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DA FILOSOFIA À PRÁXIS (1836-1843)

2.5 A TEORIA POLÍTICA BAKUNINIANA ENTRE 1836 E

2.5.3 Segundo período hegeliano (1841-1842)

Entre 1841 e 1842, Bakunin, na Alemanha e em seu segundo período hegeliano, elabora, sobretudo em “A Reação na Alemanha”, de 1842, uma continuidade radicalizada de seu pensamento político e filosófico. Nesses anos, sua principal referência intelectual continua sendo, indiscutivelmente, Hegel – cujos conceitos de razão e realidade permanecem centrais, e aos quais se soma um terceiro, revolução –, que é por ele lido criticamente e complementado sob a influência dos jovens membros da esquerda hegeliana, em especial Ruge, Bauer e Feuerbach.

Nesse período, Bakunin deve ser considerado um jovem hegeliano. Contudo, tanto em comparação com Hegel quanto com a própria esquerda hegeliana, ele não pode ser tido como um ortodoxo. Em relação a Hegel, continua o movimento de radicalização alicerçado nas ideias do mestre e, mesmo que sem grandes rupturas, as primeiras críticas abertas a ele são feitas. Em relação aos jovens hegelianos, Bakunin compartilha com eles um conjunto de ideias, mas também termina indo além, em particular no que diz respeito aos desdobramentos de seu realismo, que são mais evidentes na discussão sobre a relação entre teoria e prática.

Para ele, a questão central desse período e sua maior contribuição no campo da teoria política é a elaboração de uma teoria da revolução, que permite, ao mesmo tempo, analisar a história social e política, passada e presente, e desdobrar dela uma estratégia revolucionária.

Como elemento essencial dessa teoria, ele formaliza uma dialética negativa, que aprimora seu método crítico-dialético, subsidia sua primeira análise política – acerca dos conflitos que se passavam na Europa dos anos 1840 entre os inimigos e defensores da liberdade – e indica os meios para atuação daqueles que, como ele, se entendiam partidários da liberdade e do princípio democrático.

No campo da dialética, a maior mudança refere-se ao papel do elemento negativo da contradição. No período anterior, Bakunin preconizava a reconciliação, na qual o passado era retido como momento necessário e integral. Distintamente, nesse período, a mediação exterior é refutada, em favor de uma preponderância do negativo, na qual o passado é absolutamente negado em função de um novo futuro. A negação – para ele o motor da história e o impulso vital da vida – destaca-se ainda mais como critério essencial e pré-requisito necessário para a ação humana racional que emancipará o homem. (Del Giudice, 1981, pp. 391-392, 413) Na análise da política europeia, a contradição fundamental entre partido reacionário e partido democrático é dissecada, permitindo um entendimento mais ampliado das forças em jogo e o estabelecimento de linhas programáticas para a ação, por parte daqueles que pretendiam radicalizar essa contradição e garantir o estabelecimento do princípio democrático ou princípio da liberdade.

De 1838 em diante, nota-se uma ênfase crescente no realismo, que tem efeitos consideráveis. No “Prefácio”, Bakunin propõe, em termos filosóficos, uma reconciliação com a realidade. Em “Da Filosofia”, ele reflete, também nesses termos, acerca do processo de conhecimento e mudança da realidade. Em “A Reação na Alemanha”, adentrando o campo da política, ele analisa teoricamente questões concretas da realidade europeia e preconiza meios para a intervenção naquele jogo de forças – prepara o terreno para a prática e a ação efetiva. O subtítulo desse escrito (“fragmento de um francês”) e o pseudônimo francês que subscreve o texto (Jules Elysard) refletem com clareza o interesse de Bakunin pela filosofia política francesa e por sua concepção de prática revolucionária e democrática. Inclusive a forma desse escrito explicita essa intencionalidade, pois é bem mais clara e concreta que a dos textos precedentes. Os desdobramentos subsequentes dessa ênfase parecem lógicos: tratar-se-á de assumir cada vez mais o primado da prática e de aproximar-se progressivamente de uma prática política real e concreta.

