• Nenhum resultado encontrado

A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE B IÓNICA

2. PRIMEIRA PARTE: ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.3. D ESIGN I NDUSTRIAL E B IÓNICA

2.3.1. A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE B IÓNICA

Desde as origens da aprendizagem da espécie humana, as estruturas e os sistemas da natureza servem de inspiração ao processo de ficção, concepção e construção de artefactos. Deles, todavia, apenas uma minoria conseguiu sobreviver até aos nossos dias. Apesar disso, quer pela via científica, quer pela via do saber popular, vão-nos chegando diferentes registos materiais que permitem vislumbrar a intemporalidade dessa inspiração, seja por meio de mitos e lendas, de estudos de inventores consagrados de outros tempos, ou através de descobertas arqueológicas surpreendentes241.

Uma das primeiras obras em que essas analogias surgem minuciosamente retratadas é o livro Nature’s Teaching’s: Human Invention Anticipated by Nature, escrito pelo Reverendo John George Wood, em 1877: “… provavelmente o primeiro levantamento exaustivo de comparações entre sistemas naturais e técnicos, com cerca de 750 ilustrações que ajudam a entender as analogias defendidas por J. Wood. [...] Recorrendo a diversas áreas do conhecimento humano ordenadas por capítulos como «náutica», «caça e guerra», «arquitectura», «utensílios», «óptica», «artes utilitárias» e «acústica», o autor procura demonstrar que se encontram na natureza os protótipos que podem ajudar a concretizar as produções humanas”242.

No mesmo âmbito temático, mas dedicada especificamente ao mundo vegetal, em 1920, é editada, em Estugarda, outra obra de grande relevância. Trata-se de Die

Planze als Erfinder (As Plantas como Inventoras), de Raoul Francé. À semelhança do

que acontece no livro de J. Wood, no de Francé, são dados inúmeros exemplos que demonstram a enorme influência que a natureza tem, em termos estruturais, formais, e

241 Segundo uma antiga lenda grega, Dedalus construiu umas asas à escala humana, inspiradas nas dos pássaros, com o

objectivo de libertar o seu filho, Ícaro, do labirinto onde se encontravam prisioneiros; em 600 A.C. um soldado persa, Hegesistratus, cortou um pé e parte da perna para escapar de uma armadilha inimiga, tendo construído um membro artificial em madeira que adaptou ao corpo amputado para poder fugir; a primeira perna artificial em madeira de que há registo material data de 300 a.C e foi encontrada, em 1858 em Itália; no século V d.C, um inventor inglês de nome Wayland criou a primeira máquina voadora de que se tem conhecimento. Existem registos que contam que esta funcionou mas nenhum explica como; no século XV, Leonardo da Vinci desenhou umas asas com o intuito de permitir ao homem voar; os seus desenhos basearam-se num estudo minucioso de asas e penas de pássaros; contudo, não ignorando o seu génio brilhante, essa invenção não foi funcionalmente bem sucedida; no século XVII, foram inventados por Paul Revere dentes falsos, feitos a partir de ossos de animais e por Benjamin Franklin o primeiro olho de vidro; durante o século XIX, desenvolveram-se estudos para a criação não só de dentes e olhos falsos, como também de orelhas e próteses ósseas [Melvin Berger, 1978, 6-9].

prestativos, na construção do mundo artificial. Em Die Planze als Erfinder, essa metodologia mimética é chamada de “Biotécnica” (do Grego, bios e techné, vida e

técnica). Ou seja, em 1920, Raoul Francé sugere “Biotécnica”243 como sendo o

processo pelo qual o homem, com base no estudo das estruturas e formas da natureza, aprende a construir o seu próprio mundo [Paulo Parra, 2006, 58].

Na década de cinquenta, com o mesmo sentido aplicativo de Biotécnica, Dr. Otto Schmitt (1913-1998) 244, um cientista norte-americano especializado em Zoologia, Física,

Matemática e Biofísica, propõe o conceito de “Biomimética”245 – Biomimetics – (do

Grego bios e mimesis, vida e imitação). Em 1960, o mesmo conceito é publicamente

defendido por Dr. Jack E. Steele (então Major da Força Aérea dos EUA), sob a denominação de “Biónica”.

