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O trabalho: uma construção social

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A história da vida humana, até onde a conhecemos, indica que o trabalho sempre foi parte integrante dela. Contudo, “é impossìvel pensar no trabalho sem pensar na sociedade” (MARRAS, 2005:1). A visão de mundo dominante em cada época e/ou sociedade vai influenciar e mesmo construir as concepções e relações de e com o trabalho em vigor em cada época e/ou sociedade. De fato, as civilizações humanas já conheceram muitos conjuntos de idéias acerca do trabalho, cada um demandando longo período histórico para a sua construção, e “mesmo nas sociedades antigas, idéias divergentes sobre o trabalho” (BORGES e YAMAMOTO, 2004:28) conviviam entre si, embora com graus diferentes de influência. Assim, longe de se constituir como instituição única ou uniforme, os sentidos e as formas mesmo que o trabalho assume ao longo da história e civilizações humanas não dependem apenas do contexto econômico, mas dependem também fortemente do contexto sócio-cultural, até mesmo como condição necessária à sua realização em determinadas condições econômicas. Ainda que socialmente construídas, as idéias acerca do trabalho não

são fator irreal, mas têm conseqüências práticas na estruturação da realidade de uma sociedade: interagem com a sua base material e social, integrando o conjunto de condições gerais de sua realização em determinado contexto histórico e sócio-econômico.

O próprio status ou valor social do trabalho e, por conseqüência, daqueles que o executam, variam também de acordo com o contexto histórico. A filosofia clássica exaltava a ociosidade “e caracterizava o trabalho como degradante, inferior e desgastante. O trabalho competia aos escravos, [e] era realizado sob um poder baseado na força e na coerção. A política, atividade superior e dos cidadãos, não era considerada trabalho” (BORGES e YAMAMOTO, 2004:28). Segundo Hannah ARENDT, a política correspondia à esfera pública, esfera da liberdade, enquanto o trabalho ou o labor correspondiam ao reino da necessidade, suprida na esfera privada ou do lar:

“o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio tem a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. [...] O labor assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo [tarefa do homem], mas a vida da espécie [tarefa da mulher]” (2004:15, 16 e 40).

A essa distinção entre política e trabalho correspondia também a distinção entre vida contemplativa e vida ativa. Ainda segundo Hannah ARENDT, “o cristianismo, com a sua crença num outro mundo cujas alegrias se prenunciam nos deleites da contemplação, conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vita activa à sua posição subalterna e secundária” (2004:24), posição que, segundo a autora, prevaleceu até o inìcio da era moderna. Ainda na Idade Média as representações acerca do trabalho eram influenciadas pela perspectiva teológica católica, que lhe atribuía um caráter de punição à qual a humanidade teria sido submetida devido à falta cometida por Adão (LALLEMENT, 2007). Assim, embora as idéias sobre o trabalho diferissem de acordo com a cultura, este persistiu desvalorizado no pensamento hegemônico ao longo da Idade Média, sendo que mudanças significativas ocorreram com o advento do capitalismo.

A introdução do modo de produção capitalista implicou numa série de mudanças “para a organização da vida e da sociedade, [sendo que] a adaptação do trabalhador a tal realidade não ocorreu de forma simples.” (BORGES e YAMAMOTO, 2004:30). É nesse contexto

que ocorre a separação dos ambientes doméstico e de trabalho. A aceitação do novo modo de organização do trabalho, em esfera separada da esfera doméstica, requereu a elaboração de uma ideologia do trabalho que o valorizasse em oposição ao ócio. O esforço de construção simbólica envolveu tanto “o desmantelamento do clássico sistema de pensamentos, conceitos, compreensões e percepções medievais” (BORGES e YAMAMOTO, 2004: 31), quanto a mobilização da ética protestante e de teorias e ideologias de corte secular, tais como a do liberalismo econômico, de Adam Smith, e o marxismo, que contribuíram na construção do conceito moderno de trabalho, ou seja de uma “ideologia da glorificação do trabalho” (BORGES e YAMAMOTO, 2004:28).

