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2. PRIMEIRA PARTE: ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.2. O D ESIGN I NDUSTRIAL E A SUA H ISTÓRIA

2.2.1. D E FINAIS DO SÉCULO XIX A 1950:

2.2.1.1. De Morris a Muthesius

Os três séculos de expansão da revolução industrial inglesa, iniciada no século XVII, atingiram o seu auge nos finais do século XIX. Alastrando-se rapidamente aos países mais ricos da Europa e aos EUA este factor teve como consequência uma vasta reestruturação social e económica, registada nos dois continentes, nomeadamente

pela proliferação de produtos industriais de amplo consumo60. Contudo, e não

ignorando a aplicação – obrigatória – do factor função aos objectos utilitários já então produzidos pela indústria, a noção de funcionalidade total do objecto, mediante uma consideração ampla das suas implicações (ergonómicas, antropomórficas, de segurança, etc.), estava ainda por explorar. Por conquistar estava também a “educação do gosto e das formas”, quer dos produtores quer dos consumidores ainda altamente condicionados pela influência excessiva de uma ornamentação historicista de inspiração na arquitectura61, a qual infligia implicações directas na funcionalidade

da maior parte dos objectos e na complexidade dos seus processos de fabrico. Tendo sido apenas em meados do século XX que se determinaram os primeiros pressupostos

60 A este propósito recomenda-se o capítulo “O ambiente doméstico nos primórdios da Era industrial” da obra de Raul Cunca,

Território Híbridos, Lisboa, Biblioteca d’Artes, 2006.

61 “ (…) as obras técnicas e mecânicas (compreendendo as grandes pontes metálicas, as primeiras máquinas a vapor, os

primeiros teares mecânicos e as máquinas de escrever) eram consideradas totalmente distintas das ‘belas artes’ e em que, em suma, se procurava por vezes ‘mascarar’ a máquina acrescentando-lhe alguns ornamentos ou introduzindo na sua estrutura elementos decorativos (capitéis, pequenas colunas)” (Gillo Dorfles, 1991, 31).

“Durante o século XIX, era frequente escritores e artistas assumirem uma posição crítica, por vezes até de nítida rejeição, relativamente à máquina. […] A rápida difusão da locomotiva, ocorrida na Inglaterra entre 1830 e 1850, altera radicalmente o panorama visual da sociedade vitoriana. E não apenas o panorama visual: a linguagem literária, e até a quotidiana, aparecem saturadas de metáforas mecânicas de todos os tipos, a que habitualmente se recorre para descrições de coloração negativa ou depreciativa. A natureza, tão celebrada pelos românticos, aparece agora ameaçada por um engenho – a locomotiva – frequentemente definido como maléfico. Pela primeira vez, o homem vitoriano verifica, estupefacto, a irrupção – a seus olhos ultrajante – do mecânico no orgânico.” (Tomás Maldonado, 1999, 29)

que originariam o Design Industrial como disciplina, foi, todavia, nos finais do século XIX, precisamente por oposição ao produto industrial de então, que se iniciou esse processo histórico.

O apoio das instituições religiosas e militares inglesas à industrialização, designadamente pela defesa da mão-de-obra feminina e infantil, levou à revolta da classe masculina que o desemprego atingia maioritariamente. Nesse panorama surgem, por toda a Inglaterra, movimentos organizados de oposição à industrialização. Esses movimentos foram sustentados por grupos de intelectuais cuja influência no campo específico das Artes merece particular atenção no âmbito do presente trabalho.

Insurgindo-se quer contra a massificação de produtos considerados “incaracterísticos”, quer contra a proliferação da máquina como substituta da mão-de-obra humanizada, na última metade do século XIX, surgem, no meio artístico inglês, os primeiros manifestos e organizações contrários à industrialização, motivados por preocupações estéticas e sociais. Wiliam Morris (1834-1896), pintor, filósofo e crítico de arte, assumindo-se como antagonista aos caminhos da “civilização moderna”, foi nesse contexto um dos maiores dinamizadores de movimentos alternativos à produção industrial. Fundador de um número vasto de oficinas promotoras de um estilo próprio, nos anos 80, Morris, conjuntamente com John Ruskin (1819-1900), cria o movimento “Arts and Crafts” cujo objectivo visava a recuperação de métodos de produção e de construção tradicionais, com recurso a técnicas e estilísticas do artesanato ancião. Nesse sentido, eram visivelmente assumidas influências decorativas góticas e orientais62.

