2. A CONSTITUIÇÃO NA TEORIA DOS SISTEMAS CONSTITUCIONALIZAÇÃO
2.2. A CONSTITUIÇÃO COMO SISTEMA
A Constituição cumpre duas tarefas fundamentais: a formação e manutenção da unidade
política (função de integração
94) e a criação e manutenção do ordenamento jurídico (função de
organização e direção jurídica). É, pois, o “o plano estrutural básico, orientado por
determinados princípios que dão sentido à forma jurídica de uma comunidade”
95-96. A
Constituição é, pois, sobretudo, um conjunto de normas fundamentais
97-98(Constituição em
sentido material
99-100).
coordenados entre si. Trata-se de um conjunto racional, ordenado e lógico. Num sistema, as partes se conjugam, articulam-se como o todo para um objetivo comum. Em todo sistema há, necessariamente, uma unidade, um conjunta orgânico e harmonioso, onde cada parte se acha com as demais e todas tendem à realização de um único escopo”.
93 Reinhold Zippelius critica a descrição da ordem jurídica como sistema derivável de uns poucos axiomas, porquanto o pensamento jurídico não se esgote em deduções lógicas. Nada obstante, afirma que o pensamento lógico-sistemático mantém a sua função enquanto maneira de pensar entre várias, que servem para a solução de questões jurídicas. Há, portanto, a tendência fundamental da consciência do jurista a sistematização, de modo a impeli-lo a estabelecer relações claras dentro da multiplicidade das normas jurídicas, mesmo que se saiba que por esta via não se chega a uma sistematização completa (Cf. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 365).
94 Cf. GRIMM, Dieter. Constituição e política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 204.
95 HESSE, Konrad. Temas fundamentais do direito constitucional. Tradução de Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 3-8.
96 “Pode-se pensar na constituição como um projeto histórico que cada geração de cidadãos continua a adoptar. No estado democrático nacional, o exercício do poder político cifra-se numa maneira dupla: o tratamento institucionalizado dos problemas e a mediação de interesse regulada processualmente devem simultaneamente ser compreensíveis enquanto um sistema de direitos efectivados”. (HABERMAS, Jürgen. “Lutas pelo reconhecimento no estado democrático constitucional”. In.: Multiculturalismo. Org.: Charles Taylor. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 125-126).
97 Cf. GUASTINI, Riccardo. “Sobre el concepto de Constituición”. In Teoría del neoconstitucionalismo. Miguel Carbonell (org.). Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 18 (tradução do autor): “Em geral, se pode convir que são normas fundamentais de qualquer ordenamento: a) as que determinam a chamada ‘forma de Estado’; b) as que determinam a ‘forma de governo’; e c) as que disciplinam a produção normativa”.
Conforme registra Marcelo Neves, é possível uma leitura no sentido de que a Constituição na
acepção moderna é fato e produto da diferenciação funcional entre direito e política como
subsistemas da sociedade; é, pois, na concepção de Luhmann, o “acoplamento estrutural”
entre direito e política, como uma via de “prestações” recíprocas e, sobretudo, como
mecanismo de interpenetração entre dois sistemas sociais autônomos, de modo a possibilitar
uma solução jurídica do problema de auto-referência do sistema político e, ao mesmo tempo,
uma solução política do problema de auto-referência do sistema jurídico. A Constituição serve
à interpenetração e interferência de dois sistemas auto-referencias, o que implica relações
recíprocas de dependência e independência, que, por sua vez, só se tornam possíveis com base
na formação auto-referencial de cada um dos sistemas
101-102.
98 “Com isso existiam dois pressupostos essenciais para a constituição no sentido moderno da palavra. Por um lado, existia um sistema diferenciado, especializado funcionalmente em poder político e provido de um instrumentário correspondente, que, diferentemente do poder na Idade Média, passou a interessar como objeto de uma lei especializada em regulamentação do poder. Por outro, tornaram-se regulamentáveis questões de ordem pública que, até então, haviam encontrado sua resposta de validade intemporal no plano divino do mundo e, assim, não necessitavam da decisão, mas do reconhecimento” (GRIMM, Dieter. Constituição e política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 204).
