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Definição e operacionalização de saúde mental numa perspectiva positiva

CAPÍTULO 2 – SAÚDE MENTAL NO CONTEXTO DO ENSINO SUPERIOR

1. Saúde mental: conceptualização

1.2. Saúde mental numa perspectiva positiva

1.2.1. Definição e operacionalização de saúde mental numa perspectiva positiva

Embora a definição de saúde mental da OMS possa parecer, à primeira vista, simples e clara, depois de alguma reflexão ela surge como ambígua e vaga, pelo que tem sido alvo de diversas críticas e não tem conseguido reunir o consenso de profissionais de saúde nem investigadores, mantendo-se a controvérsia à volta deste tema.

Por um lado, apesar de aquela definição possuir uma vertente marcadamente positiva (Vaillant, 2003; WHO, 2001; 2004b), verifica-se que a ciência se tem preocupado mais com a doença mental, tendo relegado a saúde mental para um segundo plano, e encarando-a, por defeito, como a ausência de psicopatologia (Keyes, 2005). Esta tendência é visível na produção científica, mais concretamente no contraste entre a extensa literatura que se pode encontrar sobre prevenção de doença mental e os escassos textos sobre promoção da saúde mental (Secker, 1998). Diener, Suh, Lucas e Smith (1999) puderam constatar esta discrepância numa busca que realizaram na

internet de artigos publicados entre 1987 e 1999, em que encontraram 57 800 artigos

sobre ansiedade e 70 856 sobre depressão, mas apenas 5701 que mencionassem satisfação com a vida e ainda menos, 851, que referissem alegria.

Zikmund (2003) tenta explicar esta predilecção da ciência pela doença, alegando que a saúde não chama a atenção do homem, pois é entendida como algo natural. Pelo contrário, os distúrbios da saúde são notados, pois representam sofrimento, perigo ou

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ameaça de vida. Logo, talvez seja por esse motivo que existem descrições de centenas de sintomas e sinais de distúrbios de saúde, mas apenas descrições gerais ou vagas de saúde, como se esta não tivesse uma identidade própria, ao contrário das doenças.

De facto, definir e operacionalizar saúde mental de forma positiva não são tarefas fáceis. Por isso, Vaillant (2003) afirma que antes de qualquer tentativa nesse sentido, é essencial ter em consideração vários aspectos. Em primeiro lugar, é necessário ter em conta que o valor médio, ou o centro de uma distribuição normal, pode não ser sinónimo de saudável. Depois, o que é considerado saudável, por vezes depende da geografia, cultura, e momento histórico. Em terceiro lugar, é necessário esclarecer o que está em causa quando se fala de saúde: um estado ou um traço? Por fim, convém estar atento ao perigo da contaminação de valores, ou seja, por um lado deve atender-se à diversidade antropológica de comportamentos ao longo das várias culturas, contudo, ao mesmo tempo, deve ter-se em mente que nem todos os comportamentos possíveis ou aceitáveis, são os desejáveis, devendo, por isso, prevalecer o bom senso.

Um aspecto que dificulta a definição de saúde mental é o facto de esta implicar, para além de um componente objectivo, comportamental, manifestações de aspectos subjectivos da vida que formam o mundo interno de cada pessoa, como sejam os processos psicológicos do pensamento, emoções, sentimentos e necessidades (Zikmund, 2001). Assim, mesmo considerando a saúde mental numa perspectiva positiva, esta tem sido conceptualizada em termos de diversos componentes, como a resolução de problemas, a competência social ou a autonomia, o que pode ser de algum modo reducionista e não se coaduna com uma visão holística (Secker, 1998).

Das inúmeras abordagens positivas de saúde mental que têm surgido nos últimos anos, Vaillant (2003), destaca seis modelos que têm reunido, recentemente, alguns dados empíricos, alertando para o facto de cada um deles descrever apenas parte do que é a saúde mental. Primeiro, a saúde mental pode ser conceptualizada como um estado mental, objectivamente desejável, que se situa acima do normal. Entram nesta categoria a capacidade de amar, trabalhar e agir, a resolução eficaz de problemas, o investimento na vida e a autonomia. Em segundo lugar, a saúde mental pode ser encarada como ideal, à luz da psicologia positiva, estando associada a princípios ou valores como o amor, a temperança, a sabedoria e o conhecimento, a coragem, a justiça e a transcendência. Em terceiro lugar, a saúde mental pode ser encarada como maturidade, sendo visível na capacidade de amar, na ausência de padrões de resolução de problemas estereotipados e estéreis, na aceitação realista dos condicionalismos impostos pelo tempo e lugar em que se está no mundo, expectativas apropriadas e objectivos para si próprio e

39 capacidade de ter esperança. Em quarto lugar, pode ser equiparada à inteligência sócio- emocional, que consiste em: percepção e monitorização precisa das próprias emoções; modificação das emoções de modo que a sua expressão seja adequada; reconhecimento e resposta adequadas às emoções dos outros; capacidade de negociar relações próximas com os outros; motivação ou capacidade de focar as emoções num objectivo desejado. Em quinto lugar, saúde mental pode ser entendida como resiliência, aparecendo neste caso associada à adaptação bem sucedida e ao conceito de homeostase. Por fim, pode ser conceptualizada como bem-estar subjectivo – um estado mental que é subjectivamente experienciado como alegre, satisfeito e desejado.

