64. Também Hans K elsen, colocado aparentemente no pólo oposto do sociologism o jurídico de Léon Duguit, nega a interferên
16. Duguit, Traité, cit., v. 1, p. 108. Cf. Gény, Science et technique, cit., v. II. 17. Cf. adiante cap. VIII, onde analisamos outros aspectos da doutrina de Duguit sobre a soberania e a regra de Direito.
cia do poder na criação, ou melhor, na atualização da ordem jurídica positiva.
Seduzido pelo ideal de uma “ciência jurídica pura”, na qual o Direito dçveria aparecer com o uma expressão de pura normatividade, com todas as características de uma ciência do “Sollen”, sem contacto com o m ultíplice e substancioso conteúdo da vida social, assim com o as figuras geom étricas pairam acim a dos corpos grosseiros que os n ossos sentidos apreendem, Hans K elsen e os seus discípulos repu diam a doutrina clássica segundo a qual não se realiza o Direito sem a participação do poder.
Segundo K elsen, o Estado se identifica com o Direito, e não há outro Direito além do Direito Positivo concebido com o uma ordem gradativa de normas. Dessarte, ele não podia deixar de negar o poder na esfera jurídica, ou melhor, não podia deixar de reduzir a idéia de poder à de norma. O que pretendem os aqui não é contestar a coerên cia íntim a do sistem a, nem tam pouco desconhecer que tanto Kelsen com o Duguit pertencem a essa fam ília privilegiada de destruidores que, negando, lançam uma luz viva sobre os vícios e as qualidades dos sistemas, abrindo cam inho para aprimorar estas e corrigir aqueles.
65. N a teoria pura de K elsen, a soberania não é um “p o d e r ”
com o ensina a corrente tradicional, nem tam pouco uma “q u a lid a d e
d o p o d e r”, com o pretendem especialm ente os partidários da escola de Gerber e de Laband, mas representa tão-som ente a unidade e a validade de um dado sistem a de normas, unidade e validade que são uma decorrência lógica da “norma fundamental hipotética” posta pelo jurista com o condição do próprio sistem a.
A soberania ou o poder, segundo K elsen, não é algo que antece
da e garanta a atualização do Direito, pois “a tr á s d o D ir e ito n ã o é
p r e c is o e x is tir um p o d e r q u e o sa n c io n e ” .
O poder é, ao contrário, a própria coação com o conteúdo da norma tal com o se apresenta aos olhos de quem pretende conhecer a validade das proposições jurídicas. Fora desse sentido especial não
cabe, na esfera do Direito, a idéia de um p o d e r r e a l com o geralm ente
se admite quando se considera o Estado uma organização coercitiva. O poder só pode e deve ser um predicado do Direito, porquanto não é senão a lógica interna, o fio lógico que prende a últim a das normas positivas decretadas p elo Estado à totalidade do sistem a jurídico. “A
noção vulgar segundo a qual o Estado com o poder está por detrás do
Direito para realizá-lo, que o Estado, com o poder, a p ó ia , p r o d u z,
g a ra n te etc. o Direito não é m ais que uma hipostatização que desdo bra inutilm ente o objeto do conhecim ento e cuja falta de base se com prova desde o m om ento em que se adverte que o chamado poder do Estado não é outra cousa senão o poder do Direito, não de um Direito natural ideal, mas tão-só do Direito positivo” 18.
66. C om o se vê, o Estado não cria regras normativas, ou regras
construtivas, porquanto o Estado é a personificação m esm a do con junto unitário de todas as normas, de maneira que o poder não é m ais
que a validade da ordem superior da com unidade universal.
“Quando se afirma que só possuem p o d e r as com unidades que
representam uma unidade distinta dos hom ens que as com põem m os-
tra-se claramente que o c o n c e ito d e p o d e r n ã o é s e n ã o a p e r s o n ific a
ç ã o h ip o s tá tic a d e u m a o rd em v á lid a . Tal se dá devido ao fato de que o poder do Estado (a princípio considerado um fato real, analisável do ponto de vista das ciências naturais) se afirma, afinal, com o um poder juridicam ente qualificado” 19.
N esses termos se exprim e Hans K elsen, pondo bem em evidên cia um dos pontos culm inantes de sua poderosa argumentação sobre o problem a do Direito e do Estado.