Em termos filosóficos, esse movimento significa, entre 1841 e 1843, um distanciamento do idealismo objetivo mais ortodoxo, em favor de um realismo voluntarista, que o próprio Bakunin reconhece como parte do campo idealista e cujas consequências são

determinantes. Somado à mencionada concepção negativa de dialética, esse realismo implica que a tentativa prévia de conciliar contrários – ideal e real, sujeito e objeto, pensamento e ser, teoria e vida, filosofia e prática, indivíduo e comunidade, vida/mundo interno e vida/mundo externo – ceda cada vez mais lugar à priorização dos segundos elementos em relação aos primeiros. Progressivamente, a realidade concreta passa a diferenciar-se do conhecimento sobre ela e a adquirir autonomia em relação à percepção do sujeito do conhecimento. A realidade vai adquirindo mais importância do que as construções teóricas e abstratas, mesmo aquelas que a têm por objeto. Objeto, ser, vida, prática, comunidade e vida/mundo externo passam a ter mais relevância que sujeito, pensamento, teoria, filosofia, indivíduo e vida/mundo interno. Na esteira da filosofia da ação, por exemplo, o conceito de unidade entre teoria e prática passa a dar lugar a uma preponderância da prática em detrimento da teoria, a qual marcará o fim desse período, quando Bakunin desloca-se da discussão teórica sobre a prática para a prática concreta.

Entretanto, não se trata, ainda, de uma ruptura com o idealismo no sentido do materialismo. Se Bakunin intensifica sua crítica ao subjetivismo e acentua os aspectos realistas de seu pensamento, isso não se faz por meio da ênfase nos fundamentos materiais da natureza e da sociedade. Faz-se, distintamente, na direção de uma realidade que é concebida, como explica Del Giudice (1981, p. 389), “em termos da personalidade humana que se expressa concreta e praticamente por meio da livre ação no processo histórico”. Para ele, essa “afirmação do conceito de personalidade deu uma expressão concreta aos papéis que a ação e a vontade teriam na emancipação da pessoa humana”.

A ideia da personalidade humana individual e concreta, que havia superado as limitações de seu “imediatismo” e afirmando-se por meio da ação livre e criativa, constituiria a ponte pela qual Bakunin alcançaria o campo da política e da atividade revolucionárias. A personalidade livre, retirada dos confins do determinismo histórico hegeliano e vinculada por Bakunin aos conceitos de realidade, vontade e ação, constituiu o fator-chave nessa transição gradual. (Del Giudice, 1981, p. 388)

A realidade é assim compreendida como resultado histórico da ação voluntária e prática das pessoas dentro de certos limites da necessidade. Se essa realidade decerto não é concebida em termos deterministas, ela também não é entendida como resultado puro da vontade humana. Bakunin (1976a[e], p. 106) enfatiza, nesse sentido: “Em geral, não reconheço [à contingência] uma influência real sobre a história; a história é um desenvolvimento livre, mas também necessário, do [espírito] livre”. Assim, o voluntarismo bakuniniano desses anos afirma-se sobre a noção de que o processo histórico impõe certos

limites à vontade humana na conformação da realidade, ainda que a vontade tenha enormes possibilidades. A personalidade é conceituada como a unidade entre individualidade e realidade efetiva, totalidade social. Não se trata da individualidade pura, e muito menos de egoísmo, mas de um ser humano concreto e racional que expressa sua vontade por meio da ação prática para efetivar o conhecimento da realidade e a realização da liberdade. A ação é entendida como a própria vida, como a tentativa prática, levada a cabo por meio da vontade, de efetivar o conhecimento da realidade e a realização da liberdade. Finalmente, a vontade é conceituada como liberdade, capacidade de produzir efeitos históricos por meio da negação ativa e da ação, seguindo propósitos racionais; trata-se do motor, do combustível da ação.

Ao discutir esses conceitos, Bakunin reivindica a necessidade de tornar-se “completamente livre da embriaguez teórica” de base exclusivamente abstrata, e de ver “a realidade em toda sua lamentável nudez”. Para ele, é crucial “passar da esfera indeterminada da fantasia à realidade, [...] na qual ele [o partido negativo] deve viver, sofrer para, por fim, triunfar”. A realidade existente deve ser compreendida como de fato é, visto que ela constitui o terreno histórico para a efetivação da liberdade. “Somente a realidade pode nos satisfazer”, porque “somente a realidade é a verdade forte e enérgica, ou seja, verdadeira. Todo o resto é [...] idealismo imbecil”. Ao reivindicar um idealismo mais realista, ele entende que “o idealismo é santo e verdadeiro apenas porque é o idealismo de um mundo vivo, real”. E que o verdadeiro idealista é aquele que “se lança apaixonada e audaciosamente nas ondas da vida real”, realiza “seu mundo interior no amor vivo e numa obra real” e submete “seu sábio mundo ideal à simplicidade evangélica da realidade”. (Bakunin, 42026[c], pp. 1-2; Bakunin, 42016[c], pp. 2-3)

