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A DOUTRINA DE DUGUIT SOBRE O PODER E A REGRA DE DIREITO

No documento REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado (páginas 99-102)

56. Léon Duguit, cuja posição neste ponto é especialíssim a, não nos explica satisfatoriamente o porquê da obrigação legal. N ega­ da a “realidade objetiva da consciência social”, o em inente constitu­ cionalista procura outros fundam entos para o D ireito e o Estado, perdendo-se em um a série de exp licações nebulosas, estranháveis em um grande espírito que tanto quis estar perto da clareza e da evidência.

Sua tese fundamental é a de que a noção de Direito é com pleta­ mente independente da noção de Estado, im pondo-se-lhe com o se im põe aos indivíduos, uma vez que “uma regra econôm ica ou moral

torna-se n o rm a ju r íd ic a quando na consciência da m assa dos indiví­

duos, que com põem um grupo social dado, penetra a idéia de que o grupo ou os detentores da maior força podem intervir para reprimir as violações dessa regra”5.

A ssim , a regra do Direito surge quando em uma sociedade se fortalece a convicção da necessidade de reagir contra a sua possível

violação, e existe a certeza de que é possível o r g a n iz a r so c ia lm e n te

um a r e a ç ã o contra os seus transgressores. U m a lei, portanto, é jurí­ dica antes de receber a sanção do legislador, porque se im põe ao legislador “pela força m esm a das cousas”, quando “a m assa dos ho­

mens com preende que ela é necessária à s o lid a r ie d a d e , e é justo que

ela seja sancionada”6.

5 7 . D u gu it sustenta que a ‘‘fo r m a ç ã o e s p o n tâ n e a do D ireito

é universalm ente adm itida p ela so cio lo g ia m oderna” e tenta e x ­

5. Duguit, Traité, cit., v. 1, p. 36.

6. Duguit, loc. cit. Com muito acerto esta teoria de Duguit foi aproximada da teoria de “reconhecimento” (Anerkennungstheoríe) elaborada principalmente por Bierling, segundo o qual positividade seria sinônimo de eficácia, isto é, a validade do Direito dependeria da adesão das consciências individuais, do reconhecimento das normas por parte da sociedade, pela adesão da m assa d os espíritos segundo a linguagem de Duguit. Se admitirmos, como Hans Kelsen (op. cit., p. 48), que a doutrina do reconhecimento é uma sobrevivência da tese contratualista, poderemos dizer que os princípios de Rousseau estão sempre latentes nas doutrinas dos mais ilustres constitucionalistas franceses. Sobre este ponto, vide Ugo Redanò, Lo Stato etico, Florença, 1927, p. 73 e s.

p licar com o a ordem jurídica surge do fato da s o lid a r ie d a d e , em razão do fato do sentim ento de sociab ilid ade e do fato do sen ti­ m ento de ju stiça 7.

O sentim ento da sociabilidade ou da socialidade consiste no sentimento de que “os laços de solidariedade, que mantêm a integração social, ficariam partidos se o respeito a uma determinada regra m o­ ral ou econôm ica não fosse sancionado pelo direito” . N o entanto, D uguit não nos diz nem quando nem com o se forma a consciência da necessária sanção de um preceito, nem nos fornece elem entos para precisarmos quando um sentim ento está suficientem ente generaliza­ do e intenso a ponto de forçar o legislador a aparecer em cena.

5 8. A liás, o ilustre mestre não esconde as sombras que cercam a

sua doutrina: “Esta consciência”, diz ele, “é certamente m uito obs­ cura, uma espécie de intuição mais ou m enos turva na m aioria dos espíritos. Em todas as épocas, ela se revela mais clara em alguns hom ens, naqueles que podem os chamar “m entores”, nos que, com

nom e m ais pom poso, foram chamados “lum inares” (le s f la m b e a u x f .

N ão se com preende bem com o, depois dessas considerações, D uguit possa considerar o Direito mera resultante do fato social.

“Nada é m ais inexato”, contesta o jurista G eorges Burdeau, “a nossa ciência se ocupa com objetos a que a justiça humana já deu

form a (a d é jà fa ç o n n és)', um véu de representações está urdido entre

o fenôm eno e aquele que os pretende descobrir intactos. A ssim , quan­ do D uguit declara que o fato social da interdependência hum ana dá nascim ento à regra jurídica, é preciso entender, não que ela seja o resultado de um fenôm eno espontâneo ao qual os hom ens sejam es­ tranhos, mas, sim, que foi a representação do fim últim o da ordem social que conduziu os m embros do grupo a fazer do sentim ento de sua solidariedade o princípio das regras jurídicas”9.

