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A DOUTRINA DE KELSEN SOBRE A SOBERANIA COMO EXPRESSÃO DA POSITIVIDADE JURÍDICA

No documento REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado (páginas 105-109)

64. Também Hans K elsen, colocado aparentemente no pólo oposto do sociologism o jurídico de Léon Duguit, nega a interferên­

16. Duguit, Traité, cit., v. 1, p. 108. Cf. Gény, Science et technique, cit., v. II. 17. Cf. adiante cap. VIII, onde analisamos outros aspectos da doutrina de Duguit sobre a soberania e a regra de Direito.

cia do poder na criação, ou melhor, na atualização da ordem jurídica positiva.

Seduzido pelo ideal de uma “ciência jurídica pura”, na qual o Direito dçveria aparecer com o uma expressão de pura normatividade, com todas as características de uma ciência do “Sollen”, sem contacto com o m ultíplice e substancioso conteúdo da vida social, assim com o as figuras geom étricas pairam acim a dos corpos grosseiros que os n ossos sentidos apreendem, Hans K elsen e os seus discípulos repu­ diam a doutrina clássica segundo a qual não se realiza o Direito sem a participação do poder.

Segundo K elsen, o Estado se identifica com o Direito, e não há outro Direito além do Direito Positivo concebido com o uma ordem gradativa de normas. Dessarte, ele não podia deixar de negar o poder na esfera jurídica, ou melhor, não podia deixar de reduzir a idéia de poder à de norma. O que pretendem os aqui não é contestar a coerên­ cia íntim a do sistem a, nem tam pouco desconhecer que tanto Kelsen com o Duguit pertencem a essa fam ília privilegiada de destruidores que, negando, lançam uma luz viva sobre os vícios e as qualidades dos sistemas, abrindo cam inho para aprimorar estas e corrigir aqueles.

65. N a teoria pura de K elsen, a soberania não é um “p o d e r ”

com o ensina a corrente tradicional, nem tam pouco uma “q u a lid a d e

d o p o d e r”, com o pretendem especialm ente os partidários da escola de Gerber e de Laband, mas representa tão-som ente a unidade e a validade de um dado sistem a de normas, unidade e validade que são uma decorrência lógica da “norma fundamental hipotética” posta pelo jurista com o condição do próprio sistem a.

A soberania ou o poder, segundo K elsen, não é algo que antece­

da e garanta a atualização do Direito, pois “a tr á s d o D ir e ito n ã o é

p r e c is o e x is tir um p o d e r q u e o sa n c io n e ” .

O poder é, ao contrário, a própria coação com o conteúdo da norma tal com o se apresenta aos olhos de quem pretende conhecer a validade das proposições jurídicas. Fora desse sentido especial não

cabe, na esfera do Direito, a idéia de um p o d e r r e a l com o geralm ente

se admite quando se considera o Estado uma organização coercitiva. O poder só pode e deve ser um predicado do Direito, porquanto não é senão a lógica interna, o fio lógico que prende a últim a das normas positivas decretadas p elo Estado à totalidade do sistem a jurídico. “A

noção vulgar segundo a qual o Estado com o poder está por detrás do

Direito para realizá-lo, que o Estado, com o poder, a p ó ia , p r o d u z,

g a ra n te etc. o Direito não é m ais que uma hipostatização que desdo­ bra inutilm ente o objeto do conhecim ento e cuja falta de base se com prova desde o m om ento em que se adverte que o chamado poder do Estado não é outra cousa senão o poder do Direito, não de um Direito natural ideal, mas tão-só do Direito positivo” 18.

66. C om o se vê, o Estado não cria regras normativas, ou regras

construtivas, porquanto o Estado é a personificação m esm a do con ­ junto unitário de todas as normas, de maneira que o poder não é m ais

que a validade da ordem superior da com unidade universal.

“Quando se afirma que só possuem p o d e r as com unidades que

representam uma unidade distinta dos hom ens que as com põem m os-

tra-se claramente que o c o n c e ito d e p o d e r n ã o é s e n ã o a p e r s o n ific a ­

ç ã o h ip o s tá tic a d e u m a o rd em v á lid a . Tal se dá devido ao fato de que o poder do Estado (a princípio considerado um fato real, analisável do ponto de vista das ciências naturais) se afirma, afinal, com o um poder juridicam ente qualificado” 19.

N esses termos se exprim e Hans K elsen, pondo bem em evidên­ cia um dos pontos culm inantes de sua poderosa argumentação sobre o problem a do Direito e do Estado.

