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Estados temperamentais – Perturbações psicológicas por ações reflexas

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No estudo que vamos apresentar, a investigação logosófica surpreen- deu inumeráveis casos similares que se foram reproduzindo em uns e em outros, segundo a intensidade das reações provocadas por certos estados temperamentais.

Sabe-se bem que, quando o ser está tranqüilo e em paz com sua cons- ciência, é por si só tolerante, e essa mesma placidez, que podemos consi- derar circunstancial, faz com que ele exteriorize certa benignidade, incli- nado de modo bonachão a desculpar erros e até abusos de confiança no que diz respeito a brincadeiras ou caçoadas nem sempre bem inspiradas.

Entretanto, parece que tudo isso vai deixando nele um sedimento corrosivo, que começa por manifestar, debilmente primeiro e com per- sistência depois, uma ardência interna que mais tarde aparece com to- das as características de um desses estados temperamentais que pron- tamente passam, sem nenhuma causa aparente que o justifique, do es- tado de placidez descrito ao de intolerância e irascibilidade. A simpa- tia que em seus bons momentos havia inspirado a seus semelhantes se converte em prevenção, mostrando-se, então, mais propriamente como um ser pouco simpático.

Apareceu nele o que se chama suscetibilidade.

Nada existe que predisponha mais às alterações do temperamento que a suscetibilidade, nem nada que, como ela, incite a cometer erros de apreciação e de juízo, que depois devem ser lamentados com bas- tante pesar. A suscetibilidade será tanto maior quanto maior for o vín- culo ou o afeto que une o ser, espiritual ou moralmente, ao próximo.

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O que ela primeiramente invade é a razão; é como se a embriagasse com "vinagre aromático". Para o ser que se encontra nesse estado, tudo é feito com o propósito de contrariá-lo ou acender sua ira. O amor-pró- prio, até esse momento reduzido ao indispensável para tornar possível a convivência com os demais, exalta-se a graus máximos, e sem sentir o ser se vai colocando numa posição cada vez mais inacessível, como se de golpe, ou pelo menos com extraordinária rapidez, houvesse gal- gado níveis hierárquicos que pretende fazer respeitar.

Mas, como ninguém rende culto àquilo que não existe para sua razão e seu sentimento, ocorre que tal atitude, lógica em quem não repara em suas posturas psicológicas, provoca um aborrecimento progressivo, um ressentimento que se aprofunda dia após dia, se algo imprevisível não sacode fortemente esse estado em que, com assombrosa facilidade, se subverte a ordem dos pensamentos e se sofrem constantes ataques de insensatez.

Quantas amizades leais e sinceras se perdem por essa causa! Quantas lamentações deixam como saldo!

Pelo exposto se apreciará, sem nenhuma dúvida, que o estado de sus- cetibilidade deve ser considerado similar ao de convalescença. Em am- bos os casos a debilidade predispõe ao ressentimento pela mínima cau- sa, se não são cumpridas as prescrições que, em tais circunstâncias, são feitas ao paciente, coisa que não acontece quando a saúde é boa.

A suscetibilidade é também, em muitos casos, uma espécie de con- valescença psicológica. Com freqüência se tem visto, por exemplo, que, após um estado de ressentimento entre amigos ou parentes, mesmo depois de efetuada a reconciliação, por um tempo o ânimo fica suscetível a um recrudescimento do estado anterior, receoso e desconfiado, o que já fez malograr, mais de uma vez, muitos esfor- ços de reaproximação afetiva ou espiritual.

Por outro lado, como vimos no princípio deste artigo, a suscetibili- dade aparece inesperadamente, como um elemento perturbador da boa harmonia. Dois amigos acostumados a trocar brincadeiras que ambos aceitam de bom grado, tolerando um do outro muitos incômodos com

a maior benevolência, a propósito de um incidente que não se reveste da menor importância suprimem, quase que bruscamente, tolerâncias e condescendências de todo tipo, e um ou outro pretende exigir de imediato de seu amigo um respeito e deferência que torna impossível a continuação desse trato amistoso e despreocupado que cultivavam.

É aí que se pode observar como, produzido o incidente que os dis- tancia, aparece a suscetibilidade fazendo o mais ofuscado ver uma du- pla intenção em todas as palavras, gestos ou atitudes do outro.

Nesse estado, tão suscetível se é que, ao que parece, até o próprio ar ofende e incomoda. Já vimos muitos vociferarem, enraivecidos, quando o vento lhes arranca o chapéu, como se o tivesse feito com o propósito de incomodá-los, ou quando uma porta se fecha de gol- pe, no preciso momento em que pensavam passar por ela, ou quan- do um redemoinho de vento deposita na roupa nova um monte de folhas secas cheias de terra.

A pessoa que se acha sob o ânimo da suscetibilidade sempre está, como se diz comumente, tendo visões. Em toda conversação que mantém, en- contra alusões que a exasperam; tudo quanto ouve ela toma para si, como se os demais não tivessem outra coisa a fazer do que ocupar-se dela.

Nessas condições, são feitas muitas coisas que, direta ou indireta- mente, molestam ou ofendem a outros; mas quem procede desse modo jamais pensa que é justamente ele quem dá motivo para que se fale de sua conduta, direta ou indiretamente, como algo inexplicável.

Existem casos em que o ser suscetível fica tão melindroso, que se tor- na quase intratável. Além disso, quem se acha nesse estado não com- preende que os demais, a começar por seus próprios amigos, retirem a confiança que antes lhe dispensavam, e a retiram precisamente porque, desde o momento em que adota, voluntária ou involuntariamente, es- sas maneiras ou atitudes discordantes, converte-se num ser distinto da- quele que eles costumavam tratar com familiaridade.

A suscetibilidade é parenta muito próxima da necedade. Ninguém pode oferecer o tributo de uma amizade sincera a quem, após fazer-se merecedor dela, se converte num insensato.

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Pois bem; se cada um se desse conta de quão prejudiciais são, para o conceito que possa merecer dos demais, esses estados de suscetibilida- de – geralmente temperamentais –, seguramente trataria de evitar ser considerado de uma maneira diferente daquela que, por suas condi- ções pessoais, deveria merecer.

Vista, pois, no estudo que acabamos de realizar, a anomalia psicoló- gica que a suscetibilidade apresenta, pensamos que quem ler estas li- nhas porá seu maior empenho em não apresentar aos demais uma ca- racterística tão cheia de desconfiança, capaz de ocasionar só desgostos e contrariedades, os quais melhor seria não ter.

O DESPOTISMO