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INSUFICIÊNCIA DA FILOSOFIA, NOVA TEORIA E PRÁTICA CONCRETA

PRIMADO DA PRÁTICA E AUTOGOVERNO DO POVO (1843)

6.1 INSUFICIÊNCIA DA FILOSOFIA, NOVA TEORIA E PRÁTICA CONCRETA

Analisando os propósitos e as conquistas da filosofia durante o século XVIII, pode-se dizer que, sem dúvida, ela possui virtudes e possibilidades. A filosofia visa ao “conhecimento da verdade, e a verdade não é tão abstrata e etérea para que não possa ou não deva exercer uma influência significativa nas relações sociais, na organização da sociedade”. Ou seja, a filosofia, ao promover o conhecimento da verdade, tem condições de influir nos rumos do mundo, na direção recomendada no evangelho: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. (Bakunin, 2007b[e], pp. 152-153)

Tal potencial pode ser constatado, em seus resultados concretos, quando se observa a história da Revolução Francesa, destacadamente a história do povo francês.

Pouco antes da revolução, a melhor parte do povo, sua parte laboriosa, ainda se encontrava, na França, na mais triste situação. Ela mal possuía um terço do solo, seu próprio trabalho, este único meio para sua existência; debilitava-se com os perturbadores obstáculos, tinha de arcar com toda a carga dos impostos e, ademais, pagar impostos particulares ao clero e aos aristocratas. Não mencionaremos as outras obrigações, frequentemente humilhantes, às quais o povo pobre estava submetido. Os tribunais estavam organizados de tal modo que os grandes senhores acabavam sempre tendo razão contra o povo. Em uma palavra, o povo, em todas as circunstâncias possíveis, era pisoteado pelos grandes senhores. E por quê? Não porque o povo era fraco, Deus me livre! O povo nunca é fraco. Isso ocorria porque o povo era ignorante e deixava-se enganar pelos padres católicos, que diziam a ele que o rei e esses senhores da nobreza e do clero eram seus mestres pela graça de Deus, e que ele devia servir-lhes, inclinar-se e humilhar-se diante deles, para alcançar o reino dos céus. “Você é estúpido, você é incapaz de entender o que é justo; apoie-se em nós e nós o guiaremos”. Assim falavam os padres ao povo, ao povo pobre, no seio do qual sempre se encontra essa

114 Desse período, o principal escrito de Bakunin é “O Comunismo”, cuja nova tradução ao francês de Angaut

(Bakunin, 2007b[e]) foi tomada como base para as citações. As citações dos documentos de Bakunin que se encontram no CD-ROM do IIHS (Bakunin, 2000a) foram traduzidas a partir dos textos em francês.

faculdade de crença e de inteligência. O povo acreditava efetivamente que era estúpido e combatia em si mesmo toda suspeita, todo pensamento libertador, como se ele fosse obra do diabo. (Bakunin, 2007b[e], p. 153)

A falta de acesso à terra, a pobreza, os impostos abusivos, as injustiças jurídicas e outras formas de dominação eram aceitas pelo povo em função de sua falta de conhecimento. Ele possuía a vantagem quantitativa em relação aos senhores, mas, ao mesmo tempo, tinha sua submissão legitimada por um conjunto de ideias, que era produzido e promovido pelo cristianismo católico.

“Quem libertou o povo dessa santa escravidão? A filosofia.” Apesar de seus equívocos, os filósofos do século XVIII cumpriram sua “destinação providencial, que consistia em elevar o povo à estima de si, à consciência de sua dignidade e de seu direito sagrado e imutável”. Assim, foram os filósofos que, por meio de suas iniciativas, conseguiram elevar a condição de consciência do povo – fato que exige garantir, na história, o nome desses filósofos “entre os libertadores e melhores servos da humanidade”. E mesmo durante o século XIX a filosofia tinha ainda um papel a cumprir: “sua luta perseverante, sua luta de morte, contra todos os preconceitos, contra tudo aquilo que impede os homens de alcançar seu objetivo elevado e santo, a realização da comunidade livre e fraternal, a realização do céu sobre a Terra”. E mais: o combate às mentiras interessadas que eram promovidas contra o povo. Afinal, a filosofia esforça-se “pela libertação do homem” e “o conhecimento da verdade é sua única arma”.