7. Duguit, op. cit., p. 45 e s. 8. Duguit, Traité, cit., v. 1, p. 47-8.

9. Georges Burdeau, Règle de droit et pouvoir, A rchives d e P hilosoph ie du D roit e t d e Sociologie Juridique, 1937, ns. 3-4, p. 71, nota 1.

Deve-se notar que, posteriormente à 1.* edição deste livro, Burdeau deu am­ plo desenvolvimento à problemática do poder, com a publicação de seu precioso

O pensam ento de D uguit é im preciso neste ponto. Com efeito, não chegam os a com preender com o seja p ossível admitir que o D i­

reito v a d e lu i m ê m e, im pondo-se aos hom ens e aos governos pela

“própria natureza das cousas”, depois de ter expressam ente reconhe­ cido que “a m assa dos espíritos”, só m uito tardia e nebulosam ente, m anifesta a necessidade de ver convertida em jurídica uma norma econôm ica ou ética.

59. Adm itindo a tese da form ação espontânea ou m ecânica do

Direito, Duguit pensou ter elim inado a idéia de poder dos dom ínios

do Direito, lançando a pá de cal sobre a s o b e r a n ia que é o poder por

excelência.

Quando ele condena a idéia de soberania com o d ir e ito , para

aceitá-la com o f a t o d o p o d e r , isto é, com o expressão pura e sim ples

do fato de existirem hom ens que se fazem obedecer por outros, a sua conclusão não se choca de todo com as premissas por ele estabelecidas com o conseqüência ética e ló g ica da lei da divisão do trabalho e da solidariedade. O poder de g ovem o prescinde de justificação porque é um produto da evolução so cia l10, e o Direito, elaborado à margem do Estado, im põe-se ao G ovem o pela natureza m esm a das cousas.

Eis aí o dualism o fundamental do sistem a de Duguit: o f a to d o p o d e r

se desenvolve paralelamente ao p r o c e s s o d e f o r m a ç ã o ju r íd ic a até

este se impor àquele por inelutável necessidade expressa pelo senti­ m ento da “m assa dos espíritos”. M as não se sabe com o tal se dá, nem quando. O positivism o de D uguit lim ita o seu cam po de pesqui­ sa à sim ples descrição dos fatos... A verdade é que entre o Direito e o poder, Duguit deixa um abism o.

A declaração de que o poder constitui um sim ples fato social e nunca um fato jurídico, longe de representar um a solução, represen­ ta apenas um m eio ilusório de fugir ao problem a cujas dificuldades ficam todas de pé.

D e qualquer maneira, restará sempre saber quem será o intér­ prete da regra desejada pela “m assa dos espíritos”, pois não é de

10. “A verdade é que o poder político é um fato que, em si, não tem nenhum caráter de legitimidade ou de ilegitimidade. Ele é o resultado de uma evolução soci­ al, de que o sociólogo deve determinar a forma e assinalar os elementos”, Duguit,

supor que D uguit pretenda que a norma jurídica se revele m ilagrosa­ m ente, sem apreciação por parte da inteligência humana. A regra de direito, por conseguinte, só será reconhecida com o tal em virtude de uma d e c is ã o , decisão que, de uma forma ou de outra, há de ser d eci­ são de última instância, e eis-nos de novo às voltas com o destruído conceito de soberania...

A sim ples elim inação do conceito jurídico de soberania pela afirmação do predom ínio da regra de direito à qual todos deverão obediência, inclusive os governantes, nada resolve, pois, neste caso é-se obrigado a reconhecer que alguém irá decidir se estam os ou não diante de uma regra verdadeiramente exigida pela opinião pública. Se é à própria opinião que cabe decidir, nem m esm o assim fica resol­ vido o problema prático da subm issão do Estado ao Direito.

É esta a objeção decisiva que se faz à doutrina de Duguit, cuja afirmação do primado da “regra de direito” não exclui mas exige que uma autoridade constituída diga a última palavra sobre a sua nature­ za e validade".

No documento REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado (páginas 99-102)

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