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O impessoal e o universal: alguns paradoxos

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O GÊNERO E A RELIGIÃO NA GESTÃO DA SUBJETIVIDADE NO TRABALHO 4.1 Introdução

5.3. O impessoal e o universal: alguns paradoxos

As representações de gênero, não apenas perpassam mas também constituem o mundo do trabalho, seja no âmbito privado doméstico, seja no âmbito organizacional. Embora sejam indissociáveis da divisão sexual do trabalho dizem respeito a diversos aspectos das relações entre os sexos. Do mesmo modo, os conflitos de gênero que permeiam o mundo organizacional não se limitam à divisão sexual do trabalho, mas abrangem também outros aspectos da relação de subordinação aos padrões sexistas vigentes, aos quais se pretende submeter as mulheres. MORGAN destaca que “preconceitos relacionados ao sexo fazem parte integrante do processo de representação e de reprodução diária da realidade organizacional” (1996:184) e que, diante de situações de discriminação, as mulheres reagem buscando meios de adequação ou resistência às regras dominantes podendo, também aqui, vivenciar ambos os tipos de comportamento. Ainda segundo o autor os estereótipos e preconceitos relacionados às diferenças entre os sexos se reproduzem na conversa geral e nos rituais do dia-a-dia das organizações, podendo “servir para incluir ou

44 Como já informado anteriormente não possuímos o dado quanto à proporção de mulheres no quadro de funcionários na Textile França. Contudo, tanto os depoimentos dos/entrevistados/as quanto o dado de participação nos cargos de gerência/direção indicam que há baixa proporção de mulheres no quadro funcional, mesmo na França.

excluir, sendo algumas vezes concebidos para atingir esse fim” (MORGAN, 1996:184,185). Eles podem ocasionar dificuldades tão significativas que suscitam “estratégias conscientes e inconscientes para a „administração das relações entre os sexos‟” (MORGAN,1996:184).

A reprodução de estereótipos e preconceitos nas conversas e nos rituais transparece no depoimento de Dalva, gerente comercial em uma das lojas do Hypermarché Brasil, que menciona as diversas estratégias masculinas empregadas na tentativa de desqualificação das mulheres ocupando cargos gerenciais e/ou de direção dentre as quais, menosprezar a autoridade feminina, buscar desautorizá-las por meio de aparente intimidade estabelecida por contatos físicos e/ou buscar atribuir o sucesso profissional de mulheres a favores sexuais. Ela se refere também ao papel da homosociabilidade – ou dos restritos “„clubinhos‟ masculinos” (Maria Rosa LOMBARDI In; Albertina COSTA et al., 2008:392) - nas estratégias de ascensão dos homens:

“... Sou uma pessoa muito brava, muito... eu exponho muito as minhas idéias e as minhas opiniões. Então assim, eu considero que eu sou respeitada, né, eu não baixo a cabeça porque é homem, porque é gerente mais velho, porque é isso, não, eu não, não faço isso. Eu não deixo isso acontecer. Mas eu vejo com algumas outras colegas minhas que não é assim que funciona. Então assim, ela tá de plantão na loja, ela pede prum outro colega de trabalho que é homem ah, entendeu, „ah, é mulher, deixa‟. E fica por isso mesmo. Então assim, pra você se impor como mulher, você também tem, como chefe, como mulher, você tem uma dificuldade maior. Cê tem que impor limites, cortar certos tipos de brincadeira, certos tipos de comentário. Então assim, ah, é...eu vou ser tua amiga, mas sem muito contato, sem muita aproximação pra não confundir. Porque a gente tá muito vulnerável, há muitos comentários, né, então ah, negócio de pôr a mão no ombro de ficar brincando, então você já tem que cortar. Mesma coisa num ambiente como chefe, com os meus funcionários, tenho que ser extremamente profissional, o mínimo possível de grau de intimidade. Pra não gerar uma com, um...uma...acaba confundindo, né, na realidade. Ah, porque é mulher e aí, tá, né, tá se oferecendo, tá dando oportunidade, então cê tem que se, se impor. Então acho que nós mulheres chefes, é muito pior. Por que cê tem que impor um respeito, uma autonomia e nem sempre os seus colegas conseguem te respeitar. [...] Eu brigo pelo que é meu, pela minha função, pelo meu trabalho. Eu questiono, pode ser o diretor, pode ser o colega de trabalho que seja gerente também mas não é fácil a gente arruma muito, muito em conseqüência de... não inimigo mas... olhares diferentes. E „ah, essa menina.‟ É uma menina, né? Não é uma gerente, é uma menina. „É uma menina‟. „Essa mulher‟. É isso que a gente escuta e você...para e pensa assim „Pôxa, função que se ele é gerente Eu também sou. Se ele tem autonomia com uma equipe o resultado e o número pra dar eu também tenho. Então aonde que você é diferente do que eu, porque que eu tenho que trabalhar mais?‟ Porque na idéia deles a gente tem,

