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CAPÍTULO 3 – COMPORTAMENTOS DE RISCO LIGADOS AO ÁLCOOL NOS ESTUDANTES

2. Comportamentos de risco na universidade

2.3. Consumo de álcool

2.3.7. Relação com a saúde mental

Nos últimos anos têm-se reunido evidências empíricas acerca da existência de relações entre álcool e psicopatologia. A maior parte dos dados disponíveis provém de estudos de comorbilidade que reportam uma elevada co-ocorrência de perturbações de uso de álcool e perturbações do humor e da ansiedade em populações clínicas (e.g. Kushner, Abrams, & Borchardt, 2000; Swendsen & Merikangas, 2000), mas tem também sido observada uma associação positiva do uso de álcool com sintomatologia psicopatológica em populações não clínicas (Okoro et al., 2004).

Há autores que colocam a hipótese de a relação entre álcool e depressão e ansiedade não ser linear, mas sim em forma de U ou J, na qual o consumo ligeiro ou moderado de álcool teria benefícios para a saúde mental, face à abstinência ou consumo elevado. Esta hipótese tem sido corroborada por alguns estudos (Degenhardt, Hall, & Lynskey, 2001; Skogen, Harvey, Henderson, Stordal, & Mykletun, 2009; Stranges et al., 2006). Ainda assim, não é possível perceber a direccionalidade da relação, ou seja, se é o consumo moderado que estimula a saúde mental ou se são aqueles que têm boa saúde mental que consomem álcool moderadamente. Algumas explicações possíveis para a maior prevalência de sintomas psicopatológicos nos abstémios do que nos consumidores ligeiros ou moderados de álcool são: 1) a presença de antigos consumidores elevados nesse grupo; 2) os abstémios apresentam relações sociais mais pobres do que os consumidores ligeiros e moderados.

Corroborando a primeira explicação possível, um estudo que analisou a relação entre consumo esporádico excessivo e depressão (medida através do BDI) na população geral notou que os ex-consumidores de álcool e aqueles que têm episódios de consumo esporádico excessivo tinham mais frequentemente pontuações elevadas no BDI, correspondentes a 10 pontos ou mais, quando comparados com os que sempre foram abstémios ou aqueles que nunca tiveram episódios de ingestão excessiva (Manninen, Poikolainen, Vartianinen, & Laatikainen, 2006). Note-se que esta explicação se aplica principalmente quando a faixa etária é mais alargada, não sendo talvez, tão pertinente quando se analisam os estudantes universitários (Lucas, Windsor, Caldwell, & Rodgers, 2010).

A segunda explicação possível sugere que os abstémios têm uma série de características socioeconómicas, sociais e de personalidade que diferem das dos consumidores moderados e que estão também associadas a ansiedade, depressão e outras dificuldades ao nível da saúde, pelo que estes factores podem contribuir para que tenham mais sintomas. Exemplos de algumas destas características dos abstémios são:

117 dificuldades financeiras, suporte social pobre, eventos de vida stressantes, fraca extroversão e pouca procura de sensações (Rodgers et al., 2000).

A hipótese da relação em U ou J entre álcool e depressão/ansiedade tem, no entanto, sido infirmada por outras investigações. Por exemplo, num estudo que comparou a existência de perturbações de humor e ansiedade em três grupos de pessoas, abstémios, consumidores moderados de álcool e consumidores problemáticos (definidos como aqueles que já tiveram ao longo da vida abuso, dependência ou níveis consumo nefastos de álcool, de acordo com o DSM-III-R) concluiu-se que, embora o abuso de álcool estivesse associado tanto às perturbações de humor como de ansiedade, os abstémios não tinham níveis mais significativos destas perturbações quando comparados com os consumidores moderados. Estes resultados vão contra a hipótese de que há uma relação de U entre o consumo de álcool e estas perturbações (Sareen, McWilliams, Cox, & Stein, 2004).

Nos estudantes universitários, os dados disponíveis são também contraditórios. Por um lado, vários estudos relatam uma correlação positiva entre consumo de álcool e sintomas depressivos e ansiosos, nomeadamente em Portugal (Pauley & Hesse, 2009; Santana & Negreiros, 2008; Seigers & Carey, 2010). Por outro lado, há estudos que sugerem que nem a depressão nem a ansiedade estão associados com frequência, número médio de bebidas consumidas ou ingestão excessiva (Wicki et al., 2010). Noutros estudos ainda, a relação parece depender do género (e.g. Harrell & Karim, 2008). Por exemplo, Adewuya, Ola e Aloba (2006) concluíram que existe uma relação não linear em forma de J para os estudantes universitários do sexo masculino, enquanto que nas estudantes do sexo feminino a relação é linear, ou seja, quanto maior o consumo de álcool, maior a ansiedade. Finalmente, há ainda casos em que o consumo de álcool parece estar relacionado com melhor saúde mental ou, pelo menos, com uma percepção mais positiva acerca da sua saúde mental (Santos et al., 2009a).

Em todo o caso, a associação entre perturbações de humor ou ansiedade e uso de álcool em estudantes universitários (excepto naqueles diagnosticados com dependência de álcool) é menos frequente do que na população geral. Esta ausência de psicopatologia associada aos consumidores de álcool não dependentes pode ter várias interpretações. Uma hipótese é que as ocasiões em que há consumo excessivo são uma parte integrante do meio em que os universitários se movem, logo o consumo excessivo é menos selectivo de pessoas com perturbações na população universitária do que noutras populações.

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Outra hipótese é que a falta de associação pode representar um efeito de selecção. Talvez a ausência de perturbações mentais tenha sido um factor que tenha possibilitado a estes indivíduos o desejo e a capacidade de ingressar no ensino superior. Por outro lado, a associação poderá ser mais fraca em estudantes do que em não estudantes, porque os estudantes podem ter maior facilidade de acesso a tratamento para problemas psicológicos, já que os serviços de aconselhamento das instituições do ensino superior costumam ser mais baratos, numa localização mais conveniente e mais aceites em termos sociais do que outras opções de tratamento disponíveis para não estudantes.

É importante ter também em consideração que os estudantes têm menor probabilidade de beber para reduzir o sofrimento psicológico, do que os outros jovens adultos (Dawson, Grant, Stinson, & Chou, 2005). Com efeito, os motivos para beber parecem estar relacionados com a saúde mental. Os dados disponíveis apontam no sentido de que as pessoas que bebem primeiramente para aumentar o afecto positivo, tendem a beber mais do que aqueles que bebem para regular o afecto negativo, mas apresentam menos problemas sérios relacionados com o consumo (Peele & Brodsky, 2000). Os estudantes consomem álcool, em geral, por motivos positivos, relacionados com o convívio e a diversão. Aqueles que estão deprimidos, por sua vez, têm menor probabilidade de beber num contexto de facilitação social, mas maior probabilidade de consumir álcool sozinhos ou apenas com um parceiro, para aliviar sintomas emocionais negativos (Beck et al., 2008).

A existência de resultados contraditórios na análise da relação entre álcool e saúde mental, nomeadamente depressão, poderá dever-se, em parte, a questões metodológicas, mais concretamente, a disparidades na forma como as variáveis são avaliadas nos vários estudos. No que concerne aos sintomas depressivos, diferenças na duração do intervalo de tempo avaliado (e.g. os últimos doze meses versus as últimas duas semanas) poderão conduzir a resultados diferentes no diz respeito à sua ligação com o consumo de álcool, quer em termos de força e direccionalidade da associação, quer em termos de mecanismos envolvidos.

Em princípio, estados recentes de humor deprimido estarão associados ao consumo recente de álcool, seja o consumo de álcool causa ou consequência desses estados de humor. Pelo contrário, a relação entre consumo de álcool e sintomas mais duradouros de Depressão Major pode estar relacionada com outros factores como por exemplo, a depressão dever-se a um estado de saúde negativo e a consequências sociais do consumo excessivo ou a características individuais que tornam a pessoa mais

119 vulnerável a experienciar depressão e, ao mesmo tempo, a consumir mais álcool. Assim sendo, a possibilidade de haver diferentes processos envolvidos faz com que haja resultados inconsistentes entre estudos que utilizam diferentes medidas da depressão.

A própria forma como o consumo de álcool é medida, também pode ter importância. A literatura tem sugerido uma relação entre sintomas depressivos e quantidade de álcool consumida, uma possível relação entre sintomas e volume de álcool e nenhuma relação entre frequência do consumo e depressão. Quanto ao consumo esporádico excessivo, os dados disponíveis apontam para uma associação, quer com sintomas depressivos, quer com o diagnóstico de depressão. Não obstante, há dados contraditórios e alguns que estão dependentes do género.

Para colmatar a lacuna existente de estudos que utilizem os dois tipos de medidas de depressão, na mesma amostra, Graham, Massak, Demers e Rehm (2007) realizaram uma investigação inovadora, que mostra como a relação entre álcool e depressão pode variar consoante a forma como esta última é medida. Estes autores aplicaram quatro medidas de consumo de álcool (frequência, quantidade habitual e máxima por ocasião, volume e consumo esporádico excessivo) na última semana e no último ano e duas medidas de depressão (cumprimento dos critérios para diagnóstico clínico de Depressão Major e humor deprimido recente). Os resultados indicaram que a natureza da relação entre depressão e consumo de álcool não variou consoante o género ou o tipo de depressão considerada, mas sim consoante a medida do consumo de álcool. As relações mais fortes ocorreram entre depressão e consumo esporádico excessivo e depressão e elevada quantidade por ocasião. Houve ainda alguns indícios de uma relação em forma de J, verificando-se maiores níveis de depressão nos abstémios do que naqueles que normalmente bebem uma bebida e nunca bebem cinco numa ocasião, nos casos em que a depressão era medida com base em sintomas recentes.

Como é possível verificar, grande parte da literatura nesta área discute a co- existência de consumo de álcool com problemas de saúde mental, mas não examina a ligação temporal ou causal entre eles. Com efeito, as relações entre álcool e saúde mental podem ser, pelo menos, de três tipos, como alerta o Institute of Alcohol Studies (2007): 1) os problemas de saúde mental podem ser uma causa de consumo problemático de álcool; 2) o consumo problemático de álcool pode ser uma causa de problemas de saúde mental; 3) pode haver um factor comum, nos genes ou no ambiente familiar dos primeiros anos de vida, que contribua tanto para problemas de saúde mental como de consumo de álcool. Neste contexto, estudos longitudinais poderão ajudar a clarificar a natureza destas relações.

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Expressões como “beber para esquecer” mostram que há no senso comum a noção de que o consumo de álcool pode ser uma consequência de depressão ou outras dificuldades emocionais, no entanto a relação inversa também é possível. Um estudo longitudinal encontrou uma relação positiva entre o consumo esporádico excessivo medido num primeiro momento e sintomas depressivos cinco anos depois, independentemente do consumo médio semanal. Estes resultados levaram os autores a ponderar a hipótese de que o consumo excessivo, principalmente aquele que envolve ressaca, pode produzir sintomas depressivos na população geral (Paljärvi et al., 2009). Uma possível explicação para esta relação é que o álcool, em particular o alcoolismo, pode ser uma fonte de stress e de toxinas que actuam a nível biológico, podendo gerar depressão e afecto negativo. Mais especificamente, o alcoolismo pode comprometer seriamente os domínios social, de saúde e ocupacional, sendo que dificuldades nestes domínios têm sido consistentemente implicados na etiologia da depressão (Swendsen & Merikangas, 2000).

Outro estudo longitudinal avaliou a evolução dos problemas relacionados com álcool e sintomas depressivos desde a adolescência à adultez emergente, tendo concluído que há uma relação bidireccional entre estas duas variáveis, ainda que mediada pelo género e pela idade. Mais especificamente, níveis elevados de sintomas depressivos na adultez emergente estavam associados a níveis mais elevados de problemas de álcool na adolescência, especialmente nas mulheres, bem como a aumentos mais rápidos de problemas de álcool ao longo do tempo, nos homens. Por outro lado, níveis elevados de problemas de álcool na adultez emergente estavam associados a níveis mais elevados de sintomas depressivos na adolescência, especialmente nas mulheres (Marmorstein, 2009).

Enfim, os dados disponíveis provenientes quer de estudos correlacionais, quer de estudos longitudinais, apontam para a existência de uma associação positiva e bidireccional entre álcool e problemas de saúde mental, em especial depressão e ansiedade. Essa relação é mais consensual ao nível da população clínica, mas menos clara na população não clínica, e em particular nos estudantes universitários. As diferenças nas metodologias utilizadas para avaliar tanto o consumo de álcool como a ansiedade e depressão, nos vários estudos existentes, poderão contribuir para explicar os resultados contraditórios.

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