2. A CONSTITUIÇÃO NA TEORIA DOS SISTEMAS CONSTITUCIONALIZAÇÃO
2.4. LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR
2.5.1. Fundamentação histórico-filosófica
454 “Ao declarar a aplicação dos direitos fundamentais também às pessoas coletivas nacionais, também lhes concede a legitimidade jurídico-fundamental. Como pressuposto, o preceito referido exige que os direitos fundamentais seja, pela sua natureza, aplicáveis às pessoas coletivas nacionais”. (PIEROTH, Bodo. SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. Tradução de António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 93).
A idéia do Estado de Direito é indissociável da consagração (positivação) e do respeito aos
direitos fundamentais
455-456. Não é possível falar de Estado de Direito sem que se pressuponha
a limitação do Poder do Estado por intermédio da Constituição, que consagre os direitos
fundamentais.
No primeiro modelo de Estado de Direito – o Estado Liberal de Direito – consagram-se os
direitos de primeira dimensão: as liberdades públicas. Apoiado em Blunstschli, Fritz Fleiner,
Anschutz, Richard Thoma, Orlando, Santi Romano e Caristia, Pablo Lucas Verdú pontua as
premissas estabelecidas pelo Estado Liberal de Direito, ao ser abrangido pelo Estado
Constitucional: (i) primazia da lei em sentido formal (elaborada pelos Parlamentos, nos
regimes das democracias liberais), que regula toda a atividade estatal, tanto na esfera
executiva quanto no âmbito jurisdicional, e igualdade formal dos cidadãos perante a lei; (ii)
um sistema hierárquico de normas que preserva a segurança e que se concretiza na diferente
natureza das distintas normas que o compõem e em seu respectivo âmbito de validade; (iii)
legalidade da Administração Pública, estabelecendo-se o sistema de recursos e impugnações
contra suas suas decisões (controle administrativo, de ofício ou por provocação); (iv)
separação dos poderes como garantia da liberdade ou controle de possíveis absurdos; (v)
reconhecimento da personalidade jurídica do Estado, que mantém relações jurídicas com os
455 Cf. VERDÚ, Pablo Lucas. A Luta pelo Estado de Direito. Tradução e Prefácio.: Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.7-8: “Para que se possa falar em um Estado de Direito não é preciso que este mantenha uma ideologia política determinada. Basta que o Estado atue de forma limitada, podendo esta limitação assumir várias facetas. Ela pode verificar-se por meio do simples direito positivo, através dos direitos individuais ou mesmo da limitação transcendente do direito natural. [...] Portanto, é inexato considerar exclusivamente como Estado de Direito aquele que se fundamenta nos princípios individualistas. Essa tendência corresponderia a petrificar a evolução do Estado de Direito num momento determinado (a oposição ao absolutismo), desconhecendo o seu posterior desenvolvimento”.
456 “Por isso, o Estado de Direito atua como limite e como garantia. No primeiro caso, isso se dá quando determina uma fronteira mínima que não se pode ultrapassar em assumir os riscos antes assinalados. Atua como garantia no instante em que o respeito pelas normas jurídicas figura como um postulado cultural que afasta a arbitrariedade e distingue o Estado moderno do Estado absoluto. Trata-se de um postulado que oferece base à confiança dos cidadãos, convencendo-os de que vivem em liberdade.