Ele define personalidade no jargão religioso, enfatizando que “o verdadeiro eu é a personalidade do homem, uma personalidade que não pode ser pecadora e nem enganosa, porque ela é a unidade imediata do indivíduo com Deus”, “a diversidade original de cada homem em Deus”. A personalidade difere da “individualidade justamente pelo fato de que ela [a personalidade] é a encarnação original de Deus na individualidade de cada um”. Todo homem deve “purificar-se definitivamente de todo egoísmo individual [...] para alcançar uma personalidade radiosa e imortal”. Visto que essa imortalidade “não deve ser uma exigência do egoísmo, da individualidade doentia”, mas da “afortunada autoconsciência”, “a individualidade deve passar, desaparecer, a fim de tornar-se personalidade; não uma personalidade em geral, mas essa personalidade indivisa”. Para ter condições de expressar sua vontade por meio da ação, num sentido concreto, “as personalidades dos seres humanos

devem ser absolutamente autônomas e livres”. (Bakunin, 40024[c], pp. 3-5; Bakunin, 41002[c], p. 3; Bakunin, 42001[c], p. 7)

Quando Bakunin discute “as ações práticas e livres do homem”, ele o faz considerando que “viver é ser, viver é agir verdadeira e ativamente”, de modo que “só a ação é a vida”. E agir implica “não ficar nas palavras”, mas “provar praticamente que se compreende e que se ama a vida”. A vida “não está acessível à teoria abstrata, ao cálculo impassível, porque ela é mais que uma teoria”, ela “é a ação suprema, o livre desencadeamento da santa paixão”. E “só se conhece a ação pela ação, a liberdade pela liberdade e o amor pelo amor. Conhecer a liberdade não significa apenas pensar, mas também viver; e a vida é mais que pensamento: a vida é a miraculosa realização do pensamento”. (Bakunin, 43012[c], p. 3; Bakunin, 42010[c], p. 1; Bakunin, 43015[c], pp. 1-2)

Sustenta ele, ainda, que a “vontade feroz e religiosa” possibilita “superar todas as dificuldades”, na medida em que uma existência determinada pode ser modificada “conforme minhas ideias e minhas crenças”. Assim, a vontade continua a ser definida, da mesma maneira que no período anterior, como negação ativa e racional: “A vontade é a força infinita da autonegação de si na verdade, a negação de todos os instintos estreitos que repugnam a natureza do homem e do pensamento finito contrário à verdade”. (Bakunin, 43010[c], p. 3; Bakunin, 42002[c], p. 2; Bakunin, 40057[c], p. 3)

Em termos políticos, Bakunin adota, entre 1841 e 1843, como fundamento político- doutrinário o radicalismo francês. A adesão a esse tipo de republicanismo, segundo entende, não significa necessariamente uma ruptura com a via alemã (teórica, idealista) em favor da via francesa (prática, materialista), como argumentado por Angaut (2007a, pp. 13-14), mas, mais precisamente, o entendimento de que a tradição revolucionária e socialista da França nada mais fazia que colocar em prática as ideias do idealismo filosófico da Alemanha, como comprova Del Giudice (1981, pp. 384-386, 405-408). Trata-se, portanto, de uma fusão ou continuidade entre as vias francesa e alemã, segundo uma compreensão de que o radicalismo francês é a expressão do idealismo alemão em forma de práxis. Com isso, o hegelianismo bakuniniano converte-se não apenas em ferramental para análise da realidade, mas também em instrumento político-doutrinário e filosofia ajustada à práxis.

Esse radicalismo republicano tem por objetivo promover a efetivação das promessas da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade –, que, segundo sua compreensão, não haviam se estendido ao conjunto da humanidade, em especial aos trabalhadores e pobres. Em Bakunin (1976a[e], p. 108), esse objetivo sintetiza-se na

concretização de um princípio: “a igualdade dos homens realizando-se [na] liberdade”. É nesses anos em geral e em “A Reação na Alemanha” em particular que Bakunin (1976a[e], p. 127) manifesta, pela primeira vez, a concepção de que o “povo” – no sentido de classe dominada-explorada, dos trabalhadores e pobres em geral –, cujas reivindicações que se radicalizavam culminariam nas revoluções de 1848, será sujeito destacado nesse processo revolucionário.