No entanto, apesar desse potencial realizado e daquilo que poderia ainda se realizar no campo do conhecimento, a filosofia também possui consideráveis limites. “Segundo sua essência, a filosofia é somente teórica; ela move-se e desenvolve-se unicamente no interior da consciência.” É verdade que “o pensamento e a ação, a verdade e a eticidade, a teoria e a práxis são, em última instância, uma só e mesma essência inseparável”. E é verdade, do mesmo modo, que “o maior mérito da filosofia é ter concebido e conhecido essa unidade”, mas conhecer não basta. “Com esse conhecimento, ela [a filosofia] chega a uma fronteira, uma fronteira que ela não pode ultrapassar como filosofia”, fronteira que marca a passagem do conhecimento do mundo (teoria) para a mudança do mundo (prática), e é exatamente nesse último sentido que a filosofia encontra suas insuficiências. “Depois dessa fronteira começa uma essência mais elevada que ela – a comunidade efetiva dos homens livres, estimulada pelo amor e nascida da essência divina da igualdade original”. Para a realização dessa essência, a teoria não é suficiente; exige-se a prática. (Bakunin, 2007b[e], pp. 153-154, grifos adicionados)

Mas, afinal, o que significava essa prática? Mesmo que outros jovens hegelianos falassem em prática e reconhecessem sua importância, parecia necessário fazer certos apontamentos críticos. Reivindicar essa necessidade da prática não significava conceber a teoria como prática e nem teorizar sobre a prática. Não se tratava – como nos casos de Bruno Bauer, Feuerbach e outros115 – de manter-se no campo “teórico-abstrato” ou “prático-

abstrato”, sem conseguir romper com a abstração teórica. Tratava-se, mais precisamente, de encontrar na prática concreta da ação uma resposta a esse dilema. E, para tanto, a filosofia mostrava-se insuficiente. (Bakunin, 41016[c], p. 3)

“Nosso pobre presente”, como se pode notar, “exige a prática”, e, por isso, devemos “romper com nosso próprio passado”, saindo da “vida isolada no céu da teoria erudita” e ingressando no campo promissor da prática. Devemos assumir o primado da prática em relação à teoria. Por isso “os franceses”, em função de sua concepção prática de política, “ainda são nossos mestres” e assim devem permanecer no próximo período. (Bakunin, 2007[c], p. 139; Bakunin, 2007c[e], pp. 144-145)

Essa prática envolvia, dentre outras coisas, proceder à “ação da verdade libertadora”, “trabalhar dia e noite para viver como homens entre os homens, para ser livres”, “apossar-nos de nossa época com nossos pensamentos”, “comunicar [a nossos] contemporâneos esse movimento do coração e da mente”, conquistar “o povo para o nosso lado”, tornar-nos “a voz da liberdade e cativar o mundo”. (Bakunin, 2007c[e], pp. 144-145) Ela deveria caminhar na direção não apenas de conscientizar o povo, mas de garantir as condições para que a liberdade, a igualdade e a democracia se concretizassem – para que se efetivasse essa comunidade livre e fraternal, esse céu sobre a Terra.

Mesmo a filosofia hegeliana, que constituía o ápice da teoria moderna, não possuía condições, em si mesma, de dar respostas adequadas a tais demandas. Essa filosofia certamente tinha virtudes e possibilidades, mas, ao mesmo tempo, quando se tratava de prática concreta da ação, ela evidenciava insuficiências e limites.

A contradição e o seu desenvolvimento imanente formam um dos nós principais de todo o sistema hegeliano, e como esta categoria é a categoria

115 Cf. Bruno Bauer, em A Trombeta do Juízo Final...: “A camarilha dos jovens hegelianos adoraria nos dizer

que Hegel absorveu-se somente nas considerações da teoria, e que nunca pensou em estender a teoria à práxis. Como se Hegel não tivesse atacado com uma fúria infernal a religião, como se ele não tivesse entrado em guerra contra a ordem existente. Sua teoria é, em si mesma, práxis, e é por isso que ela é a mais perigosa, a mais vasta e a mais destrutiva. Ela é a própria revolução.” (apud Angaut, 2007a, p. 91) Ao discutir um artigo de Feuerbach, no início de 1843, Bakunin considera que sua expectativa de resguardar a teoria frente à prática não tem sentido. Para ele, o texto de Feuerbach é uma “tentativa de salvar a teoria, aquela que deve, em sua totalidade, abdicar de si mesma; essa é sua única salvação”. E de nada adiantava preconizar a prática em teoria: “a prática dentro da teoria; eis a maior contradição”. (Bakunin, 2007[c], p. 139)

principal, a [essência dominante de] nossa época, Hegel é, [incondicionalmente], o maior filósofo do nosso tempo, o mais alto cume da nossa cultura moderna, considerada unicamente do ponto de vista teórico. E é precisamente porque ele [constitui] este cume; [é precisamente porque ele compreendeu e, ao mesmo tempo, indicou a dissolução desta categoria; é precisamente por esses motivos que] ele está na origem de uma necessária autodecomposição da cultura moderna. [Ao constituir este cume, ele já ultrapassou a teoria – na verdade, primeiramente, no interior da própria teoria – e postulou] um novo mundo prático; um mundo que não se realizará, de modo algum, pela aplicação formal e a [difusão de teorias prontas], mas somente por uma ação [original] do espírito prático autônomo. A contradição é a essência mais íntima, não somente de toda teoria determinada ou particular, mas também da teoria em geral. Assim, o momento [de compreensão da teoria é, também, ao mesmo tempo, o fim de seu papel enquanto teoria. E isso é a autodecomposição da teoria num mundo prático, original e novo, no presente efetivo da liberdade]. (Bakunin, 1976a[e], pp. 115-116)