na cabeça deles a gente tem que trabalhar mais [...] Então assim, a mulher tem que se impor bastante pra conseguir vencer porque senão ela desiste. Não é fácil. E como eu falei, você acaba se tornando escada pra muita gente Se você não tem uma postura, uma autonomia. Se você não se impõe, você vira escrava. Porque vai tendo outras pessoas que vão passando por cima de você e vão crescendo, vão crescendo...Graças a Deus eu não tenho essa dificuldade. Eu considero a minha, a minha progressão no emprego muito rápida. Né? Eu entrei...eu entrei na área comercial de perecível, depois eu recebi o convite pra ir pra outro escritório, fui pra assistente, depois fui pra secretária, secretária voltei pra área comercial. [...] Foi muito rápida, muito dinâmica nesse sentido. Mas eu tenho experiência de colegas que ficaram 8 anos, por exemplo, uma menina de Anchieta, a Regina, uma mulher, ela ficou durante 8 anos fazendo a função de gerente. Ela não recebia como gerente, ela fazia a função e simplesmente trocaram o diretor de lá, o diretor falou „vou mandar ela embora porque eu não quero ela.‟ Então ela serviu durante 8 anos a empresa, ela fazia função, ela não recebia, ela recebia como auxiliar e por ser uma mulher...[...] por ser uma mulher, ela acabou não conseguindo. E lá, o diretor é homem e toda a parte de hierarquia era homem. Eu era a única mulher e simplesmente o diretor fez a opção de não trabalhar com ela. Tirou. Então assim, infelizmente, a gente consegue ver exemplos, né? Exemplos de pessoas que não conseguiram. [...] Então, você consegue em pequenos exemplos, ver que se você não for uma mulher, e eu falei pra ela „mas isso aconteceu porque você não impôs um limite. Você não pôs um prazo pra você. Porque se você não se impõe, não vai‟ Você tem que chegar lá: „Tudo bem. Vou fazer a função?‟ Vai fazer 2 anos, um ano que seja, chega e senta com teu chefe „Eu tô fazendo a função. Eu sirvo pra função? Eu sirvo pra empresa? Não? Então tá bom. Assina minha carta, tô indo embora. Me manda embora e acabou. Ou então me tira da função que eu não sirvo‟ Porque infelizmente é muito cômodo. A gente vai fazendo, vai fazendo, a gente não reclama então acontece muito isso com as mulheres. Os homens não. Eles pressionam mais. „Não, chefe‟ chega mais junto, conta uma historinha, de homem pra homem o papo é diferente eu vejo assim, pelo barzinho, mulher não. Você não pode nunca olhar pro teu chefe „Vamos ali tomar uma cerveja? Vamos bater um papo ali‟ É diferente. Infelizmente o preconceito é muito grande. Mas se você quer, se você se impõe, você consegue. É fato. Então...eu falo por mim, pela [...] diretora. Hoje ela é uma diretora. Não foi fácil, passou por uma série de dificuldades...mas ela nunca deixou margem ou dúvidas sobre o comportamento dela, nunca deu brecha pra que ninguém falasse, ninguém comentasse...Porque existe um, um...por ser mercado, não sei se isso é em todos, porque eu nunca trabalhei em nenhum outro, mas assim, um falatório muito grande em torno das mulheres. „Ah, mulher, fulano de tal, tá com fulano de tal‟ Então cê tem que se preservar de muito isso. Se preservar de tudo que possa denegrir a tua imagem na empresa porque já é difícil você subir, e se a tua imagem fica... manchada por algum comentário, por alguma coisa, mesmo que não seja verdade, é muito pior pra você conseguir uma, porque todas as decisões são discutidas em reuniões.” (Dalva, Hypermarché Brasil)

