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DA FILOSOFIA À PRÁXIS (1836-1843)

2.5 A TEORIA POLÍTICA BAKUNINIANA ENTRE 1836 E

2.5.2 Primeiro período hegeliano (1837-1840)

Entre 1837 e 1840, Bakunin, ainda na Rússia, encontra-se em seu primeiro período hegeliano, no qual desenvolveu, sobretudo em dois escritos – o “Prefácio”, de 1838, e “Da Filosofia”, de 1839-1840 –, o alicerce de seu pensamento político e filosófico, que culminará em 1842. Nesses anos, a maior referência para Bakunin é Hegel – em particular seus conceitos de razão e realidade –, os quais são por ele complementados com contribuições de Fichte e, possivelmente, de Cieszkowski, gerando um pensamento que, se num primeiro momento é fiel a Hegel, num segundo momento o ultrapassa e depara com paralelos na esquerda hegeliana alemã.83

Entre 1837 e 1840, Bakunin tem já um domínio sólido da filosofia hegeliana, amplamente estudada em suas mais relevantes obras. A questão central desses anos é a solução, por meio de um método crítico-dialético, do problema que coloca, de um lado, a alienação (ou a vida alienada), e de outro, a reconciliação com a realidade e a unidade entre teoria e prática (ou vida real, efetiva). Com base em Hegel, ele procede a uma reflexão sobre o processo de construção do conhecimento, no qual critica duramente o subjetivismo moderno e reivindica a necessidade de superar, por meio de uma dialética do conhecimento, a certeza sensível e de proceder à razão – ou seja, de superar a aparência e buscar o entendimento da essência da totalidade social. Extrapolando Hegel, Bakunin, através de uma filosofia da ação, deriva do conhecimento da verdade a necessidade de uma ação ética racional que, como efetivação do pensamento, tenha condições de atingir a liberdade – para tanto, a educação é ferramenta primordial.

O idealismo objetivo bakuniniano deriva da crítica ao idealismo subjetivo e ético de Fichte e tem em Hegel seu maior alicerce. Bakunin percebe rapidamente que a prioridade fichteana dada ao ideal, ao sujeito, ao eu subjetivo, reforça a alienação moderna e, segundo entende, termina por distanciar o homem da natureza e das formas de existência social, dos fenômenos objetivos e externos ao sujeito cognoscente: sociedade, Estado, política, economia, história, instituições. Dessa maneira, o subjetivismo é considerado uma abstração responsável por cindir ideal e real, sujeito e objeto, pensamento e ser, teoria e vida, filosofia e prática, indivíduo e comunidade, vida/mundo interno e vida/mundo externo. Tal abstração está na raiz do afastamento do eu (sujeito) da existência objetiva (mundo), provocando uma ruptura da vida, uma dicotomia social, e expressando um conflito sem perspectiva de solução.

83 No que diz respeito à discussão sobre educação, foram importantes as duas traduções realizadas por Bakunin,

que tratam justamente desse tema: Conferências sobre a Vocação do Sábio, de Fichte, e Discursos do Ginásio, de Hegel.

Reconciliação com a realidade e unidade entre teoria e prática (neste caso, entre ideias e fatos, pensamento e dados empíricos) são as respostas do idealismo objetivo bakuniniano ao idealismo subjetivo e abstrato. Trata-se de proceder a uma conciliação desses elementos cindidos – ideal e real, sujeito e objeto, ser e pensamento, teoria e vida, filosofia e prática, indivíduo e comunidade, vida/mundo interno e vida/mundo externo –, superando o particular e o finito subjetivos e chegando à totalidade e ao infinito objetivos. Com isso, supera-se a dicotomia entre consciência subjetiva e realidade objetiva, e reintegra-se o eu na realidade, o sujeito no mundo. O eu abstrato passa à comunidade concreta do nós e o amor (sentimento) passa à razão (pensamento). O fundamento da ética passa a ser considerado universal e não particular, individual. Dessa forma, a realidade exterior é alçada a uma posição de destaque, não apenas como algo que deve ser tomado em consideração, mas como um componente filosófico essencial.

Contudo, por mais que esse idealismo objetivo seja mais realista que outros idealismos, ele permanece vinculado à premissa do idealismo alemão como um todo, em geral mais preocupado com a ideia das coisas do que com as próprias coisas. Para Bakunin (1981d[e], p. 419), nesse período, a realidade é mais o conhecimento da realidade do que a realidade em si, e a liberdade é o sentido de liberdade da consciência humana: “Consciência é libertação [...]. O nível de consciência no homem é o nível de sua liberdade”. A liberdade, objetivo último da humanidade, é atingida por meio do pensamento, da compreensão especulativa (filosófica). Mesmo que se contraponha às premissas de outros idealismos – ao negar que a realidade exterior (da natureza e da sociedade) seja inexistente e que somente o ideal (da percepção humana) tenha realidade; ao recusar que o sujeito seja o princípio de tudo e que ele produz o objeto, a realidade exterior –, o idealismo objetivo bakuniniano continua vinculado à noção de que a realidade exterior (objeto) não possui autonomia em relação à percepção do sujeito do conhecimento.

