6. N ão é de mero interesse acadêm ico a questão relativa ao va
lor da D ogm ática com o ciên cia ou com o arte.
A discussão deste problem a envolve indagações de alto alcan ce, não sendo pequenas as divergências entre os diversos autores.
U ns, e são os que atentam m ais ao elem ento formal do Direito, identificam D ogm ática e C iência do Direito, declarando que a ciên cia que tem por objeto a form ação ou a elaboração das leis não é a C iência jurídica propriamente dita, mas a Política ou a Teoria Geral
“da realidade não se pode deduzir nenhum valor, de um se r nenhum dever” . Cf. Rodolphe Laun, La dém ocratie, Paris, 1933, p. 85 e s. Pode-se dizer que esta é hoje matéria pacífica na Filosofia do Direito. Para maiores esclarecimentos, cf. Miguel Reale, Filosofia do direito, cit., 2* parte.
do Estado. O trabalho do jurista não compreenderia, dessarte, a inda gação das causas e dos m otivos das normas, a não ser com o elem en to auxiliar de exegese na aplicação das leis aos casos concretos.
Outros, ao contrário, procurando achegar a Ciência do Direito às chamadas C iências Naturais, distinguem Ciência do Direito de D ogm ática, considerando a primeira uma ciência verdadeira, e a se gunda uma arte ou a explanação de uma arte.
7. “A dogm ática jurídica” , lecionava Pedro L essa, “encerra um
conjunto de preceitos, formulados para a realização de fins determi nados; é a explanação de uma arte. Confundi-la com a ciência im porta desconhecer um dos m ais vulgares elem entos de lógica”. Ca racterizando a C iência jurídica com o aquela que “tem por objeto o conjunto orgânico das condições de vida e desenvolvim ento do indi víduo e da sociedade, dependentes da vontade humana e que é n eces sário sejam garantidas pela força coercitiva do Estado”, concluía o
saudoso professor dizendo que “as le is devem ser formuladas de acor
do com a teoria científica do D ireito” 1'.
Outro ilustre jurista pátrio, Pontes de Miranda, que pretende dar cunho essencialm ente científico-naturalista às suas pesquisas, depois de afirmar que “para a ciência do Direito o que importa é o
S ein , o s e r , e não o S o lle n , o dever ser”, declara que “toda a preo cupação do cientista do D ireito deve ser a objetividade, a análise dos fatos, a investigação das relações sociais” e que “na Ciência do D i reito — inconfundível com a D ogm ática Jurídica que é a pesquisa dos preceitos e princípios em função de sua discrim inação ou signi
ficação lógicas — deve primar o m é to d o in d u tiv o d a s c iê n c ia s n a tu
ra is, reservando-se à d e d u ç ã o um papel posterior e secundário” 12. Pontes de Miranda confia no progresso da C iência Jurídica, que
um dia poderá dispensar os “c o r p o s d e lib e r a n te s que são supérfluos
violentos, subjetivos, da proclam ação das verdades científicas”, pois
“progressivam ente se avança para a d e m o c r a tiz a ç ã o d o s p r o c e s s o s
11. Pedro Lessa, E studos d e filosofia do direito, 1911, p. 46 e s.
12. Pontes de Miranda, Sistem a de ciência p o sitiva do direito, Rio, 1922, v. 1, p. 474-81. Paradoxalmente, o que há de mais vivo no pensamento jurídico deste saudoso Mestre situa-se no plano da Dogmática Jurídica, com reduzida aplicação do método indutivo.
d e r e v e la r o d ir e ito ’', sendo que as “assem bléias políticas atuais são correspondentes aos Estados do período que atravessamos” e “m odi ficam -se aos poucos, com sensível perda do valor opinativo ou auto ritário” 13.
