92. N ão há problem a que exija m ais cuidadosas distinções do
que este da relação entre o poder e o D ireito27.
O fenôm eno jurídico é fenôm eno universal, inerente a toda or dem social por m ais que se recue no tem po em procura das primiti vas form as de convivência humana. Sem cairm os no exagero dos que vêem o D ireito com o form a de adaptação à vida exten sível a todos os seres vivos e até m esm o além da esfera do mundo orgânico,
27. Cf. Miguel Reale, P lu ralism o e liberdade, São Paulo, 1960, especial mente o ensaio O p o d e r na dem ocracia, p. 207 e s. Cf. Martin Kriele, Introducción a la teoria d el E stado, cit., caps. 3 e 4.
reconhecem os que o Direito está sempre presente em formas ainda que rudimentares de solidariedade social.
Esta questão é das m ais debatidas, não sendo de som enos im portância os argumentos aduzidos pelos que asseveram que, no co m eço da vida social, a solidariedade e a cooperação entre os hom ens são insuscetíveis de qualificação jurídica, assinalando-se o apareci m ento do Direito em estádios avançados de cultura dos povos seden tários, em conexão com fenôm enos com o a produção das riquezas, as exigências técnicas da guerra etc.
O s que assim raciocinam , porém, não fazem m ais que procurar saber se nos tem pos primitivos existiram, p elo m enos em esboço, formas sem elhantes às do Direito peculiar aos povos da civilização greco-itálica, quando a questão é saber se o Direito em geral é fenô m eno presente em toda forma de convivência.
A s necessidades humanas nos conduzem naturalmente à o r g a
n iz a ç ã o assim com o nos conduzem ao Direito. D aí o desenvolvi m ento concom itante, sincrônico, de uma e de outro, com o aspectos de uma realidade única.
Tom em os, para maior clareza da exposição, o caso particular da form ação do ordenamento jurídico de um grupo.
Quando um conjunto de hom ens, sob o estím ulo de m últiplos
m otivos, passa a viver c o m o g ru p o , ou seja, com o unidade de vonta
des em razão de um fim com um , então o círculo social não pode
deixar de ser o rg a n iza d o , o que quer dizer que passa a ter um p o d e r
que se não confunde com os poderes particulares dos membros com ponentes.
Organizar-se, pois, é constituir-se com um poder social. Este é o dado inicial, verificável, em toda e qualquer forma de organização, em todo e qualquer grau de juridicidade do poder. Todo grupo social (fam ília, clã, tribo, Estado) é uma organização do poder28.
28. É neste sentido particular que se pode aceitar a definição de Sampaio Dória: “O E stado é a organização da soberania", vide “Soberania”, R evista da Faculdade d e D ireito d e São Paulo, 1933, p. 75, e em Problem as de direito pú blico,
O poder é a expressão de uma unidade social que se põe acima dos indivíduos ou de outras unidades sociais particulares: é a autori dade a serviço da instituição, ou seja, de algo de objetivo e de supe rior aos hom ens que o exercem .
93. A ssim com o não há organização sem presença do Direito
não há p o d e r que não seja ju r íd ic o , isto é, insuscetível de qualifica
ção jurídica, pois não se confunde com a força.
É considerando a forma atual do Direito, com as suas caracte rísticas formais e a sua especial função normativa; é olhando o fenô m eno do poder com “olhos de hom em atual” que fazem os a distin
ção entre p o d e r d e f a t o e p o d e r d e d ire ito . Trata-se, portanto de uma
apreciação de valor relativo, com referência a um sistem a determina do de D ireito Positivo.
N ão colhe, pois, a objeção de Hans K elsen quando nega que o poder seja algo m ais que a própria coação com o conteúdo da norma jurídica, visto com o não se pode tratar de poder que não seja poder
de Direito.
“Em que consiste, portanto, essa vontade diretora da com uni dade, ali onde exista, uma vez que pressupõe a existência de fatos naturais e, por conseqüência, de com andos e ordens isolados? Na afirmação de uma vontade diretora da com unidade já está encoberto o pressuposto de uma ordem jurídica, que determina que certos ho m ens devem mandar e outros devem a eles obedecer, aplicando-se- lhes, em caso contrário, um a conseqüência coercitiva”29.
Para haver poder é necessário, inegavelm ente, uma certa ordem jurídica. D aí o erro daqueles que aceitam a doutrina de Jhering se
gundo a qual o p o d e r c r ia o direito™ .
O poder, porém, não pode ser reduzido a uma pura categoria jurídica. Entre a solução de K elsen e a de Jhering, há uma outra, que vê os dois fenôm enos com o fenôm enos concom itantes e reconhece
que, se a atividade política do Estado não é toda ju r íd ic a , não é
29. Kelsen, Teoria generale d el Estado, cit., p. 137.
30. Vide Jhering, E l fin en el derecho (Der Zweck im Recht) trad. de Leonardo Rodrigues, Madri, p. 202 e s. Cf. cap. VII, n. 10 e s. Quanto a problema da gradua ção da ju rid icid a d e, vide os meus E studos d e filosofia e ciência do direito, cit.
tam pouco a ju r íd ic a , porquanto devem ser jurídicas as com petências de decidir e a forma de exercício.
94. O poder, por conseguinte, nunca deixa de ser substancial
m ente político, para ser pura e sim plesm ente ju r íd ic o .
Quando dizem os que o poder é jurídico, fazem o-lo relativamente
a uma g r a d u a ç ã o d e ju r id ic id a d e , que vai de um m ín im o , que é re
presentado pela força ordenadamente exercida com o m eio de certos
fins, até a um m á x im o , que é a força empregada exclusivam ente com o
m eio de realização do D ireito e segundo normas de Direito.
Isto quer dizer que o poder não existe sem o Direito, mas pode existir com m aior ou m enor grau de juridicidade.
Por outro lado, assim com o o poder não existe sem o Direito, o Direito não se positiva sem o poder, um im plicando o outro, segundo
o p r in c íp io d e c o m p le m e n ta r ie d a d e , de tanto alcance nas ciências naturais e humanas.
D e maneira geral não há p o d e r que se exerça sem a presença do
Direito, m as daí não se deve concluir que o poder deva ser p u r a m e n te
ju r íd ic o , tal com o é entendido no “Estado de D ireito”.
A expressão p o d e r d e d ir e ito é o resultado de uma comparação
entre os diversos graus de juridicidade do exercício do poder. N ão
significa — com o pensam alguns — que o poder se tom a todo s u b s
ta n c ia lm e n te ju r íd ic o (o que eqüivaleria a identificar Estado e D irei to), mas que o poder, em regra, se subordina às normas jurídicas cuja positividade foi por ele m esm o declarada.
Verem os, depois, o sentido exato destas palavras que, à prim ei
ra vista, nos recon d u zem ; ria da a u to lim ita ç ã o da soberania.
95. D a negação do poder na esfera do D ireito, não resulta tão-
som ente um prejuízo para a autonom ia do Direito e para a distinção entre a Moral e o Direito, o Estado e o D ireito31.
31. Distinção séria, pois, como diz Gény, a interferência da vontade é que determina ou especifica o momento da juridicidade. (Cf. Science e t technique, cit.,