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PRIMADO DA PRÁTICA E AUTOGOVERNO DO POVO (1843)

6.2 RADICALISMO E COMUNISMO

Com a filosofia mostrando suas insuficiências e indicando a necessidade e o caminho de sua própria superação, por meio de uma prática que encontrasse na teoria sua expressão, as doutrinas políticas como o radicalismo político e o comunismo passam a receber maior atenção. Ambas produtos necessários da modernidade e obtendo sua justificativa na própria sociedade, elas pretendem responder praticamente a esse desafio imposto pelo mundo contemporâneo e libertar a humanidade.

No caso do radicalismo, ele oferece os marcos mais adequados para se conceber essa prática:

proletariado, o proletariado não pode se suprassumir sem a efetivação da filosofia”. (Marx, 2010, p. 157) Bakunin, distintamente, indica os limites da filosofia e propõe que ela seja abandonada em favor de um novo tipo de teoria. (Cf. também: Angaut, 2007a, pp. 92-93)

O autogoverno do povo é o princípio que se encontra na base de todas as outras posições dos radicais, os quais se preocupam com a melhoria das

escolas e com a promoção da formação do povo, porque estão convencidos

que o povo não pode governar a si mesmo senão quando for maior e autônomo, e que ele não pode ser elevado à maioridade e à autonomia senão pela formação. [...] O objetivo principal dos radicais é a libertação do povo

da tutela dos grandes e dos ricos. (Bakunin, 2007b[e], p. 152, grifos

adicionados)

Destacam-se aqui, em linhas bem gerais, o princípio, o objetivo e a estratégia do radicalismo político, do qual Bakunin é partidário nesse momento. O conceito mais importante, que constitui o princípio fundamental dos radicais, esse fenômeno histórico, é a noção de autogoverno do povo, ou seja, a administração ou direção do povo exercida pelo próprio povo – ou, como se dirá a partir dos anos 1960, sua autogestão enquanto povo. O objetivo dos radicais é encontrar essa sua essência e realizá-la: a emancipação popular, que é a efetivação da liberdade em relação aos detentores do poder político e econômico. Sua estratégia está, principalmente, no campo da propaganda e da educação. Suas posições devem ser publicizadas, as escolas têm de ser aperfeiçoadas e o povo deve ser amplamente instruído. Promover a maioridade e a autonomia popular implica libertar o povo da tutela dos de cima, garantir que ele possa pensar e agir por si mesmo e promover seus próprios interesses.

No caso do comunismo, trata-se de uma doutrina essencialmente prática que, como outras, é filha legítima do verdadeiro cristianismo. Tendo emanado do povo, contendo “elementos [...] altamente significativos”, fundamentando-se nos “direitos mais sagrados” e nas “demandas mais humanas”, ele vem adquirindo cada vez mais importância. Tem crescentemente mais condições de “exercer essa grande potência, notável e mesmo surpreendentemente ativa sobre as almas”. Como descendente do verdadeiro cristianismo, o comunismo tem “um direito incondicional, porque, segundo os princípios do próprio cristianismo, tudo que se opõe ao espírito do amor deve ser destruído”. Visto que o comunismo propõe-se romper com a sociedade existente, vendo nela nada mais que injustiça e privilégio, sua crítica é legítima, na medida em que contém a proposição de erigir outra sociedade, fundamentada no amor. Aqueles que se intitulam cristãos, mas se opõem ao comunismo e preconizam o ódio, não são verdadeiros cristãos. (Bakunin, 2007b[e], pp. 151, 159)

Ademais, não é só por essa filiação ao espírito do amor que o comunismo demonstra suas raízes cristãs. Também o evidencia na defesa que faz da “ideia de humanidade”, de que “todos os homens – todos, sem exceção – são irmãos”, como “ensina o Evangelho, e se eles

amam uns aos outros, o Deus invisível e a verdade redentora e libertadora estão neles presentes”. Ou seja, a ênfase do cristianismo original na noção de humanidade, assim como sua oposição às “nações isoladas e fechadas hermeticamente em si do paganismo”, assimila-se à negação realizada pelos comunistas do individualismo e da noção de nacionalidade, entendida como “egoísmo estreito das nações”. (Bakunin, 2007b[e], p. 157)

Em ambos os casos, parece verdade que

o homem isolado, mesmo que tenha intenções belas e éticas, não pode tomar parte na verdade se não viver em comunidade. Deus não está presente no indivíduo isolado, mas apenas na comunidade, e, assim, a virtude de um indivíduo, a virtude viva e frutífera, não é possível senão por meio do vínculo sagrado e milagroso do amor, senão na comunidade. Fora da comunidade, o homem não é nada; na comunidade, ele é tudo. E quando a bíblia fala de comunidade, não se trata, nem de longe, de comunas ou nações isoladas, estreitas, separadas das outras; o cristianismo original nada sabe das diferenças nacionais, e a comunidade por ele exaltada é a comunidade de todos os homens, a humanidade. (Bakunin, 2007b[e], p. 157)

Essa defesa de uma humanidade una e indivisível, contrária ao individualismo e ao nacionalismo estreito, difere bem da crítica do cosmopolitismo do século XVIII, que se distinguiu por ser teórica e abstrata. Na contramão disso, “o comunismo não fala a partir da teoria, mas a partir do instinto prático, do instinto popular”. E, por isso mesmo, suas posições devem ser valorizadas. (Bakunin, 2007b[e], p. 157) Ainda assim, tanto no caso do cristianismo quanto do comunismo, essa crítica da nacionalidade era uma etapa necessária de sua trajetória. Quando surgiu, o cristianismo teve esse caráter negativo, que dava a ele condição de verdade relativa, parcial, unilateral. Do mesmo modo, o comunismo, como fenômeno recente daquele então, possuía também esse caráter; rejeitava a nacionalidade como ela existia, especialmente porque ela não satisfazia seu conceito, mas não enquanto princípio em si e para si. Algo semelhante ao que se passou com o cristianismo, quando inicialmente rejeitou a arte, por ver nela algo indissociavelmente ligado ao paganismo.