“Biónica” é uma palavra que deriva da aglutinação do termo bios com electrónica (ciência que estuda a electricidade granular). Ora, e contrariando a tese largamente defendida por vários autores de que o conceito a si inerente é uma invenção norte- americana, no fundo, “Biónica”, na sua génese, não é mais do que uma evolução lógica do conceito “Biotécnica”. Ou seja, em termos linguísticos e de significado aplicativo, o que acontece é a mera substituição do termo e do conceito “técnica”

243 “Outra referência nesta área é o artigo On Correalism and Biotechnique do arquitecto Friedrich Kiesler, publicado na

Architectural Record de 1939. Correalismo significa, segundo o autor, o estudo das relações entre o homem e o seu ambiente natural e tecnológico. Kiesler defende que «os instrumentos e a arquitectura são criados para servirem de mediadores entre o homem e o ambiente natural e formam portanto um segundo e interposto ‘ambiente tecnológico». Mas, ao contrário do que acontecera com os autores anteriores, para Kiesler, o método biotécnico não consiste na simples cópia dos protótipos naturais, mas num método capaz de polarizar as forças naturais na direcção das intenções do homem” (Paulo Parra, 2007, 82).

244 “Bionics (also known as biomimetics, biognosis, biomimicry, or bionical creativity engineering) is the application of methods

and systems found in nature to the study and design of engineering systems and modern technology. […]The name biomimetics was coined by Otto Schmitt in the 1950s. The term bionics was coined by Jack E. Steele in 1960 at a conference in Dayton” http://en.wikipedia.org/wiki/Bionics

Entre 1934-37, Schmitt, realizou Mestrado e Doutoramento nas áreas da Zoologia, Física e Matemática e, entre 1937-39, Pós- Doutoramento em Biofísica. Foi Professor de Biofísica, Engenharia Biomédica e Engenharia Electrónica tendo, ao longo da sua carreira, somado inúmeras patentes e publicações. Sobre o seu trabalho recomenda-se a consulta do site da Schmitt Foundation: http://www.ece.umn.edu/users/schmitt/.

245 Em 1997, Janine M. Benyus lança um livro intitulado Biomimicry (Biomimética), denominação de um conceito que, no âmbito

do mundo ocidental, a autora apresenta como inovador:“Bi-o-mim-ic-ry [From the Geek bios, life, and mimesis, imitation] 1. Nature as model. Biomimicry is a new science thet studies nature’s models and then imitates or takes inspiration from these designs and processes to solve human problems; 2. Nature as measure. Biomimicry uses an ecological standard to judged the «rightness» of our innovation. After 3.8 bilion of evolution, nature has learned: What works. What is appropriate. What last; 3. Nature as mentor. Biomimicry is a new way of viewing and valuing nature. It introduces an era based not on what we can extract from the natural world, but on wath we can learn from it. […] The biomimics are discovering what works in natural world, and more important, what last. After 3.8 bilion years of research and development, failures are fossils, and what surrounds us is the secret to survival. The more our world looks and functions like this natural world, the more likely we are to accepted on this home that is ours, but not ours alone. This, of course, is not news to the Huaorani Indians. Virtually all native cultures that have survived without fouling their nest have acknowledged that nature knows best, and have had the humility to ask the bears and wolves and ravens and redwoods for guidance. They can only wonder why we don’t do the same. A few years ago, I began to wonder too. After three hundred years of Western Science, was there anyone in our tradition able to see what the Huaorani see?” (Janine Benyus, 2002, 3). Nessa obra, que se baseia nos princípios básicos que sustentam os conceitos anteriormente vistos, a autora contribui, contudo, com uma visão complementar. Janine Benyus defende que na base dos estudos miméticos da natureza existem 9 regras que devem ser consideradas pelo Homem, aquando das suas criações: “Nature runs on sunlight; Nature uses only the energy it needs; Nature fits form to function; Nature recycles everything; Nature rewards cooperation; Natures banks on diversity; Nature demands local expertise; Nature curbs excesses from within; Nature taps the power of limits” (Janine Benyus, 2002, 7).

pelo termo e conceito “electrónica” – este último, por sua vez, constituinte de um dos sub-grupos das ciências técnicas e tecnológicas desenvolvidas no século XX [Parra, 2006, 82].