O depoimento de Marcel (responsável de produção na Textile francesa) constitui exemplo da tentativa de estabelecer uma estratégia “generificada” para as dificuldades decorrentes

do que julga ser uma característica contraproducente feminina – a prática de discutir assuntos pessoais no ambiente de trabalho, conforme já mencionado no capítulo 4. Com base nesse estereótipo de gênero ele considera que o ideal é combinar uma proporção de 25% de mulheres e 75% de homens num mesmo setor, o que permitiria controlar o nível de conflitos no ambiente e ao mesmo tempo estimular a performance dos homens, que, na sua visão, tende a ser inferior à das mulheres:

«...Et donc généralement, ce qu‟on observe c‟est que dans un milieu où il n‟y a que des hommes, il y a quand même beaucoup moins de conflit. Par contre, je pense qu‟en termes de performance, on est peut-être sur un niveau légèrement inférieur. Pour moi l‟idéal, enfin dans notre usine, pour moi l‟idéal en nombre, en pourcentage, ce serait 75% d‟hommes et 25% de femmes. Mais par contre, qu‟il y ait vraiment un mix, une mixité, très homogène. Pas avoir dans un atelier que des femmes, dans un atelier que des hommes. [...] Et on voit, on observe que cette personne-là, cette femme, par rapport à son environnement direct, donc d‟hommes, généralement c‟est plus structuré, c‟est plus orienté sur le travail. Il y a une... elles sont plus impliquées par rapport à leur travail et elles impactent... Il y a, comment dire ? Elles favorisent le travail chez ses collègues hommes. On observe ça. [...] Elle a certainement des problèmes, mais par contre dès qu‟elle est dans le travail elle est vraiment focalisée sur son travail et elle entraîne ses collègues. Et donc ce sont des personnes qui respectent... les femmes respectent mieux les règles, elles respectent mieux les procédures, le respect des équipements, le respect de l‟ordre et de la propreté aussi. Elles sont plus respectueuses de cela que les hommes. Mais par contre, pour moi, je pense qu‟il n‟en faut pas trop en même temps. Parce qu‟il en faut... Il faut, je dirais, une femme entourée de trois hommes, et ça permet de donner un équilibre. Ça permet de... dans un contexte de ce type-là, ça donne de la dynamique au groupe, à l‟équipe. » (Marcel, Textile França)

Enfim, concepções acerca das formas de sociabilidade, da relação com o corpo e da própria sexualidade feminina, para citar algumas, não apenas se fazem presentes no cotidiano das relações profissionais e das “conversas”, como podem constituir objeto de gestão organizacional. Assim, ao mesmo tempo em que se exige das mulheres que continuem tomando para si as responsabilidades domésticas, elas são criticadas por assimilá-las nas formas de sociabilidade no ambiente profissional. O mesmo ocorre em relação à sua aparência física e à disponibilidade sexual, conforme pudemos constatar em nossa pesquisa de campo e indicado em capítulos anteriores assim como pelo depoimento de Dalva, reproduzido acima: ao mesmo tempo em que lhes é exigida uma aparência atrativa, as mulheres devem manter o nível de atração do cliente sob controle; ao mesmo em tempo em

que devem estar sexualmente disponíveis para os chefes, são freqüentemente acusadas de fazer uso da sua sexualidade para ascender profissionalmente.

A contradição entre o recurso a atributos físicos das mulheres como estratégia comercial e a associação da ascensão profissional das mulheres aos seus atributos sexuais transparece no relato de João Pedro, técnico de produção na Textile Brasil:

“A questão do sexo no ambiente de trabalho você tem dois casos. Você tem aquela que sofre preconceito por manter aquela retidão “não, comigo não. Isso não”, não sei o quê. E cê sabe, tem a mulher que a..., né? Ela se, se beneficia desse lado. Esse lado sexy dela. Esse lado da mulher, né, pra conseguir vantagens. Isso aí foi lá, quando eu participei do debate [no sindicato], foi colocado isso aí. Ao mesmo tempo daquelas que queria uma defesa e ao mesmo tempo aquelas criticando atitudes daquelas que se favorecem desse, dessa questão...” (João Pedro, Textile Brasil)

Pouco mais adiante, ao fornecer um exemplo, ao mesmo tempo em que reconhece que são as próprias empresas que procuram utilizá-los como estratégia comercial, reafirma essa percepção dos atributos físicos femininos como uma vantagem competitiva para as mulheres:

“... É a questão desses postos de gasolina contratando essas meninas agora. Às vezes não é tanto pela competência dela de ser, ser uma...mas às vezes outro algo que chama atenção, ela é favorecida em certas vagas aí, né? Onde já se percebeu certos postos de gasolina aí contratando meninas assim. Pra que? Pra chamar atenção mesmo. Não que ela vai atender bem a pessoa mas às vezes pela maneira que ela tá trajada lá, tal.” (João Pedro, Textile Brasil)

Tal dinâmica é reveladora de outros focos a partir dos quais as hierarquias sociais, dentre as quais as de gênero - se constituem no contexto das modernas sociedades ocidentais. Ela evidencia as contradições em torno da suposta impessoalidade das relações no âmbito organizacional, entre sujeitos que pretensamente abstraem especificidades pessoais e se “encarnam” como neutros, mas que de fato se constituem em torno de padrões masculinos. Na realidade ela tem por efeito ocultar a imposição (ou a tentativa de impor) às mulheres dos padrões “impessoais” masculinos e reafirmar a “feminização” e a “feminilidade” como “exteriores”, ao mesmo tempo em que as integra naquilo que serve aos propósitos da dominação masculina no mundo organizacional e do trabalho. Assim, ao mesmo tempo em que a pressupõe, a ideologia da impessoalidade escamoteia a divisão social, no caso, a divisão sexual do trabalho, da política e da sociedade, das instituições e do saber, através da separação que opera “entre as idéias dominantes e os indivíduos dominantes, de sorte a

impedir a percepção de um império dos homens sobre os homens [no caso, sobre as mulheres], graças à figura neutra do império das idéias” (Marilena CHAUÍ, 1981:26).

O mesmo pressuposto de neutralidade do sujeito abstrato universal é que rege também as democracias modernas permitindo excluir, enquanto afirma que pretende incluir e até mais, que não é possível incluir/pensar a cidadania sem a abstração das especificidades. Pretendendo representar a sociedade como um todo, o Estado democrático moderno é hipoteticamente neutro colocando-se, em prol do bem comum, acima das particularidades e dos interesses particulares. No entanto essa pretensa „neutralidade‟ do Estado opera segundo a mesma lógica que, como vimos, o ambiente organizacional reproduz – hipoteticamente neutro mas masculinizado de fato, ao mesmo tempo em que exige das mulheres que estas se assimilem ao “impessoal” masculino, as remete constantemente ao “feminino” – de modo que, ao contrário de cumprir o seu pressuposto inclusivo, reenvia constantemente os sujeitos às suas especificidades, ao “comunitarismo” que pretenderia eliminar ou suplantar, às divisões enfim que opera a partir das diferenças (hierarquicamente organizadas) de classe, sexo, sexualidade, raça/etnia, religião, nacionalidade, etc. É por essa representação de si mesmo enquanto poder separado, impessoal e universal que o Estado moderno se substitui à ausência e/ou retirada “de uma vontade transcendente e justificadora da ordem do mundo” (Marilena CHAUÍ, 1981:98), de modo a forjar uma nova “vontade” capaz de conferir unidade, homogeneidade e identidade ao Estado-nação, “fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas” (HALL, 2006:49).

Assim, as sociedades modernas são estruturadas pelo Estado e em torno dele, supondo-se que ele, e apenas ele, encarna o interesse geral (DÉLOYE, 1994), “o espaço público sendo identificado a partir de então ao estatal e ao universal e o espaço privado remetido ao lado individual e dos interesses particulares” (WILLAIME, 2004:300). Em sua versão mais estrita “nenhum corpo intermediário, nenhum grupo de pressão representando uma soma de interesses particulares” (BLANC-GRAS, 2006:16) possui legitimidade de expressão e/ou de representação. Na França, onde o pressuposto do monopólio do Estado na instituição do social é muito acentuado, a pretensão de homogeneidade cultural é que aparentemente cumpre o papel de ocultar as desigualdades e a contradição entre a pretensão de formar,

principalmente através da escola pública, consciências livres e igualitárias, mas ao mesmo tempo homogêneas. Daì a dificuldade da França em “integrar o fato de que o espaço público possa ser o lugar de expressão de diversas identidades culturais e religiosas” (WILLAIME, 2004:299). O longo trecho do texto de Mona Ozouf citado por WILLAIME e que transcrevemos a seguir deixa bem evidente essa problemática:

“A escola, escreve a historiadora Mona Ozouf, se confunde com a própria Revolução. Ela é encarregada de prevenir a dissolução e de apaziguar o tormento de uma sociedade composta de sujeitos livres e iguais. Confia-se a ela a missão de imaginar um sistema de crenças capaz de fazer viver e manter juntos esses indivíduos ora independentes em lhes fornecendo, se possível, uma sedução e uma força comparáveis àquelas da religião da qual acaba-se de sacudir o jugo. Forjar uma consciência comum, patriótica e moral: tal é o empreendimento no qual os revolucionários se engajam deliberadamente [...]. É por isso que os veremos retomar, da tradição cristã, a promessa de unidade que carrega o sentimento de fraternidade para lhe dar uma versão laica e voluntarista, aquela que se experimenta na construção comum da nação” (2004:292).

O problema de fornecer coesão, identidade e aparente homogeneidade a uma sociedade dividida não é um problema específico da França, mas perpassa a formação de todos os estados-nação modernos e, mais recentemente dos blocos supranacionais, como a Comunidade Européia (DÉLOYE, 2004). O que contudo transparece também aí é o modo específico adotado pela França para resolver o problema, pelo qual o Estado se dá a tarefa de concorrer com a religião na disputa das consciências – isto é, no plano privado, pessoal - ao mesmo tempo em que, na esfera pública, se auto-atribui, através da “sacralização do polìtico” (WILLAIME, 2004:288) e do espaço público, o direito de monopólio do sagrado. Isso explica em parte a dificuldade de integrar as novas religiosidades que mais recentemente se fizeram presentes no espaço francês - o islamismo em particular - as quais, por uma ou outra razão, não se aculturaram a essa conformação como no caso das religiões presentes aì desde o inìcio da República. Contudo, uma vez que “nega os outros lugares de instituição do social que poderiam segmentar a sociedade em diversas comunidades, lingüìsticas, culturais, religiosas” (WILLAIME, 2004:301) e, poderìamos arriscar, sexuais45, o poder e/ou pretensão do Estado de instituir e sacralizar as formas legítimas de

45De acordo com WILLAIME, há uma “tendência de confundir o espaço público com a esfera pública, isto é, com o campo de intervenção do Estado e dos poderes públicos, como se o espaço público não fosse também aquele da sociedade civil e das múltiplas interações dos grupos que a compõem” (2004:301). Uma questão que nos intriga quanto a essa relação que o Estado francês estabelece com o espaço público - e que inculca

expressão, não se limita ao campo da religião. Assim, a gestão das diferenças lingüísticas é (quase) tão problemática para o Estado francês quanto a da expressão dos símbolos religiosos nas escolas (que diz respeito sobretudo ao véu islâmico) (WILLAIME, 2004). Na perspectiva de WILLAIME, a força desse modelo assimilacionista deve-se ao fato de ter sido concebido “como um programa de regeneração do homem e como uma passagem obrigatória para a entrada na modernidade, o Estado tendo sido concebido como o grande vetor da emancipação” (2001:302), o que novamente nos remete ao seu poder de consagração e também ao seu caráter prescritivo.

Nessa perspectiva, o Estado pretende não apenas prescrever as condições de liberdade, de realização da autonomia individual, as condições ideais ou requeridas de acesso à cidadania, como também o próprio desejo/objetivo de autonomia. Saba MAHMOOD (2006) afirma que uma questão raramente problematizada é o pressuposto liberal - e que teria sido assumido também pelo feminismo - da universalidade do desejo de autonomia, chamando também a atenção para o caráter prescritivo do feminismo. De fato, na medida em que define e limita, a priori os lugares „ideais‟ ou a partir dos quais se „deve‟ aceder à autonomia (das mulheres, no caso do feminismo), prescrevem-se, contraditoriamente, os limites e contornos da „emancipação‟ que, no caso, o Estado pretenderia promover. Ainda que, a nosso ver, a questão do pressuposto do desejo de autonomia, não devesse constituir, a princípio, um problema – afinal a autonomia deveria implicar até mesmo na liberdade de decidir viver de forma dependente e/ou submissa à vontade alheia - ela se torna problemática quando é tida como um imperativo social, mas não encontra correspondência

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