O Estado de Direito foi se enriquecendo de conteúdo. Nascido de frente ao Fürstenstaat [Estado do Príncipe] e o
Polizeistaat [Estado Policial], resgatou os indivíduos da ameaça das lettres de cachet ( ordens de prisão ou de
exílio emitidas pelo monarca ou pelos secretário de Estado) e do capricho dos governantes. O Estado de Direito serviu de apoio para os direitos subjetivos públicos, convertendo os súditos em cidadãos livres. Os movimentos sociais do século XIX revelaram a insuficiência das liberdades burgueses, permitindo que se formasse uma consciência da necessidade da justiça social. Mas o Estado de Direito, que já não podia se justificar como liberal, precisou abandonar a sua neutralidade para afrontar a maré social, além de integrar a sociedade sem renunciar ao primado do Direito. O Estado de Direito deixa de ser formal, neutro e individualista para transformar-se em Estado Material de Direito, na medida em que adota uma dogmática e uma finalidade voltadas para o fomento da justiça social. Desse modo, pode-se dizer que, nas condições do capitalismo avançado, a classe dominante optou pelo Estado Social de Direito. No entanto, dados os resíduos exploradores que ele alberga, é necessário superá-lo mediante uma nova modalidade de Estado de Direito, um Estado que venha a harmonizar-se plenamente com a justiça social”. (VERDÚ, Pablo Lucas. A Luta pelo Estado de Direito. Tradução e Prefácio.: Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 90-1).
cidadãos; (vi) reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais incorporados à ordem
constitucional; e (vii) como garantia ao despotismo do Legislativo, controle de
constitucionalidade das leis, cujo modelo varia segundo a ordem constitucional de cada
país
457-458.
O Estado Liberal de Direito, contudo, tem suas estruturas esgarçadas justamente pela
insuficiência de seu modelo para atendar os anseios das grandes camadas que compõem o
tecido social. Um Estado abstencionista no campo econômico e social – que, em um primeiro
momento, apresentou-se como o modelo necessário a barrar o poder desmedido dos Estados
absolutistas – mostra-se extremamente débil a, nesse segundo momento, satisfazer às
necessidades surgidas sob o amalgama de uma economia de mercado e pautada pelo viés do
capitalismo.
A imposição ao Estado de prestações negativas, tendentes a garantir o direito de liberdade no
mais amplo sentido, constituiu-se os direitos fundamentais de primeira dimensão e mostrou-se
urgente para conter o Estado absolutista. Ao final do século XIX, início do século XX, os
movimentos sociais eclodidos na Europa forçaram um mudança de postura do Estado; de
liberal e abstencionista, para intervencionista e de promotor do bem-estar social
459.
Imperiosa a mudança de feição do Estado, imperiosa, outrossim, a existência de uma
constituição a conformá-lo. Surgem, portanto, as constituições sociais e econômicas,
consagradoras – além das liberdades públicas (máxime em função da proibição do retrocesso
457 Cf. A Luta pelo Estado de Direito. Tradução e Prefácio.: Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 13-4.
458 “Fruto maduro da burguesia, o Estado Liberal de Direito foi concebido para uma situação econômica próspera, para um momento de paz social. Entretanto, o Estado de Direito não é patrimônio de uma classe social. A contrário, serve ou deve servir para todas as classes que compõem a sociedade. O Estado de Direito deve conservar em seu seio os postulados mais nobres descobertos pelo movimento liberal, a exemplo dos direitos fundamentais. Contudo, se não pretende assumir uma forma anacrônica, indubitavelmente há de mudar a etiqueta ‘liberal’ por outra mais justa e atual”. (VERDÚ, Pablo Lucas. A Luta pelo Estado de Direito. Tradução e Prefácio.: Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 9).
459 Edvaldo Brito, citando Hugh Dalton, afirma que a teoria do moderno Estado do bem estar social parte da premissa que a justificativa da tributação está na sua realização de forma ética, ou seja, realizando a despesa pública para a promoção da máxima vantagem social. Ressalta que a aplicação dos recursos públicos deve buscar primordialmente a: a) proteção da coletividade; b) melhoria da produção; e c) melhoria da repartição das riquezas. Conclui, finalmente, asseverando que o Estado do bem estar social: 1) tem objetivo redistributivo; 2) desempenha suas atividades mediante operações de finanças públicas; 3) utiliza, dentre outros meios, o instrumental tributário para intervir na ordem econômica e viabilizar o alcance da justiça social; 4) intervir na ordem econômica com a finalidade de organizar a sociedade na perspectiva da justiça social pela melhoria da produção e da distribuição do que for produzido (cf. BRITO, Edvaldo. Reflexos da atuação do Estado no
e da concorrência) – dos direitos sociais
460. Com isso, introduz-se, outrossim, o modelo de
Estado Social de Direito.
