• Nenhum resultado encontrado

FILOSOFIA E CÍRCULO DE STANKEVITCH EM MOSCOU (1836-1840)

DA FILOSOFIA À PRÁXIS (1836-1843)

2.2 FILOSOFIA E CÍRCULO DE STANKEVITCH EM MOSCOU (1836-1840)

Em janeiro de 1836, sem dar satisfações aos pais, sem bagagem, sem emprego e sem dinheiro, Bakunin abandonou Premukhino e dirigiu-se a Moscou, instalando-se na casa de Stankevitch e integrando-se imediatamente a seu círculo. Pensava em trabalhar como professor de matemática. Permaneceu os próximos quatro anos, de 1836 a 1840, entre Moscou e Premukhino, aprofundando-se no estudo dos filósofos dos alemães Johann W. von Goethe, Schiller, Jean-Paul Richter, E. T. A. Hoffman; e, depois, passando de Kant a Johann G. Fichte, e, deste, a Georg W. F. Hegel. (Bakunin, 36030[c]; Del Giudice, 1981, p. xv; Barrué, 2015a, p. 149)

Mesmo nunca tendo ingressado na Universidade de Moscou, Bakunin frequentou algumas aulas e usufruiu do ambiente daquela cidade que, distante da capital, conseguia, em alguma medida, fugir da repressão e estimular as discussões democráticas de temas literários, filosóficos e mesmo políticos entre membros de distintas classes sociais. (Nettlau, 1964, p. 33; Grawitz, 1990, pp. 51-53) Os traços fundamentais da correspondência de Bakunin desse período são os esforços de utilizar a filosofia para pensar em si mesmo, nos outros e nas relações pessoais.

Destacam-se, também, nesse período Moscou-Premukhino, dois conflitos pessoais. Aquele com Belinski – membro do Círculo de Stankevitch que, apesar das enormes divergências, foi muito influenciado por Bakunin e, adiante, tornou-se o mais célebre crítico literário russo de sua geração –, cujas relações foram marcadas por instabilidade e conflito, e subsidiaram ulteriormente parte considerável das críticas liberais a Bakunin. E aquele com Alexandre, que considerava o caminho escolhido pelo filho “repleto de obstáculos e armadilhas” (apud Brupbacher, 2015, p. 42) e o repreendia pelas escolhas; ao passo que o filho, em contraponto, pontuava: “minha liberdade não está à venda, e nem a minha dignidade de homem” (Bakunin, 36014[c], p. 2). O acirramento dessas desavenças culminou em 1836, com o pai “expulsando” Bakunin da família.

Quando se considera a formação filosófica mais consistente, levada a cabo entre 1836 e 1840, baseada em Fichte e, principalmente, Hegel, a trajetória de Bakunin insere-se

um aspecto importante, pois os relatos de Herzen sobre Bakunin, frequentemente utilizados como fonte, nem sempre são precisos ou mesmo corretos.

diretamente no quadro do idealismo alemão e da interpretação consumida pelos russos nos anos 1830.

Na Rússia, estava claro que se deveria rejeitar a autocracia por ela ser repressiva, ineficiente e grosseira. Mas não era tão evidente o que se poderia ou se deveria colocar em seu lugar; por isso, era bem natural que os intelectuais russos mergulhassem na nova onda dos filósofos europeus – os idealistas alemães, que iam de Schiller e Fichte a Hegel – buscando respostas. [...] Da literatura e da música românticas, era racional e óbvio voltar-se à filosofia que as subsidiava. Nela, Bakunin e seus colegas descobriram autores que falavam das reais questões do dever e da liberdade. (Leier, 2006, pp. 67-68)

