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ALIENAÇÃO VERSUS RECONCILIAÇÃO COM A REALIDADE E UNIDADE TEORIA-PRÁTICA (1837-1840)

4.2 REALIDADE E TEORIA-PRÁTICA

A solução dialética ao problema da alienação é a “reconciliação com a realidade, em todos os seus aspectos e em todas as esferas da vida” – essa “é a grande questão de nosso tempo”. O século XIX, “em contraposição ao século passado” [XVIII], contava, destacadamente a partir das contribuições de Hegel, com um esforço no sentido do abandono das “particularidades isoladas” e da retomada do “conhecimento vivo, universal”; oferecia, com isso, as condições para essa reconciliação. (Bakunin, 1981a[e], p. 439; Bakunin, 1981b[e], p. 448)

A reconciliação com a realidade é a integração entre homem e realidade e a unidade entre teoria e prática. Trata-se, portanto, de uma ruptura com a alienação – e, assim, com a abstração, a ilusão, a finitude e a particularidade, – e de um encontro com a realidade, a infinitude, a universalidade-totalidade. Reconciliação e unidade que implicam, nesse sentido, unidade dialética entre ideal e real, sujeito e objeto, ser e pensamento, teoria e vida, filosofia e prática, indivíduo e comunidade, vida/mundo interno e vida/mundo externo. Ou seja, por meio da “dialética todo-poderosa do desenvolvimento histórico do espírito”, pode-se adequadamente proceder à reconciliação com a realidade, ou seja, essa “unidade racional e indissolúvel do universal e do particular, do infinito e do finito, do único e do múltiplo”. (Bakunin, 1981b[e], p. 449) Na chave da passagem do idealismo subjetivo ao idealismo objetivo, o que se reivindica é a passagem do abstrato ao concreto, da ilusão à verdade absoluta – é o alcance do universal concreto. É, ainda, a reintegração do indivíduo em sua verdadeira substância (totalidade social) e a chegada à consciência do genus ou dessa totalidade como um todo. Isso porque a realidade é supraindividual, o indivíduo é parte de um todo e está implicado em relações sociais. É, finalmente, superar o entendimento finito e

avançar na compreensão da verdade infinita, é superar o voluntarismo e adotar uma concepção de vontade com base racional e real.

Trabalha-se, pois, com “dois grandes polos contraditórios de atração”. Um deles, a “abstração, sob o qual Bakunin inclui o princípio do subjetivismo e da alienação, a divisão ontológica entre sujeito e objeto, que é fonte e origem da cultura do individualismo e do egoísmo”; outro, “a efetividade ou a realidade, ou seja, a razão ou a unidade entre sujeito e objeto; tanto Bakunin quanto Hegel referem-se a essa unidade como reconciliação”. Reconciliação esta que deve ser entendida como compreensão racional ou consciência. (Del Giudice, 1981, pp. 194, 265-266) E, assim, reconciliação com a realidade significa superar a abstração, o subjetivismo, a alienação, a cisão sujeito-objeto, o individualismo e o egoísmo.

No entanto, entender mais adequadamente essa proposição de reconciliação exige compreender como se concebe o conceito de realidade. Ele envolve, como em Hegel, uma distinção entre realidade [ou realidade existente] e realidade efetiva [ou efetividade].

O que é real [efetivo] é racional, e o que é racional é real [efetivo]. Essa proposição, enunciada pela primeira vez no prefácio da Filosofia do