“U m Estado é soberano”, declara ele ainda, “quando o con heci­ m ento das normas jurídicas demonstra que a ordem personificada no Estado é uma ordem suprema, cuja validade não é suscetível de ulte- rior fundamentação; quando, por conseguinte, é posto com o ordem jurídica total e não parcial. N ão se trata, pois, de uma qualidade m a­

terial nem , portanto, de conteúdo jurídico. O problema da soberania

é um problem a de imputação, e, visto com o a p e s s o a é um centro de

imputação, constitui o problema da pessoa em geral, não sendo, de

18. Kelsen, Teoria general del E stado, cit., p. 22 e s. Cf. adiante cap. VII, n. 17. Nessa mesma obra, à p. 408, o eminente jurista esclarece bem o seu pensa­ mento com esta fórmula precisa: “O querer do Estado é o dever ser de seu ordena­ mento”. Da doutrina jurídica de Kelsen e de seus pressupostos filosóficos trata­ mos amplamente em nossas obras O s fundam en tos d o direito, cap. V, e Filosofia do direito, 10. ed., cit., cap. XXXII.

maneira alguma, unicam ente o problem a da pessoa do Estado. O m esm o problem a se apresenta para a pessoa física com o problem a da liberdade da pessoa ou da vontade”20.

Concepção em inentem ente formal da soberania é, com o se vê, esta de Kelsen, o qual, aliás, não indaga se a soberania corresponde ou não ao Estado em geral, mas, sim , “se o conhecim ento do Estado em prega ou tem necessidade de empregar um m odelo de explicação segundo o qual subsista a soberania de cada ordenamento jurídico estatal; ou se, ao contrário, só pressupõe com o soberano ao ordena­ m ento jurídico internacional”.

K elsen, em verdade, admite duas hipóteses distintas, a do p r i ­

m a d o d o D ir e ito d o E s ta d o n a c io n a l e a do p r im a d o d o D ir e ito in te r­ n a c io n a l. E le prefere esta última, declarando que a primeira corres­ ponde a ideais imperialistas de redução do sistem a universal do D i­ reito ao quadro particular de um Estado soberano. H oje em dia, a soberania, entendida com o exclusividade de um sistem a normativo,

só p ertence à com unidade internacional, à c iv ita s m a x im a , ao

S u p e re sta d o , a quem com pete a distribuição originária, delim itando as esferas ou os claros em que deve se desenrolar a atividade jurídica dos Estados particulares21.

O termo soberania, dessarte, é conservado tão-som ente para in­ dicar a unidade e a exclusividade de um sistem a de Direito: “U m a vez que se conceba a ordem jurídica com o soberana, isto é, que se lhe pressuponha plenam ente autônoma e independente, não derivada nem suscetível de ser referida a nenhum sistem a ulterior, ao reafirmar a unidade do ponto de vista, afirma-se, ao m esm o tem po, a unidade e a unicidade do sistem a, bem com o a exclusão de qualquer outro siste­ ma normativo. D e m odo que a soberania é a expressão da unidade do sistem a do Direito e da pureza do conhecim ento jurídico”22.

20. Kelsen, op. cit., p. 94. Cf. Kelsen, G eneral th eory o f la w and State, trad. de Anders Wedberg, Cambridge (M.), 1946, p. 385 e s. e 394 e s.

21. Op. cit., p. 134 e s. Sobre estes pontos, vide especialmente Kelsen, Les rapports de système entre le droit interne et le droit intemational public, in Cours de VA cadem ie d e la H aye, 1946, v. 4; e Legaz y Lacambra, Kelsen, 1933, p. 71-85.

22. Kelsen, Teoria general d el E stado, p. 137. Cf. G eneral theory o fla w and State, cit., p. 255 e s.

C om o o Direito coin cid e com o Estado, K elsen é forçado a

e s ta ta liz a r a com unidade internacional, concebendo-a com o o Esta­ do por excelência.

Todo o Direito é concebido m o n istic a m e n te , sob forma de pirâ­

m ide em degraus, e a c iv ita s m a x im a , que é o Estado Soberano, não

é outra cousa senão a ordem jurídica total.

D essa maneira, K elsen procura conciliar a tese do primado do Direito Internacional com a absoluta estatalidade do Direito e, à vis­ ta de seus princípios, é levado a dizer:

1.°) que, se o Direito é Estado (a lie s R e c h t is t S ta a tsre c h t), a

com unidade internacional não pode deixar de ser Estado;

2.°) que, se a soberania indica a exclusividade de um sistem a de normas, só há um ordenamento jurídico, o da com unidade interna­ cional soberana, em cujos quadros se contêm todos os Estados parti­ culares.

N a doutrina de K elsen, e da chamada E scola de Viena, por con­ seguinte, não há lugar para o conceito de soberania com o poder ou com o qualidade do poder. N ão se poderia, m esm o, segundo essas

prem issas, falar, a rigor, em s o b e r a n ia . A liás, a crítica que fere mais

precisam ente a doutrina exposta consiste em notar — com o faz o em inente Pagano — a im possibilidade de ser considerada com o von­ tade e responsabilidade uma “proposição lógica”, uma vez con cebi­ da a soberania com o o caráter próprio de um sistem a de normas e o sujeito com o a personificação de uma norma ou de um ordenamento. Para ser coerente, o sistem a kelseniano, concebendo a responsabili­ dade com o “referibilidade” a um centro de imputação, devia afastá- la da própria qualificação jurídica do lícito e do ilícito23.

No documento REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado (páginas 105-109)

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