“U m Estado é soberano”, declara ele ainda, “quando o con heci m ento das normas jurídicas demonstra que a ordem personificada no Estado é uma ordem suprema, cuja validade não é suscetível de ulte- rior fundamentação; quando, por conseguinte, é posto com o ordem jurídica total e não parcial. N ão se trata, pois, de uma qualidade m a
terial nem , portanto, de conteúdo jurídico. O problema da soberania
é um problem a de imputação, e, visto com o a p e s s o a é um centro de
imputação, constitui o problema da pessoa em geral, não sendo, de
18. Kelsen, Teoria general del E stado, cit., p. 22 e s. Cf. adiante cap. VII, n. 17. Nessa mesma obra, à p. 408, o eminente jurista esclarece bem o seu pensa mento com esta fórmula precisa: “O querer do Estado é o dever ser de seu ordena mento”. Da doutrina jurídica de Kelsen e de seus pressupostos filosóficos trata mos amplamente em nossas obras O s fundam en tos d o direito, cap. V, e Filosofia do direito, 10. ed., cit., cap. XXXII.
maneira alguma, unicam ente o problem a da pessoa do Estado. O m esm o problem a se apresenta para a pessoa física com o problem a da liberdade da pessoa ou da vontade”20.
Concepção em inentem ente formal da soberania é, com o se vê, esta de Kelsen, o qual, aliás, não indaga se a soberania corresponde ou não ao Estado em geral, mas, sim , “se o conhecim ento do Estado em prega ou tem necessidade de empregar um m odelo de explicação segundo o qual subsista a soberania de cada ordenamento jurídico estatal; ou se, ao contrário, só pressupõe com o soberano ao ordena m ento jurídico internacional”.
K elsen, em verdade, admite duas hipóteses distintas, a do p r i
m a d o d o D ir e ito d o E s ta d o n a c io n a l e a do p r im a d o d o D ir e ito in te r n a c io n a l. E le prefere esta última, declarando que a primeira corres ponde a ideais imperialistas de redução do sistem a universal do D i reito ao quadro particular de um Estado soberano. H oje em dia, a soberania, entendida com o exclusividade de um sistem a normativo,
só p ertence à com unidade internacional, à c iv ita s m a x im a , ao
S u p e re sta d o , a quem com pete a distribuição originária, delim itando as esferas ou os claros em que deve se desenrolar a atividade jurídica dos Estados particulares21.
O termo soberania, dessarte, é conservado tão-som ente para in dicar a unidade e a exclusividade de um sistem a de Direito: “U m a vez que se conceba a ordem jurídica com o soberana, isto é, que se lhe pressuponha plenam ente autônoma e independente, não derivada nem suscetível de ser referida a nenhum sistem a ulterior, ao reafirmar a unidade do ponto de vista, afirma-se, ao m esm o tem po, a unidade e a unicidade do sistem a, bem com o a exclusão de qualquer outro siste ma normativo. D e m odo que a soberania é a expressão da unidade do sistem a do Direito e da pureza do conhecim ento jurídico”22.
20. Kelsen, op. cit., p. 94. Cf. Kelsen, G eneral th eory o f la w and State, trad. de Anders Wedberg, Cambridge (M.), 1946, p. 385 e s. e 394 e s.
21. Op. cit., p. 134 e s. Sobre estes pontos, vide especialmente Kelsen, Les rapports de système entre le droit interne et le droit intemational public, in Cours de VA cadem ie d e la H aye, 1946, v. 4; e Legaz y Lacambra, Kelsen, 1933, p. 71-85.
22. Kelsen, Teoria general d el E stado, p. 137. Cf. G eneral theory o fla w and State, cit., p. 255 e s.
C om o o Direito coin cid e com o Estado, K elsen é forçado a
e s ta ta liz a r a com unidade internacional, concebendo-a com o o Esta do por excelência.
Todo o Direito é concebido m o n istic a m e n te , sob forma de pirâ
m ide em degraus, e a c iv ita s m a x im a , que é o Estado Soberano, não
é outra cousa senão a ordem jurídica total.
D essa maneira, K elsen procura conciliar a tese do primado do Direito Internacional com a absoluta estatalidade do Direito e, à vis ta de seus princípios, é levado a dizer:
1.°) que, se o Direito é Estado (a lie s R e c h t is t S ta a tsre c h t), a
com unidade internacional não pode deixar de ser Estado;
2.°) que, se a soberania indica a exclusividade de um sistem a de normas, só há um ordenamento jurídico, o da com unidade interna cional soberana, em cujos quadros se contêm todos os Estados parti culares.
N a doutrina de K elsen, e da chamada E scola de Viena, por con seguinte, não há lugar para o conceito de soberania com o poder ou com o qualidade do poder. N ão se poderia, m esm o, segundo essas
prem issas, falar, a rigor, em s o b e r a n ia . A liás, a crítica que fere mais
precisam ente a doutrina exposta consiste em notar — com o faz o em inente Pagano — a im possibilidade de ser considerada com o von tade e responsabilidade uma “proposição lógica”, uma vez con cebi da a soberania com o o caráter próprio de um sistem a de normas e o sujeito com o a personificação de uma norma ou de um ordenamento. Para ser coerente, o sistem a kelseniano, concebendo a responsabili dade com o “referibilidade” a um centro de imputação, devia afastá- la da própria qualificação jurídica do lícito e do ilícito23.