Direito [de Hegel], foi e continua sendo atacada por todos os lados. Todavia,

[para compreendê-la adequadamente] temos primeiro de definir o que é a realidade e distingui-la do acaso e da contingência, que podem ou não existir. Na religião, essa proposição é claramente articulada na noção de que Deus governa o mundo. A essa proposição opõe-se o pensamento de que as ideias nada mais são que quimeras, que toda filosofia é um sistema dessas quimeras, e que os ideais são perfeitos demais para existirem na realidade. Mas essa separação entre realidade e ideias ocorre principalmente no entendimento, que leva seus sonhos abstratos a algo verdadeiro e prescreve o dever. Se o mundo fosse como deveria ser, de acordo com essa opinião, então o que teria acontecido com seu notório dever? E se não, não seria essa verdade fraca, de modo a não ter a força para subjugar a própria realidade? Esse julgamento pode em alguns casos estar certo, quando, juntamente com seu dever, ele dirige-se aos objetos, às disposições, às proposições etc. exteriores, contingentes e vulgares, que podem ter, em certas esferas particulares, em certas épocas, uma grande realidade relativa. Mas na esfera da filosofia, isso é um absurdo, porque a filosofia tem por objeto a ideia, que é poderosa demais para não ser capaz de se manifestar na realidade. (Bakunin, 37001[o], pp. 8-9)

Opera-se, assim, uma distinção substancial entre realidade (Realität) – como realidade existente, casual, contingente, empírica – e realidade efetiva ou efetividade (Wirklichkeit) – como ordem racional e necessária, coincidência da ideia racional com suas manifestações históricas.94 Quando aqui se reconhece a racionalidade do real e se reivindica a reconciliação

94 Distinção que Bakunin explicita também, em 1838, numa carta enviada a suas irmãs, e em 1839, em “Da

Filosofia”. Na carta, Bakunin (38014[c], p. 3) enfatiza: “Compreender e amar a realidade, tal é a vocação do homem. Não falo aqui daquilo que temos o costume de entender pelo termo realidade: a cadeira, a mesa, o cachorro,

com a realidade, tem-se em mente não a realidade existente, mas a realidade efetiva. Esta última concerne à autorrealização da razão – entendida como desenvolvimento dialético inerente ao mundo e entendimento do sujeito desse processo, como maior princípio do ser –, a qual “no quadro hegeliano, considerada como progresso histórico, implica o movimento de fatores que devem ser vistos em inter-relação dialética”. Ela diz respeito, pois, a uma convergência entre “modos externos de existência – instituições religiosas, sociais, políticas – e a substância ou princípio interno”, ou seja, a uma confluência entre ideia racional e suas manifestações históricas. Porque, na medida em que a “razão é tanto concreta como efetiva, ela deve necessariamente manifestar-se ou incorporar-se na realidade externa”, chegando à unidade chamada de “vida”, que é indissociável do conhecimento. (Del Giudice, 1981, pp. 181, 199; Del Giudice, 1982, pp. 179, 448)

A realidade existente não pode ser considerada efetiva ou racional, na medida em que se trata de uma forma histórica contingente, limitada. Ela certamente deve ser conhecida pela razão, quando se ascende ao entendimento das coisas como realmente são, em sua essência, e não como aparecem em teorias ou em construções artificiais, mais ou menos ilustradas. Mas a realidade existente só pode encontrar sua realidade efetiva, sua racionalidade, quando conformada à ideia racional. Ou seja, nessa direção, uma realidade existente não pode e nem deve ser considerada necessariamente efetiva e racional. E, não o sendo, essa realidade existente deve ser modificada no sentido da realidade efetiva, com a ideia racional norteando esse movimento de mudança. Por isso, o reconhecimento da racionalidade do real e a preconização da reconciliação com a realidade não significam, de modo algum, a defesa da sociedade existente, do czarismo russo, e nem mesmo expressam uma posição conservadora ou reacionária, tributária de um hegelianismo de direita.95 Não significa a elaboração de uma justificativa para aceitar acriticamente a

Varvara Dmitrieva, Alexandra Ivanovna; tudo isso é uma realidade morta, ilusória, sem nada de vida ou de verdade”. Pois essa realidade é aquela existente, casual, contingente, empírica. Bakunin (1981c[e], p. 517) entende que “o significado dado [por Hegel] ao termo ‘realidade’ foi incompreendido”. Chamar “de ‘real’ tudo o que existe, qualquer ser finito, [...] é um erro”. “Apenas aquele ser, no qual existe a totalidade da razão, da ideia, da verdade, é real; todo o resto é uma ilusão e uma mentira.” Nesse sentido, Del Giudice (1982, pp. 180-181) afirma que Bakunin trabalha com a “distinção entre a existência contingente [realidade] e a realidade ou efetividade [realidade efetiva]”. De modo que “a realidade [efetiva] não pode ser considerada em termos da existência meramente imediata, contingente – que, de acordo com Hegel, é acaso, ilusão, parcialidade”. Cf. também: Hegel, Enciclopédia, parágrafos 142 a 159.

