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“A VIDA E AS IDEIAS DE BAKUNIN MERECEM SER COMPLETAMENTE REEXAMINADAS”

1.5 SÍNTESE BIBLIOGRÁFICA

Num balanço da bibliografia sobre Bakunin, pode-se dizer que, dentre marxistas e liberais, o revolucionário russo tem recebido um tratamento bastante problemático. Em ambos os casos, as abordagens são profundamente ideologizadas e possuem uma intencionalidade política. Na maioria dos casos, elas funcionam, conscientemente ou não, para desqualificar Bakunin – e, com isso, o anarquismo –, e quase sempre se distanciam da seriedade científica ou dos enfoques mais adequados para uma compreensão de sua vida e obra.

Como bem pontuado por Saltman (1983, p. 16), “esses autores [marxistas e liberais] estavam mais interessados em descartar os argumentos de Bakunin por razões políticas do que em avaliar seu pensamento para buscar contribuições ao campo da teoria ou da história do

57 Os autores e temas abordados, relacionando-se sempre a Bakunin, são os seguintes: Jan de Freitas e Victor

Soliz, dois trabalhos sobre o conceito de liberdade; Felipe Corrêa e teoria do Estado; Ricardo Rugai e organização política; Selmo da Silva e greves; Ivan Oliveira, Luciana Brito e Paulo Marques, três trabalhos sobre a concepção de educação; Márcio Leme, Bruno Gandin e Gustavo Pose, dois trabalhos sobre concepção de ciência; Jonathan Nascimento e religião/antiteologismo; Marcelo Mazzoni e Marcus Faria e movimento operário na Suíça; José da Silva, Marcos Ataídes e Renato Coelho e herança na militância contemporânea. Memórias do Colóquio Internacional Mikhail Bakunin e a AIT [https://coloquiobakuninait.wordpress.com/memorias].

socialismo”. Não deixa de surpreender, nessa direção, que acadêmicos notáveis como Hobsbawm e Berlin, ao tratar do anarquismo e de Bakunin, demonstrem uma completa falta de cientificidade.

No caso dos marxistas, com exceção dos russos dos tempos da Revolução de 1917, há apenas repetição das afirmações de Marx e seus partidários, reprodução de documentos por eles escritos ou mesmo das linhas partidárias ideologicamente definidas; por certo, não leram Bakunin e não buscaram os contrapontos e as fontes alternativas, as informações contextuais, e não questionaram as ortodoxias partidárias. Ou seja, entre os marxistas, apesar da reivindicação do “socialismo científico”, normalmente não se fez ciência sobre Bakunin e o anarquismo, mas política – produziu-se ideologia. Isso também ocorreu, ainda que de modo menos grosseiro, no caso de Steklov, que, exaltando Bakunin, buscou, por meio de uma distorção interpretativa, incluí-lo no cânone do marxismo-leninismo.

No caso dos liberais, com exceção de Pyziur, o pensamento político de Bakunin foi praticamente deixado de lado; e, mesmo no que tange à sua vida, os estudos priorizaram, em todos os casos, sua personalidade e seus aspectos pessoais. Mesmo contando com certas qualidades59, os estudos liberais em geral incorrem em problemas metodológicos que subsidiam suas conclusões equivocadas ou profundamente limitadas. O foco na personalidade sui generis de Bakunin e em seus traços psicológicos – os quais, segundo esses autores, teriam sido marcados por questões como impotência, complexo de Édipo / amor pela irmã, que sequer possuem comprovação histórica e parecem bastante inverossímeis60 –, é insuficiente para contextualizar e explicar o pensamento e a trajetória de Bakunin, principalmente em seus aspectos políticos, que deram a ele sua envergadura histórica.

Brian Morris assim sintetiza suas conclusões acerca das abordagens marxistas e liberais de Bakunin:

Os marxistas o repudiam, acusando-o de ser um romântico iludido, com propensão para a destruição e as sociedades secretas e desprezam seu alegado “despotismo elitista”. Os acadêmicos liberais, por outro lado, continuam a achar Bakunin fascinante – mas apenas como um objeto para estudos em psicologia utópica ou freudiana. (Morris, 1993, p. vii)

59 Dentre as quais ressalto: em Carr, a pesquisa rigorosa da trajetória de Bakunin (datas, locais, contatos etc.) e a

consulta do material russo; em Pyziur, a abordagem do pensamento político e a discussão de alguns de seus escritos políticos; em Kelly e Mendel, o estudo aprofundado da correspondência.

60 Cf., por exemplo, o artigo “Mikhail Bakunin and his Biographers: The Question of Bakunin’s Sexual

Impotence” [Mikhail Bakunin e seus Biógrafos: a questão da impotência sexual de Bakunin], de Marshall Shatz, que discute aprofundadamente o argumento da impotência e conclui que ele é uma falácia. (Shatz, 1988) Com relação ao romance entre Bakunin e sua irmã Tatiana, posso afirmar que, por meio de uma análise pormenorizada da correspondência entre ambos de 1836 – ano que Carr (1961, pp. 35-36) e outros autores sustentam ter ocorrido o tal romance –, não há qualquer evidência de que a essa “paixão proibida” tenha existido.

