afirmação de Ana, operadora do setor de embalados de loja do Hypermarché, de que ela prepara os embalados “pensando como consumidora” conforme destacada também na revista Fique Ligado (ago/2009:22). Associa assim atribuições da esfera doméstica – socialmente representadas como sendo femininas – ao seu desempenho e prática no trabalho. Do ponto de vista da organização, observa-se que a relação que se procurou estabelecer ou evidenciar entre a história e o ambiente de trabalho, a maneira como as representações são mobilizadas na construção da história e a reprodução nesses termos pela revista interna da empresa no caso de Carina e Aldo, quanto o caso da operadora Ana, parecem indicar que as esferas do trabalho, da religião e da família não são tão separadas assim... representações de gênero e religiosas integram não apenas a subjetividade do/a trabalhador/a como também a cultura organizacional, conforme teremos oportunidade de verificar nos dois próximos capítulos.

3. Capítulo 3

A CULTURA ORGANIZACIONAL E A REPRODUÇÃO DE REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E DE PRESSUPOSTOS RELIGIOSOS NOS PADRÕES, NORMAS E PRÁTICAS ORGANIZACIONAIS

3.1. Introdução

No capítulo anterior nos referimos à relação que WEBER (2000) estabelece entre ascetismo protestante e a concepção moderna de trabalho. Procuramos demonstrar de que forma a emergência do movimento de contracultura e, com ele, dos novos movimentos religiosos, assim como dos movimentos feministas, contribuíram para criar as condições de estabelecimento da nova fase capitalista, dita pós-industrial que, por sua vez, implicou em significativas mudanças na configuração do mundo do trabalho. Verificamos assim que os campos das relações econômicas e de trabalho não são impermeáveis ao contexto cultural e nem mesmo às idéias religiosas e/ou acerca dos sexos e das relações entre os sexos. Não se trata obviamente de negar a relevância das condições materiais ou objetivas no desenvolvimento do capitalismo ou de suas fases, mas de admitir que a correlação inversa, isto é, “a disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta” (WEBER, 2000:11), também é ou pode ser determinante. De fato, de acordo com PIETOT e SAINSAULIEU “as pesquisas mais recentes nos mostram a que ponto a sociedade na qual se insere influencia a empresa. Todas as coisas constantes, uma empresa francesa não funciona como uma empresa japonesa ou americana” (1994:20). Contudo como destacam esses mesmos autores, as empresas não são passivas frente à sociedade na qual atuam, elas também a constroem. O mesmo pode ser dito em relação ao sujeito trabalhador: ele também age sobre a cultura organizacional, ao mesmo tempo em que as próprias técnicas aí implícitas o constroem.

Enfim, a cultura organizacional é dinâmica e multiplamente construída através da interação, do diálogo e do conflito, entre os diversos segmentos e/ou “forças culturais” (ALVES, 2004: 20) envolvidas interna e externamente em relações de poder desigual. Assim, apreender a cultura organizacional pode ter mais a ver com procurar identificar as múltiplas fontes, e os meios e processos de negociação na tessitura de sua rede de significados, do que de fato apontar- lhe um suposto sentido uniforme. Nesse sentido procuraremos apreender, neste e no próximo capítulo, não apenas a visão propagada pelas empresas em questão - a partir do contexto no qual estão inseridas – e a dos seus dirigentes, o que estes pretendem dizer, e aquilo que se exclui, o não dito ou que não pode ser dito (o oculto, o segredo), como também as construções, adesões, leituras, releituras e reconstruções operadas no interior dessas organizações pelos sujeitos trabalhadores ocupando diferentes lugares sócio-culturais e na estrutura organizacional. Procuraremos estabelecer como a religião dominante e/ou a dos sujeitos trabalhadores, bem como as representações de gênero, influenciam/se manifestam em representações e práticas organizacionais e no ambiente organizacional. Neste capítulo trataremos de verificar em que medida regras, normas/ procedimentos - formalmente estabelecidas pela empresa ou praticadas pela direção/gerência/grupos de funcionários - incorporam pressupostos da cultura circundante, no que se refere à religião, à diversidade religiosa e ao gênero; no próximo capítulo focaremos a estratégia utilizada pelos/as trabalhadores/as de incorporarem na sua atividade profissional competências adquiridas por meio da socialização/práticas religiosas ou de gênero, prática esta que é favorecida pelas próprias técnicas de gestão, que procuram mobilizar a subjetividade do/a trabalhador/a.

No documento Download/Open (páginas 90-93)