95 Os textos de Bakunin desse período certamente contam com certos trechos que passam a impressão desse

conservadorismo. Ao criticar a educação na Rússia, por exemplo, Bakunin (1981a[e], p. 436) escreveu que “essa educação não forma um homem russo real e forte, devotado ao czar e à sua pátria”. Conforme explicou Leier (2006, p. 80), o “Prefácio” de 1838 “foi escrito numa dupla codificação, familiar aos colegas e companheiros de Bakunin. Primeiro, Bakunin codificou o artigo na linguagem e nas definições hegelianas e, depois, recodificou suas controversas ideias em língua de Esopo [ocultando seu real significado para pessoas não iniciadas], utilizando a retórica do patriotismo, metáforas indiretas, ironia e sarcasmo, para esconder a mensagem real dos censores do czar. O significado real, entretanto, era evidente para os informados”. Finalmente, como demonstrou

sociedade presente, mas, bem ao contrário, a conformação de um ferramental teórico-filosófico para que a realidade existente possa ser conhecida, avaliada e modificada.96

Portanto, a reconciliação com a realidade constitui o fundamento da unidade entre teoria e prática, por meio da qual é possível operar a ruptura com a compreensão alienada da vida e com a vida social alienada. E se a alienação e a dissociação entre teoria e prática possuem seus correlatos filosóficos e sociais – abstração, individualismo, egoísmo –, a reconciliação com a realidade e a unidade entre teoria e prática também os possuem. Em termos filosóficos, trata-se de alcançar o conhecimento da verdade absoluta; em termos sociais, trata-se de conformar a vida social, a sociedade, à ideia racional. Uma teoria adequada conduz a uma prática adequada; uma teoria equivocada conduz a uma prática equivocada. A reconciliação e a unidade propostas permitem, ao mesmo tempo, fornecer os subsídios para o conhecimento da verdade, a avaliação da realidade e a mudança social. Essa reconciliação e essa unidade, no conhecimento, implicam a conciliação entre ideias e fatos; na sociedade, implicam a conciliação do conhecimento e da práxis, cuja forma prioritária é a educação.

O referido processo iniciado com a Reforma Protestante, cujo auge se deu no século XVIII, apesar de ter avançado no sentido do conhecimento da verdade, não logrou seus objetivos. Na esfera do conhecimento, a reconciliação com a realidade e unidade entre teoria e prática só é possível por meio da filosofia. Não aquela filosofia abstrata, alienada, que continuava a ser produzida na Rússia e em outros países, mas outra filosofia. Essa filosofia deve ser concebida como uma “ciência metódica, autocontida e positiva”, cujo objeto “não é o abstrato finito, e também não é o não abstrato infinito, mas a unidade indissolúvel e concreta de um e outro: a verdade real e a realidade verdadeira”. Assim compreendida, essa “filosofia é o conhecimento da verdade”, “o conhecimento da verdade absoluta”.97 Isso porque a

rigorosamente Del Giudice (1981, pp. 288-303), ainda que Bakunin tenha sido determinante ao influenciar Belinski com as ideias de Fichte e Hegel, não se pode, de maneira alguma – como fez equivocadamente Herzen, por exemplo, sendo repetido por inúmeros historiadores –, atribuir a interpretação conservadora de Belinski da fórmula “reconciliação com a realidade” a Bakunin (cuja posição progressista era compartilhada por Stankevitch). Essa diferença de interpretação foi, inclusive, aspecto central da ruptura entre ambos.