Efectivamente, a grande diferença entre Biotécnica (ou Biomimética) e Biónica, não é tanto de âmbito conceptual mas, sobretudo, de âmbito operativo. Ou antes, essa diferença reside no facto de, subjacente ao contexto em que surge a última proposta, se ter iniciado um mega-processo de especialização na área246. Por outras palavras:

sendo a sua base metodológica a mesma que apoiou os estudos do Reverendo Wood, de R. Francé, e de O. Schmitte, é a partir da divulgação do termo “Biónica” que essa metodologia passa a constituir uma área de estudo própria em termos científicos e sistematizados. E foi, precisamente, por esse meio, que “Biónica” se assumiu como um termo/conceito e disciplina internacionalmente reconhecido, nomeadamente no que respeita a processos de Design.

Foi, entre 1958 e 1960247, aquando de um encontro científico realizado no Wright

Patterson Air Force Base, em Dayton – Ohio –, que pelas palavras do Dr. Steele se pronunciou pela primeira vez, publicamente, o termo “Biónica”248: “Ele descreveu-o

como sendo o estudo de sistemas e estruturas de animais e plantas vivos, e a aplicação desses princípios na invenção de máquinas e de sistemas artificiais para o benefício do homem”249.

De facto, a partir de então, a disseminação sistematizada desse conceito (na visão inicial europeia: Biotécnica), levaria à sua crescente consideração e aplicação a várias áreas do conhecimento científico. E se no primeiro encontro, em Dayton, se registou a participação de cerca de cem especialistas multidisciplinares (biólogos, engenheiros, matemáticos, físicos e psicólogos), no segundo encontro, realizado em

246 “Começam a formular-se assim os estudos no campo da biotécnica, que viriam a ser amplamente divulgados e

desenvolvidos posteriormente, durante os anos sessenta, com a introdução da noção de Biónica [...] na qual a análise de sistemas naturais não é um processo puramente teórico, mas sim um método rigoroso e científico de transformação dos sistemas estruturais e funcionais orgânicos para os sistemas tecnológicos, permitindo assim a sua posterior aplicação na cultura de projecto. O estudo e investigação destes sistemas biológicos e bioquímicos permite a construção de protótipos posteriormente utilizados no design de sistemas sintéticos. Embora sejam naturalmente mais desenvolvidas as metodologias propostas no pós-guerra não são contudo mais do que uma nova versão do método biotécnico proposto por Raoul Francé e Friedrich Kiesler mais de vinte anos antes” (Paulo Parra, 2007, 82).

247 A data da conferência em Wright Patterson Air Force Base, em Dayton, aparece em algumas fontes como tendo sido

realizada em 1958, e noutras, como sendo de 1960.

248 Independentemente do facto de ter sido um elemento da Força Aérea norte-americana a evocar pela primeira vez,

publicamente, a palavra Biónica, o que é certo é que a evolução dos pressupostos inscritos no conceito, em termos de sistematização científica da relação Biologia-Electrónica, dá-se em consequência de um programa de Investigação Naval levado a cabo pela U.S. Navy, em 1951. Era intenção da equipa de investigadores navais estudar organismos subaquáticos vivos cuja natureza física e comportamental pudesse sugerir novas soluções de sistemas mecânicos ou eléctricos, aplicáveis ao desenvolvimento de barcos e de submarinos [Melvin Berger, 1978, 11].

249 “He described it as the study of the systems and structures of living animals and plants, and the application of these

1963, já sobre o tema específico “Biónica”, encontrava-se presente cerca de um milhar de cientistas representativos de inúmeras áreas. Mas é, sobretudo, a partir de 1970, que os pressupostos do conceito adquirem, por influência da cibernética e da medicina, um sentido de aplicação ainda mais amplo: “A ciência da biónica dedica- se à disponibilização de novas partes do corpo humano, tais como membros artificiais, órgãos, sentidos, e até inteligência artificial”250. Complementarmente, e no seguimento

da proposta de Jack E. Steele, ela é igualmente interpretada como uma ciência passível de ser “aplicada à invenção e construção de máquinas e de dispositivos que ajudam as pessoas de diferentes maneiras. Com barcos que se movem através da água tão suavemente como peixes, com aviões que voam tão bem como pássaros, e com a possibilidade de viajarmos tão bem como animais migratórios251.