99 Riccardo Guastini fornece cinco sentidos para designar a Constituição material: (a) normas que, em qualquer ordenamento, determinam a “forma de Estado” e a “forma de governo”; (b) conjunto de normas sobre a legislação, ou, mais em geral, ao conjunto de normas sobre as fontes; (c) “decisão política fundamental do titular do poder constituinte”, compreendida esta ou como a decisão relativa à forma de Estado, ou como a decisão relativa ao conjunto dos princípios supremos que caracterizam qualquer ordenamento; (d) regime político vigente em um Estado, concebido este ou como o conjunto dos fins políticos em vista dos quais as forças dominantes inspiram a ação estatal, ou como o real arranjo e funcionamento das instituições políticas nas várias fases históricas, à margem de quanto prescrevem as correspondentes Cartas Constituições; (e) como sinônimo de “Constituição viva” (Constitución viva), i.e., o modo pelo qual uma determinada constituição escrita é concretamente interpretada e atuada na realidade política. [Cf. GUASTINI, Riccardo. “Sobre el concepto de Constituición”. In Teoría del neoconstitucionalismo. Miguel Carbonell (org.). Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 26-7 (tradução do autor)].
100 É esencial que a Constituição contenha: (i) regras referentes a emissão de “normas de direitos que afetam cidadãos”; são as condições para a produção do direito legislado; (ii) estabelecimento de direitos fundamentais;
(iii) garantias para a atuação das normas jurídicas nela estabelecidas. (Cf. NAWIASKY, Hans. Teoria general del derecho. Traducción de la segunda edición en lengua alemana José Zafra Valverde. Granada: Comares, 2002,
p. 43-4).
101 Cf. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 65-7.
102 Paolo Comanducci identifica quatro modelos de constituição, dividi em dois grupos: o dos modelos de constituição como ordem e o dos modelos de constituição como norma. São esses modelos: (a) modelo
axiológico de constituição concebida como ordem: desenvolvido por Carl Schmidt, designa um conjunto de
fenômenos sociais que, em seu conjunto e dentro da esfera jurídico-política, aparecem dotadas de máximo valor intrínseco ou se apresentar como geradores de normas; (b) modelo descritivo de constituição concebida como
ordem: designa simplesmente um conjunto de fenômenos sociais; vale dizer um objeto que não possui valor
intrínseco nem gera normas e que, portanto, podem muito bem ser descritos com os instrumentos das ciências sociais; (c) modelo descritivo de constituição concebida como norma: designa um conjunto de regras jurídicas positivas, consuetudinárias ou expressas em um documento que, em relação às outras regras jurídicas, são fundamentais; (d) modelo axiológico de constituição concebida como norma: designa, igualmente, um conjunto de regras jurídicas positivas, consuetudinárias ou expressas em um documento que, em relação às outras regras jurídicas, são fundamentais, com a condição de que possuam determinados conteúdos aos quais se atribui um
valor específico (cf. “Modelos e interpretación de la Constituición”. In Teoría del neoconstitucionalismo. Miguel
Carbonell (org.). Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 42-52). Segundo este último modelo, a Constituição apresenta algumas características específicas: (a) a Constituição se situa no vértice da hierarquia das fontes e,
A hierarquização interna do sistema jurídico no modelo Constituição/lei atua como condição
de reprodução autopoiética do direito moderno, servindo ao seu fechamento normativo
operacional; no dizer de Luhmann
103, a Constituição fecha o sistema jurídico, mantendo este
fechado por meio do reingresso no sistema; determina como e até que ponto o sistema jurídico
pode reciclar-se sem perder a autonomia operacional
104. Por outro lado, o sistema
constitucional também é capaz de reciclar-se em relação ao que ele mesmo prescreve, por
intermédio do processo de reforma e de concretização das normas constitucionais (mutação
constitucional), gerando uma abertura de caráter cognitivo do sistema constitucional
105-106.