Vê-se, portanto, que o significado do trabalho não se reduz simplesmente ao de transformação da matéria, de produção da vida ou de artefatos, ele ganha sentido no âmbito da forma de divisão social do trabalho e, portanto, das relações sociais em vigor num determinado contexto histórico e social (LALLEMENT, 2007). Muito embora envolva diversos aspectos técnico-científicos, geográficos e outros de ordem material, a questão do sentido do trabalho ou da força do sentido, não é desprezível. Tanto BOURDIEU (2003), em referência à sociedade kabyla, quanto WEBER em seu estudo sobre a ética protestante e o desenvolvimento do capitalismo moderno, chamam a atenção para aquele que seria um traço orientador do trabalho na sociedade pré-capitalista, qual seja, o de que “o homem não deseja „por natureza‟ ganhar cada vez mais dinheiro, mas simplesmente viver como estava acostumado a viver, e ganhar o necessário para este fim” (2000:38). Tal disposição seria incompatível com as modernas sociedades capitalistas, uma vez que na base dessa forma de produção está “o poder de extrair gratuitamente um determinado quantum de trabalho dos trabalhadores, o poder de se apropriar de uma determinada mais-valia, mais-trabalho, mais- produto” (MARX, 1982:190). A forma de produção capitalista requereria, portanto, certo tipo específico de disposição para o trabalho que atenda a questões relativas à quantidade de trabalho necessária à maximização do lucro, estimada não apenas em termos de tempo dedicado ao trabalho como também em termos de racionalização. O seu desenvolvimento teria sido favorecido pelo tipo de ascetismo racional e intramundano que estaria na base da prática da fé protestante.

Ainda que não tivessem a mesma força significativa que o ascetismo protestante e/ou tivessem se desenvolvido mais tarde, outras ideologias de corte secular, conforme dissemos anteriormente, concorreram também para forjar uma imagem do trabalho como algo „nobre‟ e que enobrece o „homem‟11

. Uma ideologia consolidada ao longo do tempo e do espaço de ação capitalista pela exportação das técnicas, tecnologias, etc. e que contudo não pode ser pensada como algo que se propaga de modo uniforme quer entre os países, quer entre os indivìduos. Até porque antigas concepções de trabalho, embora sejam “tìpicas de um tempo histórico especìfico” (BORGES e YAMAMOTO, 2004:58), não implicam na sua extinção imediata quando da introdução de novas concepções. Além do mais, embora atualmente a disposição dos sujeitos trabalhadores de aceitar serem submetidos (e de se submeterem a si próprios) a esse processo de racionalização do trabalho já não demande um esforço simbólico tão intenso, pelo grau de evidência que alcançou nas sociedades capitalistas, o processo de atualização é sempre necessário e presente. Não só em função do fato de que, ao mesmo tempo em que pode ser fonte de prazer e reconhecimento social o trabalho pode provocar sofrimento (Helena HIRATA e ZARIFIAN, 2009:253), mas também em face de diversas transformações verificadas no campo econômico e tecnológico, da organização e das relações de trabalho, além de outras de ordem social e cultural, que abordaremos com mais detalhes no próximo capítulo.

Enfim, a emergência da sociedade salarial operou tanto a separação de esferas de trabalho, como também a dissociação do trabalho e da força de trabalho:

“a noção moderna de trabalho surgiu então sob o impacto de um verdadeiro golpe de força política e social: a separação de uma seqüência de operações que podem ser objetificadas e a capacidade humana de realizá-las. O trabalho, de um lado; a força de trabalho, de outro. E, entre os dois, o tempo, referência central de avaliação da produtividade dessa combinação entre trabalho e trabalhador” (Helena HIRATA e ZARIFIAN, 2009:253).