O Estado Social de Direito, por sua vez, designa uma realidade consistente na incorporação
dos direitos sociais às constituições européias; trata-se, pois, na expressão de Pablo Lucas
Verdú, do intento de converter em direito positivo várias aspirações sociais, elevadas à
categoria de princípios constitucionais protegidos pelas garantias do Estado de Direito.
Constituem, pois, postulados inseridos em Constituições rígidas, que condicionam, enquanto
direito imediatamente vigente, a legislação, a Administração e a prestação jurisdicional, na
forma do art. 3.º da Lei Fundamental de Bonn; os direitos sociais vêem reforçado o seu valor
mediante garantias jurídicas claras e seguras
461.
Aplicando-se uma distinção traçada por Ernst Forsthoff, pode-se dizer que o Estado Liberal
de Direito baseia suas instituições na idéia de limitação (Ausgrensung), conotação negativa,
ao passo em que o Estado Social de Direito se caracteriza pela dimensão positiva da
participação; o primeiro aponta para a liberdade como limite; o segundo, para a participação
(Teilhabe); tal discriminação não é uma discriminação superficial, que contraponha vocábulos
distintos, uma vez que cada um deles tem profundo significado: o da liberdade que qualifica o
Estado Liberal de Direito, como garantia e limite, e o da participação, que confere sentido ao
Estado Social de Direito
462.
Eis a síntese bem articulada de Pablo Lucas Verdú: (i) o Estado Social de Direito surge após o
enfrentamentos sociais, com a finalidade de normatizar as reivindicações sociais, sem
necessidade de recorrer à revolução, ou seja, o Estado Social de Direito é fruto do acordo
entre a direito liberal ‘civilizada’ e o socialismo democrático ‘responsável’; (ii) o Estado
Social de Direito implica uma pausa na luta social e na luta pelo Estado do Direito; em
consequência, a pergunta reside em saber se, dada a natureza e as pretensões das massas
atuais, ainda são válidas as estruturas e, principalmente, a política econômica e social do
Estado de Direito para satisfazer aquelas exigências com justiça; (iii) se a resposta for
negativa, então fica aberto o caminho para o Estado Democrático de Direito; entretanto, assim
460 Destacadamente, a primeira constituição com esse perfil não foi européia; foi a Constituição do México de 1917. Esta foi sucedida, na Europa, precisamente na Alemanha, pela Constituição de Weimar (1919).
461 Cf. VERDÚ, Pablo Lucas. A Luta pelo Estado de Direito. Tradução e Prefácio.: Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.79.
462 Cf. VERDÚ, Pablo Lucas. A Luta pelo Estado de Direito. Tradução e Prefácio.: Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 100.
como o Estado Social de Direito, ele continha resquícios do Estado Liberal de Direito; no
Estado Democrático de Direito, sobrevivem elementos do Estado Social de Direito, quais
sejam a regulação e garantia de direitos econômicas, justiça constitucional, reconhecimento
dos paridos políticos e dos sindicatos livres
463. Verdú arremata o raciocínio ao afirmar, de
modo simplista porém preciso, que “o Estado Democrático de Direito parece ser a
combinação de uma esquerda liberal socializada e de um socialismo não comunista consciente
de deficiências do neocapitalismo que precisam ser superadas”.
Na luta pela formulação do Estado de Direito, segundo Pablo Lucas Verdú, cooperaram: (a) a
tradição anglo-francesa das declarações de direitos e o enorme prestígio que nesses países
tiveram e têm os juízes, na tarefa de interpretar, aplicar a criar o Direito; (b) a dogmática
alemã do Direito Público (Gerber, Laband, Jellinek), a quem se deve a expressão Rechtsstaat
(Robert von Mohl) e as consistentes construções de Kelsen, sobretudo na sua aplicação à
jurisdição constitucional; (c) a jurisprudência francesa do Conselho do Estado, da III
República; (d) as construções da dogmática italiana do Direito Público (Orlando, Santi
Romano, Ranelletti, Zanobini)
464.