A Constituição, embora acoplamento estrutural entre política e direito, é concebida por cada
um dos sistemas como mecanismo interno da sua auto-reprodução, e possibilita o reingresso
da diferença entre o jurídico e o político nos respectivos sistemas
107. Isso permite a
capacidade evolutiva das Constituições; às mudanças constitucionais recorrem-se para evitar
as rupturas, sendo certo que uma qualidade importante do constitucionalismo reside na
capacidade que possuem os textos para adaptar-se a circunstâncias cambiantes, por meio da
interpretação, sem transformar a redação originária (mutação constitucional)
108-109.
ademais, modifica qualitativamente esse hierarquia; (b) a Constituição é um conjunto de normas, que contém regras e princípios que a caracterizam; esses princípio não são formulados necessariamente de modo expresso, e podem ser reconstruídos tanto a partir do texto como se prescindindo dele; (c) a Constituição tem uma relação especial com a democracia, em um duplo sentido: c1) há uma conexão necessária entre a democracia como isonomia e Constituição: não pode haver Constituição sem democracia, nem democracia sem Constituição; c2) a Constituição funciona necessariamente como limite da Democracia entendida como regra da maioria; (d) a democracia funciona como ponte entre o direito e a moral (ou a política), já que abre o sistema jurídico a considerações do tipo moral, em duplo sentido: d1) os princípios constitucionais são princípios morais positivados; d2) a justificação no âmbito jurídico (sobretudo a justificação da interpretação) não pode deixar de recorrer a princípios morais; e) a aplicação da Constituição, à diferença da interpretação da lei, não pode fazer pelo método da subsunção senão que, em razão da presença dos princípios, deve realizar-se geralmente por meio do método da ponderação ou do sopesamento. (cf. “Modelos e interpretación de la Constituición”. In Teoría del
neoconstitucionalismo. Miguel Carbonell (org.). Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 52-3).
103 Para uma áspera crítica à aplicação do pensamento de Luhmann tocante à autopoiesis ao fenômeno jurídico, ver LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito. Volume 3: do século XX à pós-modernidade. Tradução Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 409-16: “Em conclusão, a teoria de Luhmann deixa uma impressão de grande criatividade, frequentemente também de genialidade, mas não convence: parece- me um genial arsenal de metáforas que explicam tudo sem dizer nada” (p. 416).
104 Cf. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 70-1. 105 Cf. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 72.
106 “O sentido da constituição é justamente retirar da discussão política certos princípios básicos de consenso geral, mas, dentro do quadro assim criado, deixando espaço para preferências alternantes ou reações a condições alteradas. Nesse espaço, chega a ser empregado o princípio majoritário com a consequência de que, no caso de alternâncias nas maiorias ou de melhores entendimentos, também são possíveis mudanças jurídicas sem que, por isso, toque-se no patamar dos princípios” (GRIMM, Dieter. Constituição e política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 282).
107 Cf. NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 99. 108 Cf. REYES, Manuel Aragón. “La Constituición como paradigma”. In Teoría del neoconstitucionalismo. Miguel Carbonell (org.). Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 37-8.
Nesse sentido, na interpretação do texto constitucional não se pode relegar ao oblívio sua
feição de sistema jurídico, dotado de unidade
110e a abertura quanto aos seus subsistemas, de
sorte que sua interpretação não pode se dar por tiras
111, mas de modo sistemático e
uniforme
112, integrativo entre as normas-princípio e as normas-regra que o compõem
113.
109 “A constituição não está comprometida com determinados conteúdos. Mas de sua função como juridicização de poder, resultam componentes típicos. As constituições costumam estabelecer o princípio de legitimação de poder político e as condições fundamentais de legitimidade de seu exercício. Isso ocorre nas chamadas determinações de estrutura ou determinações de objetivos do Estado. Além disso, todas as constituições contêm determinações sobre a instituição e exercício do poder público, as quais são, regras organizacionais e processuais encarregadas de garantir um desempenho do poder público conforme aos princípios e de prevenir abusos e, para este fim, empenham-se normalmente na condição do Estado de Direito e na divisão dos poderes. Ademais, são regularmente traçados na constituição, os limites entre o poder de coerção estatal por um lado e a liberdade individual e a autonomia social por outro. Isso é matéria dos direitos fundamentais” (GRIMM, Dieter.
Constituição e política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 208-9).