Esta aspiração corresponde, aliás, à sua doutrina sobre a reali zação automática do Direito, de sorte que este poderia existir até
m esm o nas s o c ie d a d e s p e r f e ita s com o forma da existência dentro
dos círculos sociais, com o forma de adaptação dos hom ens à vida.
8. É entre os escritores da escola técnico-jurídica que se encon
tra m ais ou m enos pronunciada a identificação de Ciência Jurídica e D ogm ática, dizendo eles, em resum o, que a C iência Jurídica — na acepção rigorosa da expressão — é a ciência dogm ática e sistem áti
ca do D ireito, a qual se realiza em três tem pos que são: a in te r p re ta
ç ã o , a c o n s tr u ç ã o e a s is te m a tiz a ç ã o .
C om preende-se bem esta posição especial em virtude da distin ção que, em geral, é feita entre o D ireito com o fato social e o Direito com o norma. N o primeiro caso, o fato jurídico constitui objeto da Teoria Social do D ireito (Jellinek), da História do Direito (Som m er), da S ociologia Jurídica etc.
A C iência Jurídica propriamente dita não deve cogitar, dessarte, da série causai dos fatos jurídicos, mas tão-som ente do Direito en
quanto s is te m a d e n o rm a s ju r íd ic a s .
Por outras palavras, a C iência Jurídica ocupa-se com a ordem
jurídica e, m ais ainda, com a o rd e m ju r íd ic a p o s itiv a , ou seja, tem
circunscrito o seu cam po de pesquisa ao D ireito Objetivo em vigor
em um Estado, ao que é d e v e r s e r enquanto é, e não ao que d e v e s e r
“in a b stra c to " , ao constituído e não ao constituendo. Segundo esta doutrina, portanto, a C iência Jurídica por excelência é a Dogm ática, a qual sempre pressupõe um ordenamento jurídico legal com o dado im prescindível.
Essa maneira de ver, a única aliás com patível com o form alism o dos pretensos juristas puros, encontra ainda hoje um número avulta- do de adeptos, até m esm o no m eio de culturalistas de mérito com o é o caso de Gustav Radbruch. O em inente mestre alem ão diz que a
verdadeira e característica C iência Jurídica é essencialm ente siste
mática e dogm ática, e a define com o “a c iê n c ia d o s e n tid o o b je tiv o
d o d ir e ito , ou d e q u a lq u e r o rd em ju r íd ic a p o s itiv a ”, discriminando estes seus pontos essenciais:
1.°) o seu objeto é constituído pela ordem jurídica positiva, pelo D ireito positivo;
2.°) não se ocupa com a vida do Direito; ocupa-se com as n o r
m a s ju r íd ic a s , e não com outros fatos que possam interessar ao m un do do Direito;
3.°) é uma ciência do sentido o b je tiv o e não do sentido s u b je ti
v o do D ireito14.
9. Parece-nos que há exageros de parte a parte, tanto entre os
que identificam a Ciência Jurídica com a Dogm ática, quanto entre os outros que atribuem à Dogm ática um papel secundário, de mera apli cação de elem entos fornecidos pela C iência Jurídica.
A concepção da D ogm ática com o uma “arte”, ou “a explanação de um a arte”, im p ed e-n os d e penetrar no verdadeiro objeto da D ogm ática e é tão errônea com o a teoria que levanta uma barreira entre a C iência e a T écnica do Direito.
Cumpre distinguir dois m om entos na pesquisa do Direito, um
em conexão ou continuidade lógica com o outro: o d a e la b o r a ç ã o
cie n tífic a d o s p r in c íp io s e e stru tu ra s q u e fu n d a m e c o n d ic io n a m o s is te m a d a s n o rm a s p o sitiv a s', o d a in te r p re ta ç ã o , c o n s tr u ç ã o e s is te m a tiz a ç ã o d a s n o rm a s d e d ir e ito p o r ta l m o d o p o s itiv a d a s .
