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DA FILOSOFIA À PRÁXIS (1836-1843)

2.3 ESQUERDA HEGELIANA NA ALEMANHA (1840-1842)

Com 26 anos, Bakunin partiu de Premukhino, em junho, passou por São Petersburgo e chegou a Berlim, na Alemanha, nos fins de julho de 1840.77 Manteve-se na Alemanha até o início de 1843, compartilhando, durante algum tempo, a companhia dos irmãos Varvara e Pavel, vivendo inicialmente em Berlim e, a partir de abril de 1842, em Dresden.

A Alemanha do início dos anos 1840 vivia os reflexos do refluxo conservador posterior à derrota de Napoleão. Ela permanecia, comparativamente à França, um país politicamente arcaico, cujas estruturas impediam o progresso econômico e a modernização. De um lado, o atraso econômico começava a ser superado – sem que isso significasse redução da desigualdade social –, com medidas modernizadoras como o Zollverein, aliança aduaneira entre 39 Estados que estimulava a liberalização do comércio e as condições para a industrialização, assim como a construção das primeiras linhas ferroviárias e o desenvolvimento científico. De outro, o atraso político complicava tal superação, fomentando a constituição de movimentos nacionais e democráticos progressistas, compostos na maior parte por uma fração radicalizada da burguesia, que enfrentavam um setor conservador da nobreza fundiária, frequentemente apoiada pelos governos da ordem.

Todavia, naquele contexto, em certo sentido, todas as classes voltavam seus interesses à política de Estado: a burguesia buscava proteção à propriedade, os proprietários de terra reivindicavam garantias às más colheitas, e ambos queriam condições e proteção para a concorrência internacional; os profissionais educados desejavam condições para o desenvolvimento intelectual e aspiravam influir nos rumos do Estado; a burocracia defendia o parlamentarismo e suplantava as antigas elites dominantes; o proletariado buscava proteção, regulação do comércio e do trabalho; os trabalhadores rurais – antigos servos camponeses que, em sua mudança de condição, foram forçados a compensar os latifundiários, sem quaisquer condições para tanto –, além da proteção, ansiavam por reparação e terras.

A Alemanha não conformava, ainda, um bloco unificado de poder – era marcante a diferença entre a Prússia e os outros Estados germânicos. Estes últimos, fragmentados na unidade fictícia da Confederação Germânica, criada no Congresso de Viena de 1815,

77 A data de chegada em Berlim é 13 de julho (calendário juliano, vigente na Rússia) ou 25 de julho (calendário

defrontavam-se com uma Prússia que, mesmo politicamente atrasada, tinha um crescente poder e destacava-se como potência europeia. Com a ascensão de Frederico Guilherme IV ao trono prussiano em 1840, e a consequente frustração que se seguiu em vista de seu direcionamento economicamente antiliberal e politicamente conservador (especialmente quanto à liberdade de imprensa e ensino), viu-se fortalecido um setor tradicionalista que, além de defender a centralização política, considerava a Prússia detentora da missão histórica de governar os outros Estados alemães. (Guillaume, 1907a, p. vii; Angaut, 2007a, pp. 21-25; Leier, 2006, pp. 97-98)

Bakunin teve a empolgação de sua chegada a Berlim interrompida pela notícia da morte prematura de Stankevitch. Alguns dias antes, ainda no mês de sua chegada, conheceu Ivan Turgueniev – que, depois de alguns anos, elevar-se-ia ao panteão dos romancistas russos –, ao qual se vinculou intimamente e com quem iniciou sua inserção nos meios intelectuais e filosóficos alemães.78 (Coêlho, 1994, pp. 33-34) Seu primeiro ponto de contato com a intelectualidade germânica e imigrante deu-se na Universidade de Berlim, na qual se matriculou logo após sua chegada na cidade. Lá, assistiu às conferências do filósofo Karl Werder, de Schelling e do historiador Leopold von Ranke, que logo foram criticadas, em função de sua falta de profundidade e seu conservadorismo, alinhado à Alemanha daquele contexto. Tais impressões anunciavam, de certo modo, um sentimento relativo ao mundo acadêmico, que terminou se acentuando nos meses subsequentes ao início das aulas. A universidade mostrava-se incapaz de satisfazer as expectativas de Bakunin, que foram mais propriamente atingidas com as leituras e os laços pessoais do período, especialmente em Dresden.79

Pareceram-lhe mais proveitosos os estudos de Hegel, sem dúvida sua maior influência teórico-filosófica do período. Mas as leituras de outros autores complementaram sua formação: do filósofo francês Lamennais – em especial, a Politique à l’Usage du Peuple

78 A relação entre ambos contribuiu diretamente para a construção realizada por Turgueniev do personagem

principal de seu romance Rudin, de 1856. Parece certo que este foi, em alguma medida, inspirado em Bakunin, mas vale destacar, com base em Shatz (1992), que esse romance não deve ser considerado um documento capaz de contribuir com uma elucidação histórica ou psicológica de Bakunin.

79 Bakunin permaneceu em Berlim por um ano e meio: de julho de 1840 a fevereiro de 1842. Numa carta de 10

de fevereiro de 1842, ele encontra-se em Berlim e menciona que em uma semana irá para Dresden (Bakunin, 42005[c], p. 2); na carta seguinte, de 7 de abril de 1842, e nas posteriores, encontra-se definitivamente em Dresden. De acordo com outra carta de Bakunin (40061[c], p. 3), suas aulas começaram aos fins de outubro de 1840. Inicialmente estudou, com Werder, lógica e história da filosofia e, com outros professores, estética, teologia, física, esgrima e equitação. Assim, esses 15-16 meses, entre novembro de 1840 e fevereiro de 1842, foram, provavelmente, o período em que frequentou a Universidade de Berlim, tendo depois abandonando-a. Ainda assim, de acordo com Grawitz (1990, p. 92), Bakunin recebeu, pelo período em que permaneceu na universidade, um diploma, reconhecendo-o como vir juvenis ornatissimus [um jovem talentoso].

[Política para Uso do Povo], de 1839, cuja síntese progressista entre religião e política foi por Bakunin elogiada – e do economista alemão Lorenz von Stein – cujo livro Der Sozialismus und Kommunismus des heutigen Frankreich [Socialismo e Comunismo na França Contemporânea], de 1842, popularizou ideias de Fourier, Saint-Simon e Proudhon, e aproximou Bakunin do socialismo francês. (Bakunin, 41009[c], p. 1; Bakunin, 42019[c], p. 1) Vínculos relevantes daquela época foram, além do músico Adolf Reichel – cuja amizade foi preservada por Bakunin até o fim de sua vida –, a escritora romântica Bettina von Arnim – amiga de Goethe e Beethoven, cuja obra Bakunin tivera contato na Rússia e que, durante os anos 1840, era envolvida com a política progressista – e o poeta alemão revolucionário Georg Herwegh – cujos Gedichte eines Lebendigen [Poemas de um Vivo], publicados em 1841, corporificavam, em grande medida, o caminho trilhado pela esquerda hegeliana e pelo próprio Bakunin. (Carr, 1961, pp. 99-101, 116-117)

Desde a morte de Hegel em 1831, havia se formado na Alemanha uma tradição herdeira de seu pensamento que, alguns anos adiante, cindiu-se em duas partes. Um dos lados era conservador e contava com membros mais velhos que detinham cátedras universitárias e cargos no governo. O outro era progressista e composto por jovens estudantes e professores, especialmente da Universidade de Berlim. Ao primeiro grupo convencionou-se chamar “velhos hegelianos” ou “direita hegeliana”, e, ao segundo, “jovens hegelianos” ou “esquerda hegeliana”, para os quais a obra Das Leben Jesu [A Vida de Jesus], de David Strauss, publicada em 1835, foi um marco fundador. Ainda na Rússia, em março de 1839, Bakunin (39008[c], pp. 1-2) dizia à sua irmã Varvara: “não tenha receio do livro de Strauss” – o qual propunha uma compreensão histórica e não divinizada de Jesus, explicando o cristianismo na chave do mito de Cristo. Era, na interpretação de Bakunin, a “última e mais poderosa manifestação do ceticismo, e isso é bom”. Ele também explicava à irmã que os hegelianos alemães “dividiram-se em dois grupos, tendo um tomado partido de Strauss e o outro se oposto forte e solenemente a ele”.

Depois de Strauss, esse campo filosófico viu-se fortalecido pela produção filosófica de Ludwig Feuerbach e Bruno Bauer. Em 1841, o primeiro sustenta em Das Wesen des Christentums [A Essência do Cristianismo], que a essência da religião cristã é humana e propõe uma compreensão antropológica dos fundamentos teológicos. O segundo argumenta, em Die Posaune des jüngsten Gerichts über Hegel, den Atheisten und Antichristen [A Trombeta do Juízo Final contra Hegel, o Ateu e Anticristo], que a filosofia hegeliana é a práxis, a própria revolução, e que seu cerne é a destruição da religião. Na verdade, essa crítica

à religião forjava as bases de uma crítica política, na medida em que colocava em xeque o direito divino, um dos principais fundamentos sobre os quais repousava o poder da aristocracia germânica. Ela estabelecia uma relação indissociável entre religião e política, semelhantemente àquela sustentada por Bakunin (1981a[e], p. 432) no “Prefácio” de 1838, no qual destacava que “onde não há religião, não pode haver Estado”, e que “a religião é a substância, a essência da vida de qualquer Estado”.