Parece pertinente apontar que, ainda que profundamente opostos em termos de leitura e projeto de mundo, quando enfocaram Bakunin, marxistas e liberais mostraram aspectos de congruência.

Conforme apontou Saltman (1983, pp. 3, 7, 11), ambos os tratamentos oferecidos a Bakunin, ao retratá-lo como “uma figura paradoxal”, destacaram o “curso extremamente contraditório e inconsistente” de suas ações, de seu pensamento e da relação entre ambos. Por esse motivo, o autor agrupa as abordagens marxistas e liberais em um único campo, que intitula “Escola do Paradoxo”, a qual concorda que, “em última análise, o pensamento político de Bakunin foi teoricamente inconsistente e contraditório, sem méritos intelectuais ou políticos sérios”. Além disso, reconhecendo os problemas e dificuldades para o tratamento do corpus bakuniniano, assim como algumas imprecisões conceituais de Bakunin, Saltman aponta três razões que explicam parte considerável dos problemas desses estudos: 1.) “a falsa imposição de uma coerência teórica de vida toda”, visto que Bakunin modificou suas concepções algumas vezes e só se tornou anarquista no final da vida; 2.) “a atribuição incorreta da linhagem intelectual de Bakunin”, atribuindo a ele influências inexistentes, como a de Stirner, e minimizando ou ignorando outras que foram relevantes, como a de Ludwig Feuerbach; 3.) “a solução psico-histórica”, cujos limites foram apontados e que se somam ao “problema adicional da evidente falta de familiaridade com os manuscritos de Bakunin”. A isso se poderia, ainda, adicionar: 4.) a fundamentação em obras ou dados que são hoje considerados ultrapassados.

Foi dentre os autores simpáticos ao anarquismo que, com a reconstituição do corpus bakuniniano, se produziram os estudos mais sérios e cientificamente embasados nos documentos de Bakunin e em sua história. Contudo, esse campo também não está isento de problemas. Como evidência disso, podem-se mencionar, por exemplo, as conclusões da biografia de Brupbacher (que enfatizam o despotismo e as contradições do revolucionário russo, em consonância com a Escola do Paradoxo); e ainda outros, que aparecem em alguns estudos desses autores: as omissões arbitrárias de aspectos incômodos ou condenáveis de Bakunin (como sua defesa da ditadura no período pan-eslavista e seu antissemitismo no período anarquista) ou de informações preciosas visando a fins políticos (como no caso da existência da Aliança secreta depois de 1868). Mesmo assim, esse campo é, decerto, aquele que melhor serventia possui para uma discussão séria da vida e da obra de Bakunin, proporcionando condições para um diálogo crítico frutífero.

Quando se analisa a produção brasileira, é possível dizer que, ao contrário do que em outros países, por aqui a abordagem de Bakunin foi, quase exclusivamente, realizada por autores simpáticos, do campo acadêmico e militante.

No que diz respeito aos estudos biográficos disponíveis em português, Norte (1988) é um estudo introdutório e Brupbacher (2015) possui vários problemas, e mesmo com o aporte de Barrué não pode ser tido como um estudo satisfatório da trajetória de Bakunin. As sínteses biográficas – como a minha própria “Introdução” ao volume de cartas publicado pela editora Hedra (Corrêa 2010a), e também a primeira parte de Introdução ao Pensamento Político de Bakunin, de Alex B. Bonomo (Bonomo, 2017) – são bem sucintas e pouco aprofundadas. Portanto, é possível dizer que, hoje, no Brasil, não há referências historiográficas de maior fôlego e profundidade acerca da trajetória política e intelectual de Bakunin. Ademais, os estudos que se debruçaram sobre sua produção intelectual dos anos 1830, 1840, 1850 e início dos 1860 são raríssimos, com apenas duas exceções mais substanciais (Barrué, 2015b, 2015c). Quando se observam os escritos em português que discutem aspectos do pensamento anarquista de Bakunin, constata-se que a produção dos anos 1980 e 1990 é quase inexistente – há, também aqui, duas exceções mais substanciais (Tragtenberg, 1988a, 1988b). Foi nos anos 2000 que esses estudos começaram a vir a lume e, nos anos 2010, que a grande maioria deles foi produzida. Tais escritos vêm acompanhando o crescimento das traduções da obra bakuniniana ao português e o interesse no anarquismo em geral e em Bakunin em particular. Além disso, eles possuem um traço característico: apesar de, via de regra, serem bons estudos, não são aprofundados. Todos eles têm traços introdutórios, ainda que se deva dizer que uns são muito melhores que outros. Temas como educação e ciência, conceito de liberdade, conflitos com Marx e o marxismo, política e Estado vêm recebendo a maior atenção. Em termos de fontes, observa-se uma limitação às traduções de Bakunin ao português e alguns comentadores; poucos escritos e cartas em outros idiomas, assim como comentadores em línguas estrangeiras vêm sendo concretamente utilizados.

1.6 FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS: PARA UMA HISTÓRIA DO PENSAMENTO

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