110 Cf. VILANOVA, Lourival. As Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 156: “O que interliga proposições normativas tão variadas em conteúdo é o fundamento-de-validade que cada uma tem no todo. Ainda que, como proposições, não faltam as relações lógicas, que a estrutura interna de cada proposição, como a estrutura total do sistema tenham de seguir as possibilidades lógicas de construção e de transformação sintáticas pertinentes a todo universo de linguagem, o formal-jurídico do sistema normativo está no fato de que as proposições não derivam uma das outras por um processo de inferência, em sentido estrito, quer dizer, com base no conteúdo significativo da proposição que funciona como postulado do sistema”.
111 Cf. GRAU, Eros Roberto. A Ordem econômica na constituição de 1988. 9.ª ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 150: “Aqui devo salientar, contudo, inicialmente, que, assim como jamais se interpreta um
texto normativo, mas sim o direito, não se interpretam textos normativos constitucionais, isoladamente, mas sim
a Constituição, no seu todo. Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços”. Cf. GRAU, Eros Roberto.
Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p 34: “A
interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele — do texto — até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum”.
112 “A ordem econômica e Financeira não é ilha normativa apartada da Constituição. É fragmento da Constituição, uma parte do todo constitucional e nele se integra. A interpretação, a aplicação e a execução dos preceitos que a compõem reclamam o ajustamento permanente das regras de Ordem Econômica e Financeira às disposições do texto constitucional que se espraiam nas outras partes da Constituição. A Ordem Econômica e
Financeira é indissociável dos princípios fundamentais da República Federativa e do Estado Democrático de Direito. (...) A concretização dos princípios que informam a Ordem Econômica e Financeira é inseparável dos
Direitos e Garantias Fundamentais, que asseguram aos Brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (HORTA, Raul Machado. “Constituição e ordem econômica e financeira”. In Revista de Informação legislativa. Brasília, ano 28, n, 111, jul/set. 1991, p. 20, destaques acrescidos).
113 Em derredor dos sistemas jurídicos compostos de princípios, observe-se o magistério de Karl Larenz, apoiado em Canaris: “Logo daí resulta a ‘abertura’ de um sistema formado a partir de princípios jurídicos. Acresce ainda a mutabilidade histórica da ordem jurídica, incluindo as valorações em que se escora. Os princípios jurídicos gerais não podem ter o seu fundamento de validade apenas na ordem esta- tuída, mas para além dela eles assentam também ‘na idéia de Direito, cujas concretizações históricas eles representam em larga escala, bem como na natureza das coisas’. E nessa medida também não se pode concebê-los como ‘a-históricos e por isso estáticos’; ao invés, os princípios recondutíveis à idéia de Direito ou à ‘natureza das coisas’ alcançam ‘a sua configuração concreta em todas as regras somente mediante a referência a uma determinada situação histórica e na indagação da consciência jurídica geral em cada momento’. Nas delimitações a que com isso se alude, a descoberta das conexões sistemáticas dos princípios e subprincípios amplia, porém, o conhecimento do Direito e serve ao mesmo tempo para a interpretação das normas e para o preenchimerito de lacunas, garantindo simultaneamente a ‘unidade valorativa e a deducionabilidade no desenvolvimento do Direito’. Enquanto ‘súmula das valorações fundamentais em que se escora uma ordem jurídica’, o sistema conduz ‘à representação da justiça material, tal como esta se realizou em cada uma das ordens juspositivas’” (LARENZ, Karl. Metodologia da
Em termos de hermenêutica constitucional, convém distinguir os procedimentos
interpretativos de bloqueio dos procedimentos interpretativos de legitimação das aspirações
sociais. O primeiro se volta ao Estado de Direito concebido como Estado mínimo, reduzido
em suas funções, de sorte que tem uma orientação de bloqueio, conforme princípios da
legalidade e estrita legalidade, como peças fundamentais da constitucionalidade; a
interpretação de legitimação das aspirações sociais, por sua vez, significa que certas
aspirações se tornariam metas privilegiadas, que superariam a conformidade constitucional
estritamente formal – fazem parte da pretensão de realização inerente à própria Constituição.
Pressupondo-se que uma Constituição apresente, em seu texto, um sistema de valores, a
aplicação das suas normas, por via interpretativa, se torna uma realização de valores; o
procedimento hermenêutico de captação do sentido de conteúdo das normas torna-se
compreensão valorativa conforme procedimentos próprios de análise e da ponderação de
valores
114.