Seja num ou noutro sentido de aplicação existem sempre duas áreas das ciências cujo papel é determinante para a investigação, o desenvolvimento e a implementação de soluções biónicas; são elas a Biologia e a Engenharia (nomeadamente a electrónica). A primeira, na identificação e estudo dos espécimes naturais cujas características

poderão adequar-se aos objectivos específicos de determinado projecto252 e a

segunda, na determinação de soluções físicas, técnicas e mecânicas de execução. Mas, a par com estas duas disciplinas, graças ao visionamento do sucesso aplicativo do conceito, muitas outras áreas do conhecimento vão sendo gradualmente responsáveis por um trabalho cooperativo de desenvolvimento de estudos vocacionados para a aplicação da noção subjacente à Biónica. E foi precisamente dessa correlação disciplinar que nasceram novos campos de investigação e de formação específica: Engenharia Biomédica253, Bioengenharia254, Biomecânica255,

Bioelectrónica256 ou Design Biónico. Assim, o que se constata é que se numa primeira

250 “The science of bionics is concerned with providing new parts for the human body, such as artificial limb, organs, senses, and

even intelligence” (Melvin Berger, 1978, 5).

251 “It is also involved with inventing and building machines and devices that can help people in other ways. Boats that move

through the water as smoothly as fish, aircraft that fly as well as birds, and an ability to navigate as well as migrating animals” (Melvin Berger, 1978, 5).

252 Alvin and Virginia Silverstein, Bionics. Man Copies Nature’s Machines, New York, The McCall Publishing Company, 1970 253 “In the bionics branch of biomedical engineering, some researchers are interested in the successful replacement of missing

limbs. They want artificial limbs to look and function as much like natural limbs as possible, if not better. Others are studying the replacement of entire organs, or parts of organs, that have been damaged by disease or accident. Still others are interested in improving or restoring one or more of the senses, especially those of sight and hearing. And, finally, there are those working in artificial intelligence who want to find ways to extend and improve people’s ability to think” (Melvin Berger, 1978, 12).

254 “Is the application of engineering knowledge to the fields of medicine and biology. The bioengineer must be well grounded in

biology and have engineering knowledge that is broad, drawing upon electrical, chemical, mechanical, and other engineering disciplines.” http://www.britannica.com/eb/article-9105850

255 “Analyze and evaluate using dynamics the structures and forms of organisms and their relations to function, and study specific

methods of applying them to artificial creations.” http://www.nst.kanazawa-u.ac.jp/eng/katei/zenki/04-02.html

256 “Bioelectronics is an interdisciplinary research field that includes elements of chemistry, biology, physics, electronics,

nanotechnology, and materials science. It seeks to exploit the growing technical ability to integrate biomolecules with electronics to develop a broad range of functional devices. An important research aspect is the development of the

fase a Biónica257 surge como a conciliação de estudos da biologia e da electrónica

para a concepção de sistemas artificiais que beneficiem o ser humano, numa segunda fase, e graças à disseminação do conceito, a Biónica deixa de corresponder à associação de bios + electrónica, para, com o mesmo conceito, passar a ser a associação de bios + outras áreas da ciência. Tanto assim que, Biónica, no seu sentido etimológico de bios + electrónica – e com o intuito de estabelecer uma distinção efectiva no que respeita à aplicação do conceito às demais áreas e à actualização da disciplina em termos operativos –, é substituída pelo termo Bioeléctronica258. Ora, se

a única diferença entre Biónica e Biotécnica – excluindo o desenvolvimento sistematizado do conceito em termos científicos – é o facto de a primeira se cingir a uma área específica de aplicação e a segunda contemplar a aplicação do conceito à generalidade das invenções técnico-tecnológicas do Homem, podemos concluir que, com a disseminação aplicativa do conceito a diferentes áreas do conhecimento, os novos campos de especialização daí surgidos pertencem, na realidade, à enorme família que constitui a Biotécnica.

Documentos relacionados