Esses dois m om entos só podem ser separados por abstração, pois, na realidade, se interpenetram e intim am ente se ligam , de tal sorte que não há interpretação de texto de lei que não traga a resso nância dos fatos da vida concreta, nem apreciação de fatos que não sofra a refração do sistem a legal vigente. E is por que dam os um sentido relativo à distinção de G ény entre o “dado” e o “construído”.
D e maneira geral, porém, podem os dizer que a Ciência Jurídica tem com o início um contacto com os fatos, não para subir dos fatos
14. Radbruch, Filosofia do D ireito, trad. de Cabral de Moncada, São Paulo, 1937, p. 158 e s.
até as normas — o que seria aplicar a indução no Direito com o se aplica nas ciências naturais — , mas para alcançar as leis e os princí pios com preensivos do fato social. Expliquem o-nos:
Embora as valorações não possam ser consideradas indepen dentes dos fatos, pois há sempre uma série de acontecim entos com o
su b stra c tu m dos dispositivos legais, a doutrina é hoje unânime em
reconhecer que é im possível passar do m u n d o d o s f a to s ao mundo do
d e v e r s e r ju r íd ic o . A norma não resulta apenas dos fatos, mas da atitude espiritual (adesão, reação etc.) assumida pelo hom em em face de um sistem a de fatos. Os fatos, por conseguinte, são causa indireta, condição material da lei que tem a sua fonte direta nos valores que atuam sobre a psique humana, sobre o espírito15.
Dessarte, não pode o jurista passar dos fatos à norma (e não há
norma jurídica que não exprima um d e v e r s e r , ainda m esm o quando
“é ” no sistem a do direito positivo), assim com o o físico passa dos fatos à lei (e não há lei nas ciências naturais que seja imperativa, isto é, que eticam ente obrigue), m as pode analisar os fatos para fixar os princípios científicos que devem presidir à feitura das leis, e, após a lei decretada, orientar a dinâm ica do direito positivo, preenchendo- lhe as inevitáveis lacunas.
D ir-se-á que essa é m issão da Política, da Sociologia Jurídica etc., mas a C iência Jurídica co-im plica a P olítica16 e, se a feitura das leis é problema P olítico por excelência, ou seja sócio-jurídico-políti- co, é bom lembrar que não pode deixar de ser questão técnica e for m alm ente jurídica.
A Dogm ática, portanto, deve ser entendida com o f a s e d a c i ê n
c ia d o D ir e ito , correspondente ao m om ento culm inante da Jurispru dência, àquele no qual os resultados da pesquisa — as normas e os
15. Daí a Improcedência do positivismo jurídico quando afirma, como no caso de Brugi, que “no vasto domínio da Jurisprudência, os fatos são a gênese das normas jurídicas”. Introduzione a lie scienze giu ridiche e sociali, Florença, 1891, p. 16. Quem admite que do fato puro e simples se origina o Direito não pode deixar de aceitar as conclusões de Spinoza sobre o “direito natural” que têm os peixes maiores de comer os menores, chegando, assim, à destruição do próprio Direito. Cf. Pekelis,
II diriíto com e volontà costante, Pádua, 1931, p. 78.
16. Vide o cap. V desta monografia e o meu livro O direito com o experiência,
São Paulo, 1968, bem como Pier Luigi Zampetti, II firtalism o nel diritto, Milão, 1969.
princípios científicos — tom am a tomar contacto com os fatos, pas sam, por assim dizer, pela prova decisiva da aferição de seu valor real. Em verdade, não é m enos nem m ais científico este m om ento, porventura m ais caracteristicamente jurídico, no qual há criação, há participação criadora do intérprete (doutrinador, administrador, ju iz etc.) que refaz o cam inho percorrido, renova o processo por que pas saram os que editaram a lei, a fim de aplicar não a norma ao fato
particular com o se veste uma roupa s ta n d a r d em um m anequim , mas
para iluminar o fato com a luz dos valores que se concretizam na regra de direito.