Por outro lado, “racionalizar o trabalho significa abstrair este último de um conjunto de espaços e de práticas (as atividades domésticas em primeiro lugar) para melhor modelá-lo segundo os cânones da razão instrumental” (LALLEMENT, 2007:15). Assim, se a

11 Referimo-nos aqui ao trabalho produtivo, remunerado e tido como nobre e enobrecedor dos homens, aos quais se destina(va). Não se dá o mesmo no caso das mulheres. Como afirma Diane LAMOUREUX, uma vez que as mulheres são associadas à esfera privada elas são atacadas na sua integridade quando saem, razão pela qual “a distinção entre a operária e a prostituta é freqüentemente tênue. [...] O homem público obtém consideração; a mulher pública é objeto de escárnio” (2009:211).

passagem da casa para a fábrica como espaço de produção necessitou de uma ideologia da glorificação do trabalho para a sua consecução, a esta correspondeu a representação da mulher como “rainha do lar”, viabilizando o esvaziamento do espaço doméstico como espaço de produção, agora limitado à reprodução. Opera-se, portanto, nesse contexto, uma distinção entre trabalho produtivo, exercido no espaço público, remunerado e reservado prioritariamente aos homens, e trabalho reprodutivo que se exerce no espaço privado, ao qual não se atribui remuneração, e que se destina basicamente à mulher, socialmente representada como esposa e mãe. A essa divisão sexuada e hierárquica de tarefas convencionou-se chamar divisão sexual do trabalho.

Na modernidade, até pelo menos meados do século XX, a palavra trabalho foi freqüentemente utilizada como sinônimo de emprego, de trabalho assalariado. Mais recentemente, o processo de fragmentação, heterogeinização e precarização que os processos e modalidades de vínculos trabalhistas vêm sofrendo, tornaram evidentes os contornos restritos das definições de trabalho em vigor até então. Estes “passaram a ser vistos como fruto de configurações culturais, de contextos cognitivos que constroem certas atividades como sendo „trabalho‟, e das instituições sociais que sustentam tais definições” (Bila SORJ, 2000:29), de modo que a palavra trabalho tem sido freqüentemente substituída pela expressão mundo do trabalho, que permite abranger um maior conteúdo significativo. Ainda assim o trabalho doméstico continua invisível tanto nas teorias econômicas, quanto nas estatísticas oficiais, seja na contabilidade nacional ou nas medidas oficiais de emprego/desemprego (Hildete P. de MELO, 2002).

A partir dos anos 60 diversos fatores contribuíram para mudanças significativas nas concepções e na conformação do mundo do trabalho, conforme teremos oportunidade de verificar com mais detalhes no próximo capítulo. Contudo, um dos fatores que certamente contribuíram para a permanência da idéia do trabalho assalariado como valor positivo, foi a ênfase que os movimentos feministas lhe deram como meio de liberação das mulheres, tendo-se verificado um significativo aumento da participação destas no mercado de trabalho a partir de meados do século XX. O trabalho assalariado, constituindo-se em meio de acesso das mulheres ao espaço público, à independência financeira, de realização

pessoal e ainda de superação da divisão sexual do trabalho doméstico, aparecia ainda como valor positivo, enquanto o processo de precarização já estava em curso. Não obstante as mudanças decorrentes desse aumento da participação de mulheres no mercado de trabalho, a divisão sexual do trabalho não pode ser considerada superada, ela apenas sofreu transformações. Enquanto o trabalho doméstico, “forma histórica particular do trabalho reprodutivo, inseparável da sociedade salarial” (Danièle KERGOAT, 2009:74), continua a ser de responsabilidade predominante das mulheres, a divisão sexual do trabalho atravessa também o tempo e o valor do trabalho assalariado das mulheres.

Assim, o trabalho é histórica e culturalmente situado e é perpassado por representações sociais as mais diversas, as quais conferem e encontram sentido nas formas dominantes de divisão social do trabalho num determinado contexto. Quer se aborde o trabalho do ponto de vista do que representa o ato de trabalhar, do sentido, forma e conteúdo de que este se reveste, ou do ponto de vista do estatuto que tanto trabalho quanto trabalhador/a ocupam numa determinada sociedade este sempre engaja relações sociais – ele constitui “uma categoria pertinente de ordenamento e hierarquização” (LALLEMENT, 2007:28). Nesse sentido, tanto o lugar que o trabalho ocupa quanto o perfil dos sujeitos que a ele têm acesso ou são submetidos e as condições sob as quais ele se realiza nos falam de hierarquias socialmente estabelecidas, indicam, mas também podem definir o jogo de relações sociais conflitivas, nas quais se inserem também as religiões e as relações de gênero.

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