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A dúvida, motivo do presente estudo, é antes de tudo a manifestação de um estado mental. Para estabelecer com clareza tudo quanto a ela concerne, será preciso analisá-la de todos os ângulos, situando-se sem- pre ali onde ela se manifesta e tendo presente que, antes que isso ocor- ra, quer dizer, antes que a dúvida apareça, deve ter existido um moti- vo, uma causa que provocou sua manifestação.

Vejamos: alguém pode saber muitas coisas e, na presença de um novo conhecimento, abster-se de incorporá-lo a seu acervo pes- soal enquanto não o tiver discernido e admitido como uma reali- dade. Esta dúvida, que chamaremos de científica, é uma atitude nobre, inspirada no alto propósito de fazer uma averiguação mi- nuciosa até alcançar o conteúdo real e permanente do que se in- vestiga, a fim de confirmar a verdade palpável de um conhecimen- to. A dúvida, nesse caso, é um ato preventivo da razão, porque preserva o entendimento de ser seduzido por miragens que, como se sabe, costumam dar a mesma sensação de realidade que aquilo que é verdadeiro dá. Algo similar é o que sucede quando se lan- çam novos empreendimentos, quando se planejam projetos ou tem lugar qualquer outra ideação da inventiva humana: é comum duvidar dos resultados ou do acerto com que foram propostos tais projetos ou empresas, pois sabemos muito bem que existe quase sempre um excesso de imaginação e que, no mais das vezes, a ilu- são nubla o senso da realidade.

Pois bem; uma coisa é a dúvida inteligente, e outra, a dúvida cética. A primeira é um aguilhão que impele a descobrir a verdade; que pre- dispõe o ânimo do ser a admitir como certo, em seu foro interno, inti-

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mamente, aquilo que põe em dúvida, enquanto investiga para confir- má-lo, seja como verdadeiro, seja como falso.

A segunda, a dúvida cética, anula qualquer raciocínio. Uma posição previamente assumida, ou um preconceito, impede qualquer elucida- ção a respeito daquilo que a motiva.

Duvidar, no sentido exato da palavra, não implica ignorância, mas sim um estado manifesto de incerteza que requer ser esclarecido para que surja o convencimento. Se nos é mostrado, a certa distância, um jarro de louça e nos é dito que contém leite ou vinho, faremos bem em duvidar que seja assim; mas se a pessoa que o afirma merece a maior boa-fé de nossa parte, faremos bem em admiti-lo. Apesar disso, não po- demos dizer que sabemos com certeza se o jarro contém leite ou vinho; será sempre necessário indicar o meio pelo qual se soube disso e, nes- se caso, seria um meio indireto. Porém, se fomos nós que vertemos o vinho ou o leite no jarro, se presenciamos quando foi enchido ou se, aproximando-nos, comprovamos o tipo de líquido contido nele, então poderemos dizer com absoluta segurança que o sabemos, e, sabendo- o, não haveremos de duvidar.

Chegamos, então, à conclusão – e já expressamos e afirmamos isto em outras oportunidades – de que é o saber o que elimina a dúvida. E é lógico pensar que quem mais tenha se preocupado em alcançá-lo seja quem menos duvide, e até se pode afirmar que as dúvidas que ainda possam preocupá-lo serão de outra índole, e permanecerão só o tempo suficiente para que ele encontre a explicação que haverá de substituí- las por convicções baseadas no saber.

A dúvida, para ser tal em sua acepção mais pura, deve justificar sua presença na mente como expressão de um estado incerto da reflexão, que se procura resolver na inteligência em busca de uma verdade que se anela conhecer. Em nenhum caso se pode justificar a dúvida estéril, pois que ela não busca luz alguma que aclare o entendimento.

A dúvida deve conter uma sadia aspiração de saber; ela haverá de ser construtiva, caso se queira edificar a verdade em si mesmo. Tem que ser como o adubo para a terra, o qual propicia a germinação das se-

mentes, convertendo-as em realidades tangíveis; porém, não se pode esquecer que isso não é o suficiente, se a terra não é cultivada adequa- damente para cada cereal, para cada planta. Para que a inteligência pos- sa semear o próprio campo com valiosos conhecimentos, primeira- mente se devem eliminar todas as dúvidas possíveis, a fim de não en- torpecer o livre desenvolvimento dos conhecimentos, que são, precisa- mente, as únicas árvores que, em vez de dar sombra, dão luz.

Vamos analisar, agora, outro tipo de dúvida, aquela que o é em apa- rência: a falsa dúvida, utilizada em geral com más intenções, sabendo que é verdade aquilo de que se diz duvidar, e que se põe de manifesto para lesar um prestígio, menosprezar uma obra ou censurar atos que mereceram o aplauso de todos ou a aprovação de muitos. Porventura não se põem em dúvida os atos de um governante, atribuindo-se a eles – e isto é muito habitual – intenções que não aquelas, em muitos casos sadias, que encarnaram os atos que são criticados? Não se duvida de quem, superando a si mesmo, mostra sinais evidentes de um cultivo moral, espiritual e intelectual muito maior do que tinha antes? Não se duvida até da sinceridade de um benfeitor, não obstante se haver rece- bido dele múltiplas provas de generosidade e indulgência? Não se du- vidou, infinitas vezes, que João ou Pedro fossem capazes de fazer tal ou qual coisa, mesmo depois de se terem notícias certas de que a fizeram? E assim, sucessivamente, não se chega até a duvidar da realidade da própria sombra?

O que é, por outro lado, a curiosidade, senão um dos disfarces com que se veste a dúvida para ocultar algo que intriga?

A diferença substancial que existe entre as diversas classes de dúvida é indiscutível, e pensamos que não será possível pôr isso em dúvida.