Esse painel fez-se necessário a fim de demonstrar que as limitações constitucionais ao poder
de tributar enquadram-se como direitos fundamentais. Isso porque: (a) o poder de tributar é
expressão da soberania; (b) o poder de tributar é um dos poderes reconhecidos
constitucionalmente ao Estado; (c) o poder de tributar tem fundamento na Constituição,
baseado no princípio da solidariedade social e da capacidade contributiva (este último, além
de fundamento, limite ao próprio poder de tributar); (d) como poder do Estado, há de
encontrar limite no texto constitucional; (e) esses limites visam a preservar valores já
consagrados pela própria constituição como dignos de proteção contra qualquer forma de
intervenção restritiva do Estado; (f) os limites ao poder de tributar ostentam todas as
características dos direitos fundamentais, constituindo-se, inclusive, cláusulas pétreas.
Ao tratar das funções jurídico-objetivas dos direitos fundamentais, Bodo Pieroth e Bernhard
Schlink ressaltam que tal categoria de direitos opera, também, como normas de competência
negativa, na medida em que o Estado não pode fazer uso arbitrário das suas competências,
463 Cf. VERDÚ, Pablo Lucas. A Luta pelo Estado de Direito. Tradução e Prefácio.: Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 150-1.
464 Cf. VERDÚ, Pablo Lucas. A Luta pelo Estado de Direito. Tradução e Prefácio.: Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 141-2.
mas apenas pode fazer o uso que os direitos fundamentais permitirem; são limite ou negação
das competências do Estado e, nessa medida, normas de competência negativa
465.
Nesse contexto, Jorge Miranda destaca a função integradora da Constituição, chamando a
atenção para alguns elementos de hermenêutica constitucional que – aplicado o raciocínio ao
tema em comento – reforçam a conclusão de que as limitações constitucionais ao poder de
tributar são, de rigor, de direitos fundamentais. Ei-los: (a) apreensão da Constituição como
um todo, buscando-se uma unidade e harmonia de sentido; uma síntese globalizante, credível
e dotada de energia normativa; (b) superação de eventuais contradições de normas mediante,
em alguns casos, a redução adequada do respectivo alcance e âmbito e da cedência de parte a
parte, ou mediante, em outros casos, a preferência ou a prioridade, na efetivação de certos
princípios frente aos restantes; exige-se, pois, a concordância prática, assente num critério de
proporcionalidade; (c) compreensão dos conceitos indeterminados eventualmente utilizados
pelas normas constitucionais sempre na perspectiva dos princípios, valores e interesses
constitucionalmente relevantes; (d) de igual forma, a compreensão de conceitos pré-
constitucionais (ou exógenos) tem de ser feita em conexão com os demais e analisados tendo
em conta quer o seu sentido originário quer com o que lhe advém da sua colocação
sistemática; (e) a máxima eficácia a cada norma constitucional; (f) caráter aberto das normas
programáticas; (g) necessidade de se interpretar os preceitos constitucionais não só pelo que
explicitamente ostentam, mas, também, no que implicitamente resultam; (h) todas as normas
constitucionais têm de ser tomadas como normas da Constituição atual, da Constituição que
se tem, vinculativa; e não de uma constituição futura; (i) consideração a respeito das leis e
decisões dos tribunais sobre as normas constitucionais, não se perdendo, contudo, a premissa
segundo a qual não é a Constituição que se interpreta conforme a lei, mas esta que deve ser
interpretada conforme a Constituição
466.
Nesse quadro, as limitações constitucionais ao poder de tributar, diante desse quadro, são, de
rigor, direitos fundamentais. Por se tratarem de potestades do sujeito – do contribuinte –
contra o Estado, enquadram-se como direitos de primeira dimensão. Impõem ao Estados
posturas abstencionistas no exercício do poder tributário, a começar pela própria delimitação
deste por intermédio da competência tributária. Além disso, as limitações constitucionais ao
465 Cf. Direitos fundamentais. Tradução de António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 67.