O espírito santo da liberdade e da igualdade, o espírito da pura humanidade, [...] foi revelado à humanidade pela Revolução Francesa em meio a raios e trovões, e [...] foi semeado por toda parte na tempestade das guerras revolucionárias como germe de uma nova vida. A Revolução Francesa é o início de uma nova vida; muitos são tão cegos que pensam ter vencido e domesticado seu poderoso espírito. Como será terrível o despertar desses infelizes! Não, o drama revolucionário ainda não acabou. Nós nascemos sob a estrela da revolução; vivemos e nos movemos sob sua influência e também morreremos, todos aqueles que hoje vivemos, sem exceção, sob sua influência. Estamos às vésperas de uma grande transmutação histórica mundial, às vésperas de uma nova luta, ainda mais perigosa, porque ela não terá mais um caráter simplesmente político, mas de princípios, religioso. Não devemos nos iludir: será nada menos que uma nova religião, a religião da democracia, aquela que, sob sua velha bandeira com o lema “Liberdade, igualdade, fraternidade”, travará sua nova luta, uma luta até a morte. (Bakunin, 2007b[e], pp. 158-159)

Como se pode notar, permanece, nesses anos, o jargão idealista e religioso, ainda que bem menos enfatizado. As referências a Deus e ao divino são muito mais escassas, distintamente das referências ao espírito, que são ainda constantes. Quando aparecem, elas possuem sentido similar àquele do período passado, desde que entendidas as mencionadas modificações que correspondem à passagem do idealismo objetivo ao realismo voluntarista.

Entre 1841 e 1842, Bakunin acompanha o movimento de outros jovens hegelianos, como Ruge, que passam de maneira mais evidente da crítica religiosa à crítica política. Bakunin (41009[c], p. 3), em tal caminho, equipara religião e política, escrevendo que “a política é a religião, e a religião é a política”, sendo a liberdade o objetivo de ambas. A política é interpretada como uma nova religião, prática, capaz de subsidiar a práxis em direção ao futuro (relacionando-se, assim, com a concepção anterior de religião como vida sociorreligiosa efetivada); e a religião é fonte de um princípio universal e modo que ele pode penetrar na vida, subsidiando a criação de uma nova totalidade, uma “Igreja [...] da humanidade livre”. A passagem da teoria à prática é interpretada como conversão.

Ele declara-se inimigo das Igrejas e do cristianismo existentes, reivindicando uma religião da liberdade, da igualdade, da democracia, e rediscutindo a relação entre política e

religião. Defende um “verdadeiro cristianismo”, como realização efetiva da liberdade e sinônimo de razão, que está em completa identidade com uma política de liberdade e democracia. (Angaut, 2007b, pp. 43-47; Del Giudice, 1981, p. 411)

Bakunin reconhece que o homem

só toma consciência de Deus numa ação livre, numa liberdade ilimitada. Deus é a liberdade, e só se toma consciência da reconhecida liberdade pela liberdade. A liberdade é a atividade suprema que produz a si mesma, que cria a si mesma. A pessoa de Deus, assim como a imortalidade, a dignidade do homem – e, em minha opinião, tudo isso é indissociável –, só pode ser conhecida praticamente, por uma ação livre, produzida e frutificada pelas profundezas originais de um espírito individual, visto que o próprio Deus nada mais é que a ação milagrosa de si. [...] Colocar constantemente Deus em movimento em si: tal é a natureza da ação. Essa ação – e apenas ela, essa ação de consumir-se em si – representa o orgulho supremo e a maior humildade do homem diante de Deus, o coração simples e inocente, a realização translúcida da pessoa eterna do homem. (Bakunin, 42014[c], pp. 3-4)

Em tais termos, é a ação livre da pessoa, a qual colocou em si o movimento de Deus, que permite a consciência de Deus, da liberdade. Ou seja, é somente por meio da ação da personalidade que se pode conhecer a liberdade e, com isso, agir para efetivá-la na realidade por meio da vontade.

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