Não se tratava, assim, de filosofia abstrata e metafísica, mas de uma busca, ao menos de parte dos membros do Círculo de Stankevitch, por respostas para questões reais e concretas da vida moderna, especialmente sobre as parcas realizações das promessas das revoluções burguesas. Com isso, aqueles jovens pretendiam autoeducar-se ideologicamente, no sentido da libertação social e política da Rússia, ainda que uma prática mais concreta nessa direção fosse dificílima, tendo em vista o contexto repressivo que vigorava no país. Foi por esse motivo que, elegendo o jornalismo crítico como campo de ação, os membros do círculo tiveram de “camuflar-se no complexo jargão filosófico” que, para além das complexidades do campo, demonstrava uma tentativa de fugir da censura. (Del Giudice, 1981, pp. 69-76)

A proximidade de Bakunin com Fichte foi intensa e breve, ainda que se possa dizer que ela teve efeitos duradouros. Seria adequado falar em um período propriamente fichteano de Bakunin durante o ano de 1836, com algumas reminiscências durante os primeiros meses de 1837. (McLaughlin, 2002, pp. 23-24) Do filósofo alemão, Bakunin traduziu ao russo as Einige Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten [Conferências sobre a Vocação do Sábio], de 179473, publicando-as no jornal literário Телескопе [Telescópio], que havia sido fundado cinco anos antes por Nikolai Nadezhdin, e no qual trabalhava Belinski. Nessas conferências, Fichte discute a vocação do homem como indivíduo e em sociedade e, com base no dilema entre liberdade e necessidade, propõe uma conciliação partindo da liberdade e a harmonizando com a igualdade. Também faz um chamado para a ação racional com vistas à melhoria da sociedade, em direção ao aprofundamento dos ideais iluministas. Para ele, é o ideal ético que permite julgar a realidade e nortear essa mudança, que deve se dar como resultante de uma ação no mundo real. Considera, assim, que a teoria é inseparável da ação racional, da prática. Em tal processo, sustenta que a educação é elemento fundamental para

73 Com exceção da Quinta Conferência, intitulada “Exame das Teses de Rousseau Acerca da Influência das Artes

qualificar as escolhas, e os educadores ou intelectuais (“sábios”) – intermediários entre o futuro, ideal e eticamente estabelecido, e sua implementação prática – são pessoas que têm tanto o compromisso de educar a sociedade quanto o de contribuir com a libertação humana. (Fichte, s/d; Leier, 2006, pp. 68-72)

Bakunin também foi influenciado pela leitura de Die Anweisung zum seligen Leben [O Caminho para a Vida Abençoada], de 1806, texto em que Fichte explicita suas concepções filosófico-religiosas. (Bakunin, 36034[c], p. 2; Nettlau, 1964, p. 33) As referências de Bakunin, frequentes nas cartas de 1836, ressaltam a concepção de amor promovida por Fichte: A vida é amor, e toda a forma e a força da vida não são outra coisa que o amor, não vêm senão do amor. Diga-me aquilo que verdadeiramente ama, aquilo que busca, aquilo a que aspira com todas as suas forças, na esperança de atingir a verdadeira plenitude de seu ser, e terá me explicado sua vida. Viva aquilo que você ama. [...] Amar, agir sob a influência de alguns pensamentos vivificados pelo sentimento – tal é o propósito da vida. [...] O propósito da vida, o objeto do amor verdadeiro é Deus... Não aquele a quem se reza nas igrejas, não aquele a quem se acredita contemplar com a própria humilhação, não aquele que, apartado do mundo, julga os vivos e os mortos. Não! Mas aquele que vive entre os homens, aquele que se eleva pela elevação dos homens, aquele que pronunciou pela boca de Jesus Cristo as palavras sagradas do Evangelho, aquele que fala pela voz do poeta. (Bakunin, 36017[c], pp. 2-3)

De Fichte, os membros do Círculo de Stankevitch – muitos dos quais haviam sido convertidos por Bakunin ao fichtismo – passaram a Hegel; seus membros foram os maiores difusores do hegelianismo na Rússia. Bakunin, já insatisfeito com o excesso de subjetivismo no pensamento fichteano, foi introduzido no estudo da obra hegeliana por Stankevitch em novembro de 1836, quando este trouxe ao grupo treze volumes do filósofo alemão, no original em alemão. Hegel passaria a ser, então, a maior influência teórico-filosófica de Bakunin e pautaria determinantemente seu pensamento e sua produção intelectual entre 1837 e 1842. Este é o período propriamente hegeliano de Bakunin, no qual ele preocupa-se mais com as questões da sociedade e da comunidade, e passa da influência do idealismo subjetivo e ético de Fichte para o idealismo objetivo de Hegel.