62 “Um dos primeiros a procurar reintroduzir o elemento estético no campo da produção em série foi William Morris (1834-

1895), um dos animadores do movimento inglês Arts and Crafts, embora a sua posição a respeito do papel da máquina na execução artística e artesanal fosse absolutamente negativa. Para Morris, uma das maiores qualidades do homem consistia precisamente na sua faculdade de fabricar manualmente e sem qualquer recurso à intervenção mecânica. […] Os resultados dos seus esforços podem ser comprovados, por exemplo, na Casa Vermelha, que mandou construir a Philip Webb, em 1859, e de cujos pormenores de arranjo ele se ocupou pessoalmente, desde as tapeçarias aos estofos, dos cortinados aos vidros e aos móveis. […] Deste modo se reconhecia a importância educativa da actividade artesanal, ao mesmo tempo que era negada a mecanização. Todavia, os seus constantes esforços para esclarecer as relações entre o material, o método produtivo e as formas, assim como no sentido de emancipar o artesanato da servidão relativamente a módulos procedentes de estilos anteriores, teriam resultados positivos mesmo para a ulterior orientação estética do produto industrial, libertando-o totalmente das heranças estilísticas do passado. […] O aspecto mais vital do seu ensino foi recolhido e desenvolvido por alguns dos seus discípulos (Walter Crane, W. R. Lethaby, Juhn Sedding, Lewis Day, Charles Robert Ashbee), os quais o libertariam posteriormente dos preconceitos antimecanicistas que tinham constituído um obstáculo à sua aplicação com maior justeza e em conformidade com os tempos. Cite-se a este propósito o que Lewis Day escreveu por volta de 1882 (em Everyday Art): «Agrade-nos ou não, a máquina, a força motriz e a electricidade terão muito a dizer na arte ornamental do futuro»” (Gillo Dorfles, 1991, 131-132).

Figura 1 – Molheira e colher em prata (1904), Charles R. Ashbee63.

No entanto, a sua abordagem não se limitava a uma mimésis das fontes de inspiração. A sua representação surgia impulsionada por uma inédita simplificação das formas e das decorações, originando uma interpretação de conjunto inteiramente nova. O seu objectivo era, por um lado, a recuperação e preservação dos saberes vernaculares e, ao mesmo tempo, a promoção da educação do gosto, mediante a divulgação e comercialização de produtos estética e formalmente cuidados que, apesar de produzidos artesanalmente, à unidade ou em série, pretendiam ser alternativos aos produtos industriais de produção massificada. Contudo, os métodos produtivos intrínsecos aos objectos propostos pelo Arts and Crafts encareciam-nos, dificultando a sua aquisição por parte de um público generalizado64. Com influência em vários países

da Europa e nos EUA, o movimento de Morris e de Ruskin foi, por esse motivo, considerado “utópico” ou mesmo reaccionário, porque resistente à tendência moderna, à evolução.

Não obstante esse factor, sob o lema da criação de uma “cultura do povo e para o povo”, vários países da Europa e os próprios Estados Unidos promoveram a fundação de ateliers, de escolas e de associações de Artes e Ofícios, cujas exposições tinham por base intuitos didácticos, visando a população em geral e apelando à produção artesanal. Desse período destacam-se, em Inglaterra, nomes como os de Philip Webb, Arthur Haygate Mackmurdo, Charles Robert Ashbee (Figura 1), e nos Estados Unidos,

Gustav Stickley, Karl Kipps e Charles Sumner [Raizman, 2004, 106-123]. Curiosamente, o papel de Morris revelar-se-ia determinante para os futuros processos de desenvolvimento do Design industrial, nomeadamente no que respeita à influência

63 Raizman, David, History of Modern Design, New Jersey, Prentice Hall, 2004, 115.

64 “A ideologia, defendida por Morris, embora se possa considerar anacrónica e radical, não está vinculada à doutrina instituída

pelo sistema político e, em consequência, às exigências produtivas da época. Defende um ideal de liberdade artística que está directamente relacionado com as competências éticas no desenho e na manufactira de objectos domésticos.” (Raul Cunca, 2006, 47)

que viria a surtir no Movimento Moderno65. [Julier, 2004, 24-26]. Na sua época, porém, a

actividade dos grupos inimigos da maquinização levaria a indústria inglesa a expandir- se para o século XX à margem da conciliação disciplinar entre artistas e indústria. 66

Com o intuito de fazer frente à liderança da Inglaterra como maior potência industrial de então, em 1896, a Alemanha investe na pesquisa e identificação dos modelos de produção ingleses. Nesse contexto, Hermann Muthesius (1861-1927) é no mesmo ano destacado pelo governo prussiano para uma missão de seis anos em Inglaterra67.

Detectados os pontos mais frágeis da estrutura industrial britânica, e como resultado do que poderá ser considerado um dos primeiros casos de espionagem industrial68

internacional, são, com o seu regresso, implementadas diversas oficinas na Alemanha cujo objectivo era responder e superar o modelo inglês. Desse modo, ao invés de renegarem à mecanização na produção, artistas, arquitectos e oficinas alemãs,

sensibilizados para uma causa nacional69, defendem e difundem a produção

industrializada. A sua influência manifestou-se, não só no âmbito de uma cooperação directa com a indústria, como também, e principalmente, no desenvolvimento de novos conceitos teóricos cuja importância se revelaria determinante para a evolução conceptual e operativa do mundo dos objectos industriais.

Com o objectivo de desenvolver e implementar um “trabalho de qualidade” que

elevasse “a actividade comercial por meio da educação, da propagada”70 e da

união cooperativa entre artistas, industriais e artesãos, em 1907, por fusão da Oficina Profissional de Dresdner (Dresdner Werkstätten für Handwerkskunst) e da Oficina de Munique (Münchner Werkstätten), é criada a Associação de Artes e Ofícios (Deutscher Werkbund). Pela primeira vez, uma associação deste género tentaria orientar os seus objectivos para o desenvolvimento de produtos exclusivamente industriais. O sucesso da actuação e da disseminação dos seus pressupostos levou a uma ampla difusão artística e económica da indústria alemã. Na busca de uma diferenciação estilística

65 Nikolaus Pevsner’s, Pioneers of the Modern Movement. From William Morris to Walter Gropius, Frederick A. Stokes Company,

New York, 1937.

66 “ (…) enquanto as oficinas Arts and Crafts inglesas tinham recusado a produção mecanizada, na Alemanha, defendia-se

incondicionalmente este modo de produção. […] Mesmo a nível estilístico, os produtos alemães do virar do século deixaram de ter qualquer parecença com os ingleses do movimento Arts and Crafts, ainda ligados ao séc. XIX” (Magdalena Droste, 1994, 11).

67 “Muthesius was writing mostly about houses commissioned by the upper middle classes, who were creating a past for

themselves; English taste did not draw on its industrial culture, in which, as Muthesius realised, lay the future” (Guy Julier, 2004, 147).

68 Magdalena Droste, 1994, 10.

69 „Num clima fortemente marcado pelo nacionalismo, procurava-se uma linguagem estilística que poderia servir de

complemento à reputação industrial mundial da Alemanha.” (Magdalena Droste, 1994, 11).

que elevasse o valor das marcas, no mesmo ano em que a Deutscher Werkbund é fundada, várias empresas do país recorrem, para a concepção dos seus produtos, à contratação de artistas e arquitectos alemães71. Num contexto em que se explorava,

pela primeira vez, a capacidade de actuação desses profissionais na indústria, as divergências interpretativas referentes a conceitos produtivos distintos manifestar-se- iam, fortemente através de dois dos fundadores da Werkbund, Henry Clemens van de Velde72 (1863-1957) e Muthesius73. Por intermédio dos seus debates, afloravam-se, já, as

questões base do capitalismo moderno: “deve a produção industrial apostar na disciplina ou na turbulência do mercado? Deve orientar-se para uma estratégia de aprofundamento controlado ou de expansão incontrolada? Para uma estratégia de poucos ou de muitos modelos de produção?”74

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