Em seu período na Alemanha, Bakunin, sob a profunda influência de Hegel – conforme sua própria recordação, na “Confissão” de 1851, ele diria que, à época, “estudava as ciências, especialmente a metafísica alemã, na qual

mergulhei exclusivamente, quase até a loucura; dia e noite eu não via outra coisa senão as categorias de Hegel” (Bakunin, 1976b[e], p. 43)80 – e instigado pela esquerda hegeliana, aprofundou o caminho iniciado na Rússia, no sentido de dar à filosofia abstrata um conteúdo político. Para tanto, foram-lhe determinantes as leituras de Edgar e Bruno Bauer, assim como de Feuerbach – ao qual Bakunin (2017f[e], p. 439) referir-se-á, nos anos 1870, como “o pensador mais notável e mais original de toda a Escola hegeliana”; sendo também marcante o contato estabelecido com Arnold Ruge.81

Ruge havia sido responsável, entre 1838 e 1840, pela publicação dos Hallische Jahrbücher [Anais de Halle], principal órgão da esquerda hegeliana, que Bakunin conhecera ainda nos tempos de Moscou. Sob a repressão de Frederico Guilherme IV, Ruge havia se mudado para Dresden, na Saxônia, dando continuidade à publicação, agora sob o título de Deutsche Jahrbücher [Anais Alemães]. Bakunin (41010[c], p. 1) conheceu-o em 1841, referindo-se a ele como um “homem interessante, notável” e destacando sua abordagem materialista da vida, que fazia dele “hostil a tudo, sem exceção, que tenha a menor aparência

80 Para as citações da “Confissão”, utilizei como base referencial a tradução em espanhol (Bakunin, 1976b[e]).

Entretanto, muitas vezes cotejei-a com a tradução francesa e, em alguns casos, com a versão original em russo, ajustando o que julguei necessário (Bakunin, 2000a).

81 Conforme demonstra Berthier (2008, pp. 203-209), Max Stirner (pseudônimo de Johann Kaspar Schmidt),

também membro da esquerda hegeliana, não teve qualquer influência sobre Bakunin, nos anos 1840 e mesmo depois. Stirner – que publicou, em 1845, o livro Der Einzige und sein Eigenthum [O Único e sua Propriedade], e que foi, aos fins do século XIX, requentado pelo individualista John Henry Mackay, com a pretensão equivocada de incorporar-lhe ao cânone anarquista – possui, em todos os escritos e cartas de Bakunin, apenas uma menção (no livro Estatismo e Anarquia), sem qualquer relevância. O argumento acerca da inexistente vinculação entre Stirner e Bakunin deve-se a Engels, que a promoveu em seus escritos e cartas visando a desqualificar seu adversário político.

de misticismo”. Entre fins de 1841 e início de 1842, Bakunin, ainda alocado em Berlim, visitou Dresden algumas vezes, aproximando-se de Ruge, e decidiu, em seguida, dar um novo rumo à sua vida. Resolveu abandonar a universidade, o projeto de tornar-se professor e mesmo de retornar à Rússia – mudou-se para Dresden, na expectativa compartilhar a presença do novo companheiro. (Grawitz, 1990, pp. 96-103)

Em outubro daquele ano, Bakunin publicou “Die Reaktion in Deutschland: Fragment von einem Franzose” [A Reação na Alemanha: fragmento de um francês] nos Anais Alemães de Ruge, assinando-o com o pseudônimo de Jules Elysard. “A Reação na Alemanha” marca a passagem de Bakunin da reflexão teórico-filosófica acerca da práxis para um pensamento propriamente político com vistas à prática. Pela primeira vez, ele discute um tema histórico e concreto: a Europa do início dos anos 1840. Nesse escrito, Bakunin elabora uma teoria da revolução, que se ancora numa dialética negativa. Explicando essa teoria, ele expõe os fundamentos históricos e lógicos dessa dialética e caracteriza o momento histórico em questão: trata-se, conforme argumenta, de um momento de crise revolucionária e decomposição do velho mundo. Ao refletir sobre as forças em jogo, sinaliza a existência de um conflito entre dois polos contraditórios – um positivo (ordem/reação), e outro negativo (revolução/democracia), ou “partido reacionário” e “partido democrático” –, os quais são caracterizados e analisados em seus traços fundamentais e na relação que estabelecem entre si. Bakunin avança, ainda, em perspectiva normativa, às tarefas políticas do partido democrático, objetivando consolidar sua vitória nesse conflito. O famoso e polêmico trecho que encerra este escrito – “a paixão da destruição é, ao mesmo tempo, uma paixão criativa” (Bakunin, 2007a[e], p. 136) – evidencia a necessidade de destruir o velho mundo para que o novo seja edificado. Ou seja, uma preponderância do negativo – ou, vitória do partido democrático – que subsidia toda essa concepção de dialética.

O impacto desse escrito foi enorme. Ele circulou amplamente nos meios progressistas europeus e alçou Bakunin, em função da autoria do artigo logo ter sido desvendada, à posição

Capa da edição dos Anais Alemães em que foi publicada a primeira parte de “A Reação na Alemanha”, 1842

de um dos mais destacados hegelianos de esquerda daquele momento.82 (Carr, 1961, p. 116; Grawitz, 1990, p. 104; Leier, 2006, p. 104) Mas as possibilidades políticas na Alemanha eram bastante limitadas e a repressão mostrava-se intensa naquele final de 1842. Os Anais Alemães foram fechados pelo governo, Ruge seguiu para Paris, objetivando continuar seu trabalho editorial com Marx, e Herwegh foi expulso da Prússia em função de uma desavença com o rei.

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