96 Deve-se, contudo, proceder com certo cuidado nessa negação do conservadorismo e do reacionarismo de Bakunin

nesse período para não incorrer em anacronismo. Se parece evidente que esse conservadorismo/reacionarismo não possui consistência na obra bakuniniana dos anos 1837 a 1840, também parece evidente que as posições que serão adotadas na maturidade (anos 1860) estão ainda muito distantes. Para Bakunin (1981b[e], p. 444), a “filosofia nunca será ateia e anárquica, porque a essência de sua vida e de seu movimento está contida na busca de Deus e da ordem racional e eterna”. Naquele momento, Bakunin (1981a[e], p. 431; 1981b[e], p. 452; 1981c[e], pp. 472, 491, 497) critica tanto o ateísmo quanto a “anarquia” (como contrapondo da ordem). Sempre que aparece, o adjetivo “anárquico/a” é utilizado de modo depreciativo; similarmente, toda vez que é mencionado, o materialismo recebe desaprovação, também sendo considerado subjetivo e implicando o fim da religião viva.

97 Ao discordar que a filosofia poderia ser definida como amor pelo saber, Bakunin (1981b[e], p. 442) fez, em

1839, sua primeira crítica ao monopólio do conhecimento, dizendo que “seria uma grande pena se o saber e o amor por ele fossem propriedade exclusiva de apenas um pequeno número de pessoas que estudam filosofia”.

verdade é definida como “o absoluto, ou seja, a verdade infinita, universal, necessária e única, que se realiza na diversidade e na finitude do mundo real”. Essa verdade é a ideia que existe na realidade, a síntese entre pensamento e ação, teoria e prática, a realização da potencialidade. Um dos fundamentos dessa verdade é a necessidade, e, portanto, na verdade da história há necessidade. Nisso, põe-se um contrapondo ao empirismo e suas variantes, ao se negar que a história é apenas uma sucessão contingente e acidental de fatos. Na realidade, a história possui um significado, uma coerência, cuja busca de sua verdade necessária deve ser capaz de apreender. (Bakunin, 1981b[e], pp. 443, 445, 449)

Se os empiristas duros “preparam os materiais para os teóricos” e estes “os elaboram e os trabalham em todas as direções, os elevando a pensamentos relativamente universais”, é a filosofia que, usufruindo do conhecimento elaborado pelos teóricos, produz, “a partir desses fragmentos, um todo unido, orgânico e absolutamente transparente”. Desse modo, o conhecimento filosófico é aquele que conseguiu superar a consciência ordinária, o empirismo, a teoria, e logrou abarcar a totalidade da verdade absoluta e comprovar a necessidade de seu conteúdo – é aquele que, finalmente, ascendeu à razão. (Bakunin, 1981b[e], p. 462)

Porém, seria esse conhecimento da verdade absoluta possível? Sim, e a dialética do conhecimento (dialética da consciência) pode explicar como se dão as condições para que se possa ascender da consciência ordinária à razão. O conhecimento envolve quatro estágios – 1.) Certeza sensível (consciência ordinária), 2.) Observação experimental (empirismo), 3.) Julgamento e 4.) Razão –, sendo o primeiro o mais elementar e o quarto o mais complexo. O progresso nesses estágios é motivado por um movimento dialético inerente ao próprio processo de conhecimento, cujos fundamentos são aqueles que subsidiam a dialética hegeliana, desprovida de sua fórmula de vulgarização (tese-antítese-síntese): na tentativa de realizar-se, um princípio produz sua negação e, com isso, uma contradição, que termina por destruí-lo; num retorno a si, esse princípio retoma seu movimento, integrando aquilo que parecia negá-lo e elevando-se a outro estágio de reconciliação.