As normas constitucionais (normas-princípio) que veiculam as Limitações Constitucionais ao
Poder de Tributar, malgrado, a primeira vista, comportassem apenas procedimentos
interpretativos de bloqueio (princípios da legalidade e da irretroatividade), reclamam,
outrossim, procedimento interpretativo de legitimação das aspirações sociais (princípio da
capacidade contributiva e princípio da validação finalística, e.g., – este último aplicável às
contribuições especiais).
Nesse contexto, convém destacar, como o faz Tércio Sampaio Ferraz Júnior, que, para realizar
o pressuposto difuso da legitimidade de uma constituição, a dogmática se serve de
instrumento operacionais, que são constituídos de regras ou princípios legitimantes, a respeito
dos quais o autor distingue três grupos: (i) regras de fixação de valores, pelas quais se
estabelece um sistema constante de valores; (ii) regras de programação, por meio da qual o
sistema é projetado temporalmente num fluxo de adaptações; (iii) regras de consecução, por
meio do qual o sistema recebe atualização
115.
114 Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. “Legitimidade na Constituição de 1988”. In. Constituição de 1988:
Legitimidade, vigência e eficácia, Supremacia. São Paulo: Atlas, 1989, p. 10-11.
115 Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. “Legitimidade na Constituição de 1988”. In. Constituição de 1988:
O primeiro grupo (regras de fixação de valores) permite dar os traços constantes das
constituições; não são regras meramente formais, mas de conteúdo, de modo que é impossível
concebê-los fora do tempo e do espaço, nada obstante, para efeito de funcionamento, se
apresentem, na dogmática, como universais abrangentes e permanentes. São regras dessa
categoria: (1) regra da principialidade das constituições – a Constituição se afigura como
princípio, eis que, do ângulo dogmático, é algo novo, que produz um inesperado, do qual pode
decorrer o infinitamente improvável, pois a constituição é primordialmente liberdade; (2)
regra de transparência – sem a revelação do agente no ato fundante, a Constituição perdeu
seu caráter de princípio e, portanto, legitimidade, passando a ser um meio para atingir um fim.
Uma Constituição deve ser encarada como uma ocorrência entre os membros da sociedade, na
medida em conservam sua capacidade de se revelarem como agentes, mesmo quando seu
conteúdo está voltado para o mundo dos interesses que se interpõem entre eles, mas que, ao
mesmo tempo, os relacionam e interligam; (3) regra de participatividade – malgrado todos os
membros da sociedade vivam no espaço público, não vivem nele permanentemente, de modo
que cabe à Constituição organizá-los, por meio da regra da participatividade; daí as
organizações das várias ordens (ordem política, ordem econômica, ordem social etc)
116.
As regras de programação asseguram a legitimidade constitucional no sentido da sua
permanência e adaptabilidade às mudanças; distinguem-se três regras; (1) regra da
intangibilidade – certos valores são considerados inalteráveis (cláusulas pétreas); (2) regra da
alterabilidade – determina a possibilidade de alteração de parte da Constituição ao longo do
tempo; legitima o poder derivado; (3) regra de projeção – a dogmática toma os valores
básicos na sua imediatidade e os lança como critério de realizabilidade, no futuro, de modo a
neutralizar as expectativas adversas que ocorre do futuro para o passado, fazendo do presente
uma aspiração sempre a realizar-se
117.
As regras de consecução implicam atualização do sistema. São também três: (1) regra da
onipotencialidade – o respeito à legitimidade constitucional deve estar conjugado com a
imperatividade incontrastável de seus valores máximos, de modo que nenhum valor básico
deixa de incidir; (2) regra da onicompreensividade – incidência plena e imperativa dos
valores máximo deve também sê-lo quanto à sua extensão, de modo a incidir sobre todo e
116 Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. “Legitimidade na Constituição de 1988”. In. Constituição de 1988:
Legitimidade, vigência e eficácia, Supremacia. São Paulo: Atlas, 1989, p. 24-5.
117 Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. “Legitimidade na Constituição de 1988”. In. Constituição de 1988: