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CAPÍTULO 1 – O ESTUDANTE DO ENSINO SUPERIOR

2. Desafios do ensino superior

2.1. Transição e adaptação

A entrada no ensino superior é um acontecimento importante para qualquer estudante, caracterizado por diversas mudanças e desafios que serão potenciadores do seu desenvolvimento, mas ao mesmo tempo de crises e obstáculos, gerando stress e ansiedade (Cooke, Bewick, Bahrkham, Bradley, & Audin, 2006; Costa & Leal, 2004). O interesse científico pelo tema da transição e adaptação ao ensino superior surgiu apenas recentemente, há cerca de 20 anos, mas o número de estudos sobre esta temática tem vindo a crescer a bom ritmo, nomeadamente em Portugal (Almeida, 2001; Almeida & Ferreira, 1997; Diniz, 2001; Ferreira & Lourenço, 2004; Machado & Almeida, 2000; Nico, 2000; Pinheiro, 2004; Silva, 2003; Soares, 2003).

A primeira mudança é para muitos a saída de casa pela primeira vez, para ir morar numa residência de estudantes, num apartamento ou num quarto alugado noutra cidade, o que implica novas responsabilidades em tarefas quotidianas, impulsionando o desenvolvimento da autonomia (Teixeira, Dias, Wottrich, & Oliveira, 2008). Embora os primeiros meses sejam preenchidos com diversas actividades, nomeadamente as festas de recepção ao caloiro, o que é certo é que muitos estudantes são afectados pela separação da família e dos amigos que foram importantes fontes de suporte social ao longo das suas vidas (Ferraz & Pereira, 2002; Pancer, Hunsberger, Pratt, & Alisat, 2000).

Homesickness, ou saudades de casa, é o nome dado ao estado cognitivo-

motivacional e emocional sentido após a saída de casa, caracterizado por emoções negativas, ruminações sobre casa e sintomas somáticos, que tem afinidades com outros conceitos como nostalgia, ansiedade de separação, luto ou depressão (Van Tilburg, 2006). Em particular, a distinção do homesickness face à depressão tem-se revelado controversa, com alguns autores a considerarem que as saudades de casa são caracterizadas por sintomas depressivos, sendo preditoras de depressão (Hafen, Reisbig, White, & Rush, 2006), enquanto outros autores defendem que o homesickness é, em si mesmo, uma depressão reactiva à saída de casa (Baier & Welsh, 1992).

A família é uma importante fonte de suporte social, e terá influência na forma como se vai processar a integração do indivíduo no ensino superior e o seu desenvolvimento psicossocial, podendo actuar como promotora de ajustamento se os padrões de relacionamento se caracterizarem por laços afectivos, coesão e expressividade, suporte parental e facilitação do processo de separação/individuação, ou pelo contrário, como obstáculo quando é dominada pelo conflito, ausência de apoio e vinculação disfuncional (Silva & Ferreira, 2009). Aliás, a autonomia com que os alunos

25 ingressam na Universidade tem um impacto significativo na forma como enfrentam as pressões e desafios do ensino superior. As dimensões da autonomia que parecem ter um papel mais relevante são as que se relacionam com a capacidade de o jovem organizar e aproveitar o tempo de forma adequada, bem como gerir as relações com os colegas (Soares, Guisande, & Almeida, 2007).

Contudo, quando um aluno vai estudar para outra localidade, não é apenas dos pais que tem saudades. Os amigos são também importantes fontes de suporte social e o aluno tem também que aprender a lidar com o afastamento deles. O termo friendsickness foi criado para descrever as mudanças relacionais nos estudantes universitários que são induzidas pelo afastamento de uma rede social de amigos previamente estabelecida e que se relacionam com a preocupação e o receio de perda ou mudanças nas amizades pré-universidade. Paul e Brier (2001) relataram, no seu estudo, que cerca de metade dos estudantes sofria níveis moderados ou severos de friendsickness e que esses alunos se sentiam mais sozinhos, apresentavam menor auto-estima e pior adaptação à universidade.

De facto, dados nacionais mostram que aqueles que saem de casa podem sentir menos apoio e suporte social, psicológico e material por parte daqueles que lhes são significativos, o que poderá ter implicações negativas no seu bem-estar e processo de adaptação. Os alunos deslocados apresentam níveis de adaptação mais baixos no que concerne a aspectos pessoais, de estudo e institucionais do que aqueles que continuaram na sua “residência mãe”, apresentando, no entanto, valores mais elevados na dimensão interpessoal (Seco, Casimiro, Pereira, Dias, & Custódio, 2005; Seco, Pereira, Dias, Pereira, Casimiro, & Custódio, 2007).

As relações interpessoais parecem ser muito valorizadas pelos alunos do primeiro ano, tanto que estes investem muito no relacionamento com os seus pares, especialmente no primeiro semestre (Diniz & Almeida, 2006). Aliás, as interacções com outros estudantes, que inicialmente se revestem de um carácter meramente recreativo, podem promover a adaptação, ajudando os recém-chegados a familiarizar-se com a cultura académica, ao mesmo tempo que se identificam com o seu papel de estudante (Ferreira, 2003).

Um aspecto com o qual todos os estudantes se têm que confrontar diz respeito às exigências e mudanças a nível académico. Neste contexto, encontram-se os novos ritmos e formas de aprendizagem, novos métodos de ensino, formas de avaliação e professores com posturas diferentes. Não raras vezes, o estudante sente um menor controlo da sua presença nas aulas e um menor acompanhamento pelo professor daquilo

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que ele aprende e sabe. O ensino é agora menos estruturado, eventualmente sem manuais e apenas com esquemas genéricos dos conteúdos programáticos e uma lista de bibliografia aconselhada. Estas condições exigem maior autonomia por parte do aluno na gestão do tempo, na descoberta de meios eficazes de aprendizagem e na definição de objectivos (Almeida, 2002, 2007).

Em suma, algumas das principais tarefas ou exigências que se colocam aos estudantes do ensino superior e que podem ser geradoras de stress são, segundo Clare (1995):

1) o estudante sai de casa dos seus pais pela primeira vez na sua vida;

2) o estudante tem de assumir, pela primeira vez, responsabilidades múltiplas decorrentes da gestão de um orçamento limitado, do aluguer de casa/quarto, respectiva limpeza e manutenção, da alimentação, manutenção das suas roupas; 3) o estudante entra em competição directa com pares aparentemente muito competentes do ponto de vista académico, sendo frequente a constatação de que se está a competir com “os melhores” e que “ser o melhor da sua classe do secundário” pode não garantir o sucesso neste novo grau de ensino;

4) o ensino secundário contém em si um conjunto de regras razoavelmente claras sobre os conteúdos alvo de avaliação, bem como sobre os limites de tempo para os adquirir; pelo contrário, no ensino superior, exige-se do estudante uma maior capacidade de escolha e uma maior selectividade na apreensão dos conteúdos, pois as regras são agora menos claras/organizadas e mais flexíveis;

5) a instituição de ensino superior pode levar a uma primeira experiência de decepção e insucesso pessoais, com todas as implicações desse insucesso face ao próprio, à família e à instituição;

6) nesta fase ocorrem também as mais importantes descobertas do estudante relativamente à sua sexualidade, com o estabelecimento de uma primeira relação mais duradoura; nos casos em que o aluno descobre em si uma orientação sexual diferente da que é típica ou esperada, o stress tende a aumentar.

A transição para a universidade é, então, uma situação que envolve vários stressores e que requer adaptação a vários níveis. Segundo Baker e Siryk (1989), há quatro importantes áreas que devem ser consideradas tanto individualmente como no

27 seu todo: 1) adaptação académica, que inclui, para além do desempenho aspectos como a motivação, a identificação de objectivos académicos, a satisfação com o ambiente académico; 2) adaptação social, que compreende as relações interpessoais, as redes de suporte social e a satisfação com a socialização; 3) adaptação pessoal e emocional, que diz respeito tanto ao bem-estar psicológico como físico; 4) vinculação institucional, que tem a ver com a forma como o estudante se sente em relação à instituição e quão ligado está a ela.

Quanto mais a transição do ensino secundário para o ensino superior modificar a vida do estudante, maiores adaptações irá exigir; contudo, isso não faz dela negativa ou positiva (Pinheiro & Ferreira, 2002). Os alunos podem encarar o processo de transição mais como um desafio ou mais como uma ameaça (Matheney et al., 2002; Straub, 2002). É, então, a percepção que os estudantes têm da situação e do stress por ela gerada que vai influenciar a sua adaptação (Kerr, Johnson, Gans, & Krumrine, 2004; Pritchard & Wilson, 2003).

Como armas para lidar com as exigências do ensino superior, os estudantes têm ao seu dispor recursos de natureza diversa, entre os quais se destacam (Clare, 1995):

1) factores individuais a nível cognitivo-emocional, social, auto-estima e estratégias de coping;

2) o grupo dos pares, relacionado com o envolvimento em actividades extracurriculares como o futebol, o teatro, a música ou a ginástica, nas quais o estudante pode desenvolver e cultivar aptidões sociais, bem como adquirir suportes sociais considerados indispensáveis para o seu bem-estar;

3) os pais e restante família do estudante constituem outra fonte importante de suporte, aconselhando, dando afecto, encorajando e constituindo-se como um refúgio importante para quando as coisas correm menos bem;

4) uma relação amorosa privilegiada, a descoberta de um talento especial e um bom ambiente de trabalho são também importantes factores de suporte.

Os estudantes mais bem adaptados ao ensino superior são, em geral, aqueles que se servem dos recursos mencionados e que apresentam estratégias de confronto, ou seja, de resolução activa dos stressores (Martins, 2001). As estratégias mais utilizadas pelos alunos portugueses na adaptação à vida académica parecem ser estratégias de controlo, que implicam o auto-controlo perante a situação e a coordenação de comportamentos, e as estratégias de suporte social, que abrangem o desejo,

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necessidade ou pedido de ajuda em termos cognitivos, cooperativos ou afectivos (Costa & Leal, 2006).

Contudo, a escolha de estratégias eficazes para lidar com as mudanças da transição parece não ser fácil, pois mais de metade dos estudantes sentem dificuldades na adaptação, que transparecem através de alterações nos hábitos e estilos de vida e mesmo através do desenvolvimento ou agravamento de psicopatologia (Leitão & Paixão, 1999). No que diz respeito a diferenças entre os géneros, os estudos existentes, quer a nível internacional, quer nacional mostram que, em geral, são as mulheres que têm mais dificuldades na adaptação, exibindo mais problemas na adaptação pessoal e emocional (Gall, Evans & Bellerose, 2000; Monteiro, Tavares, & Pereira, 2010; Santos, 2000; Soares, 2003).

Um processo de adaptação bem sucedido, especialmente no primeiro ano, é um preditor importante da persistência e do sucesso dos alunos ao longo do seu percurso académico, bem como do seu desenvolvimento e bem-estar (Almeida & Ferreira, 1997; Lent, Taveira, Sheu, & Singley, 2009). Por conseguinte, as instituições podem ter aqui um papel activo, ao desenvolverem estratégias de apoio psicossocial na transição para o ensino superior, promovendo a integração dos estudantes, com particular atenção aos alunos que vivenciam mais mudanças, como é o caso dos deslocados (Taveira et al., 2000).