Ou seja, com Hegel, a teoria atingiu seu cume. Com a filosofia hegeliana foi possível, em termos teóricos: compreender o passado e o presente, em especial naquilo que diz respeito ao entendimento histórico e lógico das contradições; apontar as vias para um futuro harmônico de liberdade; apreender a importância e a necessidade da prática. Em suma, a teoria proporcionou as condições para o conhecimento da realidade e terminou por apontar a relevância e indicar o caminho da prática. Tais são suas virtudes e possibilidades.

Entretanto, a filosofia hegeliana também mostrou seus limites, e mesmo os limites da própria filosofia e da teoria em geral. Isso porque o “mundo da prática” foi se anunciando cada vez mais como algo que estava para além dos domínios filosóficos e teóricos. A filosofia e a teoria evidenciam-se crescentemente insuficientes para modificar os rumos desse mundo. Curiosamente, Hegel proporcionou as condições para que esse problema fosse colocado, e para que uma solução desse mencionado dilema fosse encontrada. A necessidade de uma prática concreta da ação para que o mundo prático fosse transformado implicava o reconhecimento dos limites da filosofia e, com isso, da inevitabilidade da “saída da filosofia” por parte daqueles que pretendiam não só conhecer o mundo, mas, principalmente, modificá- lo, transformá-lo.116 E a solução encontrada na filosofia hegeliana era, paradoxalmente, o

116 Parece inevitável a comparação desse trecho com Marx, em particular em suas “Teses sobre Feuerbach”,

escritas em 1845, dois anos depois dessas contribuições de Bakunin. As teses 8 e 11 de Marx dialogam com aquilo que Bakunin sustentava entre 1842 e 1843. Tese 8: “A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis.” Tese 11: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” (Marx, 1845) Marx, assim como Bakunin, destaca nessas teses o papel da prática na vida humana e também aponta a necessidade de se transpor as fronteiras do conhecimento da realidade, passando à questão de como transformá-la. Entretanto, mesmo com tais similaridades, ambos têm posições distintas acerca da filosofia. Em 1843 e 1844, Marx pretende realizar efetivamente a filosofia, conforme pontuado em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: “A filosofia não pode se efetivar sem a suprassunção do

abandono da filosofia: “A filosofia indica-nos, ela mesma, a porta de saída da filosofia”, o abandono das perspectivas exclusivamente teóricas. De modo que, por meio da teoria, descobre-se a indispensabilidade de se ceder espaço à prática, de se passar à prática, de se admitir o primado da prática. A realização efetiva da liberdade passa, então, a ser percebida como uma tarefa mais prática que teórica; e, por esse motivo, a filosofia torna-se uma ferramenta prescindível. (Angaut, 2007a, p. 95)

Contudo, reivindicar esse primado da prática não significa um abandono completo da teoria. Esta não deve ser descartada, mas readaptada, nessa perspectiva do primado da prática – ela tem de encontrar um novo status, uma nova concepção, que dê conta desses novos desafios que foram postos. Para tanto, a produção intelectual de Weitling, em particular seu Garantias de Harmonia e Liberdade, fornece um referencial: “quando se lê o livro, sente-se que Weitling expressa aquilo que sente, pensa e deve pensar em sua condição de proletário”. Suas reflexões e produções intelectuais são interessantes porque “não são produções de uma teoria erudita e inútil, mas a expressão de uma nova prática que busca elevar-se à consciência”; são “uma consciência prática do presente”. (Bakunin, 2007[c], pp. 139-140, grifos adicionados) Obtém-se, aqui, o status e a concepção buscados. Com o primado da prática, a teoria passa a ser então concebida como “expressão direta da prática que se eleva à consciência de si” ou mesmo como consciência prática do presente. (Angaut, 2007a, p. 104) A teoria tem de encerrar-se na prática; deve-se “defender a prática contra toda ingerência da teoria”, recusando-se a “mobilizar a teoria para outra coisa que não seja fortalecer um engajamento prático”. (Angaut, 2009, p. 27)

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