Essa dialética do conhecimento toma como ponto de partida a noção de que tudo aquilo que existe potencialmente no homem deve se desenvolver, e que esse desenvolvimento é motivado pela contradição que se estabelece entre o que se realiza limitadamente (realidade existente) e a potencialidade (daquilo que pode vir a ser realidade efetiva). Ou seja, o motor da dialética do conhecimento é a dialética entre realidade existente e potencial de efetividade (ou dialética entre real e potencial) no homem, a qual pode ser assim explicada:

O espírito humano não pode parar por muito tempo nesse nível baixo, limitado de seu desenvolvimento [aquele das necessidades sensíveis e instintivas do animal]. Em si, em potencialidade, o homem é a verdade

infinita, e por isso, há uma contradição entre sua potencialidade e sua efetividade limitada. Essa contradição não permite que ele exista por muito

tempo em limitação; ela o impulsiona continuamente adiante, no sentido da realização da verdade interna, potencial, e o eleva continuamente acima dessa limitação externa, temporária. (Bakunin, 1981c[e], p. 480, grifos adicionados)

A verdade, a liberdade, a razão, são potencialidades humanas; são a essência do homem. E é a contradição entre essas potencialidades e sua realização existente que move a humanidade no sentido de desenvolvê-las, numa marcha que sempre envolve certo sofrimento. No campo do conhecimento, o homem, por meio de uma abstração cada vez maior, procede da certeza sensível à observação experimental, desta ao julgamento, e deste à razão. Com isso, a consciência conhece a si mesma, conhece o mundo e busca a unidade na diversidade que a circunda, a unidade absoluta e universal. Esse é “um resultado objetivo – isto é, necessário – do desenvolvimento da consciência, que passa por todos esses níveis como estágios necessários de seu desenvolvimento”. (Bakunin, 1981c[e], p. 488)

Então, esse desenvolvimento, iniciado na certeza sensível, passa à observação experimental e, “finalmente, os nega no mais alto nível, no nível do universal, do julgamento abstrato, no qual ele, entretanto, não para”. (Bakunin, 1981c[e], p. 488) Numa rigorosa argumentação dialética, é possível explicar essa transição da certeza sensível ao julgamento:

O objeto da observação experimental, por um lado, já é abstração, pensamento, por ser um objeto sem existência universal e que existe apenas na pluralidade das singularidades transientes e insignificantes que a ele correspondem e das quais ele é uma abstração; por outro lado, essa abstração não é uma abstração pura, porque ela tem em si um momento de diversidade sensível, sua essência está contida na pluralidade dos atributos sensíveis. [...] A consciência observadora aparece, por um lado, como certeza sensível, porque os níveis prévios de desenvolvimento estão preservados nesta última como momentos, mas, por outro lado, ela eleva-se acima disso e busca sua verdade não no objeto singular, mas em sua espécie [universal em relação com particular]. [...] Consequentemente, a observação experimental constitui uma transição da certeza sensível, a verdade daquilo que é o este singular e sensível, para o reino do julgamento refletido e abstrato, que tem sua verdade no mundo interior, invisível, do poder e das leis, e que se manifesta em exterioridade. [...] Mas o objeto da observação não é preservado, assim como o objeto da certeza sensível não é preservado, e como este último, ele destrói-se por seu próprio movimento dialético, por ser precisamente uma contradição interna. (Bakunin, 1981c[e], p. 484; cf. também: Del Giudice, 1981, p. 351)

Conforme apontado, essa dialética do conhecimento continua depois disso: “o julgamento, por meio de seu próprio movimento dialético, eleva-se à razão e nega-se nela e na esfera do conhecimento verdadeiro, absoluto”. (Bakunin, 1981c[e], p. 488)

Mas para que esse movimento completo, e mesmo esse trecho citado, seja devidamente apreendido, é mandatório identificar, com maior profundidade, como se entendem cada um desses quatro estágios do conhecimento – 1.) Certeza sensível (consciência ordinária), 2.) Observação experimental (empirismo), 3.) Julgamento e 4.) Razão – assim como o movimento de passagem de um a outro.

A certeza sensível (consciência ordinária) é o “primeiro nível da consciência”. Trata- se da “consciência imediata da singularidade sensível dos objetos: esta mesa, esta árvore etc.” e, por isso, restringe-se à diversidade infinita do mundo sensível, que possui limites espaciais e temporais. Nesse nível, “a verdade está contida na diversidade dos objetos sensíveis que existem em exterioridade”. A certeza sensível é um conhecimento “baseado na percepção imediata” e que “é a representação de objetos separados e diferentes do mundo sensível e espiritual”. Seu objeto é o este singular e seu sujeito o eu singular. (Bakunin, 1981b[e], p. 451; Bakunin, 1981c[e], pp. 471, 482-485)

Assim, a certeza sensível apresenta vultosos limites para o conhecimento, pois ela relaciona-se apenas com a aparência, e nunca com a essência das coisas. O conhecimento não é neutro, mas mediado, e é profundamente influenciado pela sociedade e pela cultura.

Todos os homens são formados sob a influência imediata da sociedade em que nasceram. Mas cada nação, cada Estado, tem sua esfera moral particular, suas crenças populares, seus preconceitos, suas limitações particulares, que dependem, em parte, de seu caráter individual, de seu desenvolvimento histórico e de sua relação com a história de toda a humanidade. Cada Estado e cada tempo têm seus conceitos particulares e sua visão de mundo particular; além disso, cada Estado está fragmentado em diferentes estratos sociais, e cada um desses estratos, por sua vez, em seu caráter individual, sua própria particularidade, de modo que a consciência ordinária desenvolve-se sob as mais diversas influências. Com a educação da mente, os conceitos vulgares e uma esfera moral e espiritual vulgar são absorvidos, e sua atividade, que em sua natureza é essencialmente sempre a mesma, altera as circunstâncias físicas e espirituais que a circundam. Consequentemente, seu desenvolvimento é sempre limitado, parcial e incapaz de abarcar a verdade absoluta. (Bakunin, 1981b[e], p. 454)

Dando-se conta de suas limitações singulares, imediatas e parciais, a certeza sensível, no sentido de encontrar dialeticamente maior universalidade e totalidade, ascende à observação experimental.

A observação experimental (empirismo) é o segundo nível da consciência. Trata-se de um estágio do conhecimento que, usufruindo de maior abstração que na certeza sensível, e também de elementos científicos, consegue romper com a singularidade do objeto e caminhar no sentido de maior universalidade. Não se trata mais “desta árvore”, mas “da árvore”, um “objeto universal de observação [...] inacessível à minha percepção sensível (por exemplo, uma árvore em geral).” Com isso, “a consciência eleva-se [do mundo externo] ao mundo interno, invisível, universal e infinito”; ela busca a relação entre os objetos, o universal, o necessário em sua diversidade; procura penetrar o objeto com o pensamento; busca leis que possam ser formuladas a partir da experiência. Seu objeto é o pensamento (“árvore”), que possui um momento de diversidade sensível (“esta árvore”) – seu sujeito é ainda o eu singular. Conforme apontado, a teoria é uma forma superior de empirismo, mas que continua presa na observação experimental, na diversidade dos fatos, em leis particulares. Dando-se conta de suas limitações, em vista de não conseguir abarcar a relação entre as leis particulares e nem a relação delas com o universal, a observação experimental, também no sentido de encontrar dialeticamente maior universalidade e totalidade, ascende ao julgamento. (Bakunin, 1981c[e], pp. 483-484, 487; Bakunin, 1981b[e], pp. 460-461)

O julgamento (abstrato e refletido) é o terceiro nível da consciência e também o momento em que a consciência ascende à primeira forma de autoconsciência. Trata-se de um estágio do conhecimento que continua usufruindo de maior abstração que na observação experimental e caminhando no sentido de maior universalidade. Seu objeto é “o mundo interno das leis imutáveis e universais”, ou seja, a “essência do mundo físico, assim como do mundo espiritual”, a qual pode ser acessada com a abstração “da diversidade insignificante da exterioridade”; seu sujeito passa do eu singular para o eu universal (com a passagem da

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