Outro destacado fator que fornece legitimidade ao comunismo é o fato de ele ter surgido como expressão prática do próprio povo. Sendo que “o povo [...] sempre foi a única base criativa em que nasceu [...] toda dignidade, todas as ações históricas, todas as revoluções que libertaram o mundo”. Ou seja, tudo “aquilo que é estranho ao povo, seus feitos e suas ações” nada mais é do que algo marcado pela “impotência”. A única maneira de “criar efetivamente” é “por um contato efetivo, elétrico com o povo”. E isso é demonstrado na história das religiões e na história moderna: “Cristo e Lutero nasceram do povo, do baixo povo”, e “os heróis da Revolução Francesa” estabeleceram poderosamente “o primeiro

fundamento do futuro templo da liberdade e da igualdade” somente porque “regeneraram-se no tempestuoso oceano da vida popular”.

Por esses motivos, e por ter se difundido por várias partes do mundo, o comunismo não pode mais ser ignorado. Mesmo sendo ainda “pouco formado teórica e cientificamente”, de modo que “está ainda muito longe de ter concebido seu próprio princípio em sua verdade e em toda extensão de sua consequência”, o comunismo terá de receber atenção por parte das classes dominantes e dos Estados. Ele pode mesmo tornar-se um perigoso risco para a sociedade existente, se as “classes privilegiadas e cultas” não facilitarem seu caminho com amor e sacrifício, reconhecendo que ele possui uma “missão histórica mundial”. E também se os Estados, em função dessa legitimidade, não satisfizerem suas demandas. (Bakunin, 2007b[e], pp. 156-157)

Sabe-se que “toda potência e toda vitalidade de um Estado consiste, precisamente, em que ele se mantenha e possa se manter frente às mil contingências do cotidiano”. E que, “o Estado pode e deve impor-se a todos os males que surgem da maldade de alguns indivíduos”. Afinal, “a polícia existe para isso, as leis e os tribunais existem para isso, toda sua organização existe para isso”. “Um ladrão, e mesmo um grande bando de ladrões”, ainda que sejam “perigosos para mais de um indivíduo no Estado”, não é perigoso “para o próprio Estado, desde que ele seja um corpo sadio e bem organizado”. Ou seja, as contingências em geral e os crimes em particular são normalmente contidos por um Estado em funcionamento normal. Podem por em xeque a vida de algumas pessoas, mas não do Estado em si.

Mas é muito diferente quando se levam em conta as doutrinas modernas como o radicalismo e o comunismo, fenômenos que têm “sua fonte, não no capricho, na má vontade de alguns indivíduos, mas nas carências do organismo estatal, das instituições estatais de um corpo político”. Essas doutrinas podem, de fato, tornar-se perigosas para o Estado. E na medida em que suas “reivindicações legítimas não são reconhecidas e satisfeitas pelo Estado”, elas não devem ser “reprimidas pela força”. Em geral, quando fenômenos e reivindicações desse tipo se colocam, o Estado põe-se frente a duas possibilidades: valer-se do “recurso à força”, e correr o risco de desestruturar-se completamente, ou acolher as demandas e “reformar-se de maneira pacífica”. Mas o Estado pode, também, buscar formas de minar as possibilidades dessas doutrinas.

No caso do comunismo, que sustenta essa posição de uma humanidade una e indivisível, os Estados, mesmo se proclamando cristãos, estimulam “o sentimento nacional no seio do povo, em detrimento da humanidade e do amor”, pregando “o ódio e o assassinato em

nome da nacionalidade!”. Utilizam o sentimento nacional como forma de dividir e colocar em oposição os membros dessa mesma humanidade. Por esse motivo, parece central, como têm feito os comunistas, opor-se aos “governos supostamente cristãos e todos os príncipes e detentores do poder, republicanos os monárquicos” que dizem professar o cristianismo. Isso porque “seu cristianismo não é mais que uma aparência; somente seus elementos não cristãos são realmente efetivos”. (Bakunin, 2007b[e], pp. 150, 159)

Contudo, mesmo que se deva reconhecer todos esses méritos do comunismo – o fato de ser uma doutrina prática, emanada do povo e descendente do cristianismo, e de suas demandas, em particular da humanidade/comunidade, serem legítimas –, não se pode endossá-lo acriticamente. Bakunin explicita isso muito claramente quando afirma: “Nós não somos comunistas; não poderíamos viver [...] numa sociedade organizada de acordo com os planos de um Weitling”. Isso porque o futuro preconizado pelos comunistas “não seria uma sociedade livre, [...] uma sociedade efetiva, viva, de homens livres, mas um constrangimento insuportável”. A liberdade definitivamente não seria seu fundamento. Essa sociedade seria, mais propriamente, “um rebanho reunido pela força de bestas que teriam em vista apenas coisas materiais e nada saberiam daquilo que é espiritual e dos grandes prazeres do espírito”. Uma sociedade desse tipo “jamais pode realizar-se”, pois as necessidades humanas são materiais e espirituais. E tendo em vista a “sagrada potência da verdade, inerente a todos os homens, de maneira mais ou menos consciente”, é possível enfatizar que o autogoverno do povo, respondendo a essas demandas materiais e espirituais da humanidade constitui, ainda, a melhor resposta aos dilemas modernos. (Bakunin, 2007b[e], pp. 150-151)

PARTE II

O PAN-ESLAVISMO REVOLUCIONÁRIO

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