Independentemente da inclinação por um ou por outro destes modelos, tem-se verificado algum cepticismo quanto à aplicabilidade da medição e classificação dos indivíduos em termos de saúde mental numa perspectiva positiva, havendo mesmo alguns autores que, apesar de considerarem este conceito interessante, acreditam que não é muito útil para a tarefa de classificar diferentes pessoas, grupos ou populações (Mechanic, 1999). Contudo, o que é certo é que a maioria da população não sofre de nenhuma doença mental, ainda assim muitos indivíduos sem doenças mentais não se sentem saudáveis nem funcionam bem, o que vai contra a visão tradicional de saúde mental como ausência de psicopatologia, que se baseia na assunção, ainda pouco testada, de que doença e saúde mental formam uma única dimensão bipolar. Neste contexto, o modelo do bem-estar parece encontrar algumas respostas para esta situação, com base em dados empíricos, tendo, por isso, vindo a conquistar terreno nos últimos anos.

De facto, os dados existentes mostram claramente que as medidas de bem-estar subjectivo, conceptualizadas como indicadores de saúde mental, são factorialmente distintas mas correlacionadas com as medidas de sintomas de distúrbios mentais. Uma análise factorial confirmatória de uma amostra de mais de 3000 sujeitos americanos, mostrou precisamente que os factores latentes da saúde mental e da doença mental se correlacionam a 0.53, indicando que apenas um quarto da variância entre as medidas de saúde e doença mental são partilhadas (Keyes, 2005). Aliás, parece haver um gradiente entre os dois construtos, registando-se um aumento da prevalência de doença mental à medida que o nível de saúde mental diminui, verificou-se numa investigação em que se analisou a relação entre saúde mental e psicopatologia (episódio depressivo major, distúrbio de pânico, ansiedade generalizada e dependência do álcool) (Keyes, 2005). Deste modo, não é muito provável que uma pessoa esteja satisfeita com a vida e deprimida ao mesmo tempo (Headey, Kelley, & Wearing, 1993).

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A hipótese de que saúde mental e doença mental não são extremos opostos numa dimensão bipolar, mas sim dois factores distintos e correlacionados tem vindo a ser consolidada por diversos estudos, nomeadamente num estudo envolvendo marcadores biológicos (Ryff et al., 2006) e estudos com diferentes faixas etárias, desde crianças (Suldo & Shaffer, 2008) a jovens adultos e idosos (Westerhof & Keyes, 2010). O facto de se avaliar apenas a psicopatologia, isoladamente, pode levar a uma sub ou sobre- estimação do funcionamento em importantes áreas de vida. Por exemplo, a ausência de problemas de saúde mental pode não ser suficiente para ter rendimento académico, relações sociais ou saúde física a níveis óptimos.

Por conseguinte, os indicadores de bem-estar devem complementar, e não substituir, os tradicionais índices negativos. Nesse sentido, a saúde mental implica a presença de bem-estar, mas não se reduz a ele, devendo ser efectivamente encarada como um estado completo (Keyes, 2005, 2006). Segundo Keyes (2002, 2007), o estado de saúde mental de uma pessoa resulta da conjugação do grau de bem-estar com os níveis de sintomatologia, como se pode conferir na Figura 1, que constitui uma esquematização do seu “modelo de saúde mental completa”.

41 O modelo de Keyes representa, assim, a existência de duas variáveis distintas: a sintomatologia psicopatológica e o bem-estar. Da conjugação destas duas variáveis surgem quatro cenários possíveis. Elevados níveis de sintomatologia juntamente com baixos níveis de bem-estar correspondem ao estado de doença mental completa. Quando há elevados sintomas psicopatológicos, mas elevado bem-estar, o resultado é doença mental completa. Por sua vez, quando se verifica a ausência de sintomas, mas baixo bem-estar, essa situação corresponde a saúde mental incompleta. Finalmente, o estado de saúde mental completo só é possível na ausência de sintomas psicopatológicos e na presença de elevados níveis de bem-estar, o que vai ao encontro da perspectiva da Organização Mundial de Saúde.