Na verdade, como Hegel, ele entende que ideal e real, sujeito e objeto, ser e pensamento, pensamento e realidade são idênticos. Constituem apenas facetas distintas de uma mesma coisa, de uma mesma totalidade, na medida em que há unidade entre ideal-real, sujeito-objeto, ser-pensamento, pensamento-realidade. O pensamento é a realidade última que o homem deve descobrir dentro de si, tendo em conta que sua consciência equivale à razão que governa o mundo. O pensamento deve ser o refúgio da razão e da liberdade. Essa é a chave para compreender por que, para Bakunin (1981b[e], p. 468), “o mundo real é, de fato, nada mais que pensamento efetivado, realizado, implementado”. A realidade é a efetivação do

pensamento e compreendê-la é encontrar o pensamento nela existente. A realidade (o real e mesmo a matéria) não é independente da mente (ideal); ao contrário, por ser indeterminada, universal e apenas acessível pelo pensamento, ela é um pensamento. Mais do que dependente da mente, o mundo (natureza e sociedade) assemelha-se a ela. Ao pretender a compreensão da verdade, a filosofia precisa acessar a razão, pois, com isso, torna-se capaz de entender o mundo interior e exterior à consciência. Afinal, o conteúdo da consciência é a própria realidade e a verdade deve ser encontrada no interior do próprio sujeito. Assim, o acesso à razão permite o entendimento da realidade. Mas, como se verá, esse não é um processo simples. (Del Giudice, 1981, pp. 151-153, 162-172, 188-197; Arantes, 1999)

Bakunin extrapola Hegel quando argumenta que, completando-se o processo de entendimento e chegando-se à razão, esta deve ser dialeticamente efetivada – a partir disso emerge a filosofia da ação bakuniniana. A unidade entre teoria e prática adquire, então, sentido de conciliação entre conhecimento e práxis, entendimento racional e ação humana. Evidencia-se, aqui, que a passagem de Fichte a Hegel não significa, para Bakunin, uma ruptura absoluta com Fichte em favor de Hegel. Como colocado, permanecem elementos fichteanos que permitirão, entre outras coisas, o desenvolvimento dessa noção. Cumpre ainda notar que, enfim, permanece no idealismo objetivo bakuniniano certa possibilidade de compreender o objeto como base do sujeito, ou mesmo que as funções subjetivas são apenas aquelas objetivas, caminho este que será seguido a partir de 1842. (McLaughlin, 2002, pp. 66- 67)

Como em Hegel, é necessário certo esforço para compreender as ideias político- filosóficas de Bakunin, que são expostas por meio do jargão idealista e religioso. De acordo com o próprio Bakunin (1981d[e]) – e também com Del Giudice (1981, pp. 154, 173-174, 195-200, 229, 261-263) e McLaughlin (2002, p. 27) – permanece e aprofunda-se nos escritos desses anos a noção de um Deus imanente, incompatível com a transcendência e a superioridade, com a substância religiosa alterando-se progressivamente na direção de um humanismo antropocêntrico.

Para Bakunin, a religião – determinante no caráter de um povo juntamente com a estética – é a consciência do absoluto, e Deus é o próprio absoluto. Deus/Absoluto é a realidade efetiva, o todo vivo, a totalidade social, a vida ética como um todo, a expressão da unidade real-ideal. Ao mesmo tempo, a religião é a compreensão desse todo, dessa totalidade – o entendimento da unidade entre teoria e prática e a própria reconciliação com a realidade –, equiparando-se assim à razão, e, concomitantemente, o critério para a avaliação moral e

normativa dessa totalidade. Isso se evidencia quando Bakunin propõe reconciliar o religioso (como forma da razão consciente de si) e o político (em sua efetividade, como Estado, razão que é). A vontade divina é essa elevação à totalidade e à ação não alienada, é o próprio processo racional da história, a razão humana efetivando-se no mundo. O ideal religioso é a liberdade, a reconciliação política e social do homem livre no estado racional (cristianismo, religião absoluta), que tem como base a verdade e a liberdade de todos.

Bakunin (1981d[e], pp. 419, 421) escreveu que o espírito é “o conhecimento absoluto, a liberdade absoluta, o amor absoluto e, por consequência, a benção absoluta”. É “o poder absoluto, a fonte de todo poder. A realidade é sua vida e, consequentemente, a realidade é todo-poderosa, assim como a vontade e a ação do espírito”. Enfim, “toda existência é a vida do espírito; tudo está permeado pelo espírito; não há nada fora do espírito”. Há o espírito objetivo, de um grupo social, que se consubstancia em costumes, leis e instituições, e há o espírito absoluto, que abarca arte, religião e filosofia, e conforma-se como comunidade social racional, autoconsciência de Deus.

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