A partir de 1837 Bakunin debruçou-se dedicada e metodicamente sobre Hegel, estudando, até 1839, suas principais obras: Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Ciência da Lógica, Filosofia da Natureza, Filosofia do Espírito (Fenomenologia do Espírito, Filosofia do Direito, Filosofia da História, Filosofia da Religião e História da Filosofia). Tais estudos foram sistematizados, entre 1838 e 1839, em algumas centenas de páginas que fazem parte da obra completa de Bakunin. (Hepner, 1950, p. 89; Del Giudice, 1981, pp. 177-180, 232, 281,

283; Bakunin, 2000a) Com a partida de Stankevitch para o estrangeiro, em setembro de 1837, Bakunin tornou-se a principal referência do círculo e, entre 1838 e 1840, estabeleceu-se como o maior hegeliano na Rússia. Destacou-se por sua imensa habilidade filosófica e dialética, que foi demonstrada oralmente e por escrito, e que seria reconhecida por Herzen, Marx, Engels, Proudhon e Ruge. (Hepner, 1950, pp. 82-89; Del Giudice, 1981, pp. xi, xvii, 234-235) Entretanto, mesmo que a produção intelectual desses anos tenha em Hegel sua maior referência, Bakunin, nesse seu primeiro período hegeliano, também incorporou outras influências; dentre elas Fichte e, possivelmente, August Cieszkowski. (Del Giudice, 1981, pp. 317-318, 360)

Essa destacada posição de Bakunin foi conseguida por sua influência sobre outros pensadores russos e consolidada em duas publicações. O “Prefácio” aos Gymnasialreden [Discursos do Ginásio] de Hegel, de 1838, e “О философии” [Da Filosofia] de 1839-1840.74 O “Prefácio” – que precedeu os discursos de Hegel (realizados no Ginásio de Nuremberg, entre 1809 e 1815, quando era então reitor), os quais foram traduzidos pelo próprio Bakunin – foi publicado, juntamente aos discursos, no Московский наблюдатель [Observador de Moscou], em março de 1838. Trata-se, provavelmente, do escrito de Bakunin mais incompreendido, em função de sua proposição de uma reconciliação com a realidade, conceito hegeliano que ele mesmo introduziu na Rússia. (Del Giudice, 1982, pp. 161-162) Nesse texto, Bakunin propõe tal reconciliação, não numa chave conservadora, de defesa do absolutismo russo, conforme interpretação frequente, mas como uma dura crítica da abstração e do subjetivismo filosóficos.75 Por meio de uma defesa da inter-relação entre teoria e prática,

74 Esses foram os primeiros textos publicados de Bakunin. Mas sua primeira produção escrita é de 1837: um

artigo sobre Hamlet, de Shakespeare, no qual analisa a tragédia na chave da justiça, refletido sobre suas implicações nos campos do direito e da moral. (Bakunin, 37003[e])

75 Essa posição se apoia no trabalho pioneiro de Del Giudice (1981), que permanece, até hoje, o melhor estudo

sobre o primeiro período hegeliano de Bakunin (1837-1840). Neste estudo, ela dedicou-se a contrapor de modo primoroso aquilo que parecia ser um consenso entre toda uma geração de estudiosos de Bakunin e da esquerda hegeliana russa (Carr, Steklov, Polonsky, Pirumova, Annenkov, Martin Malia, Hepner entre outros): a noção de que o “Prefácio” de 1838 evidencia um Bakunin conservador, reacionário; um hegeliano de direita defensor do absolutismo russo. Mesmo autores contemporâneos – tão ou mais rigorosos que esses outros aqui citados, como J.-C. Angaut (2005, p. 46-47) e René Berthier (2010, vol. I, p. 6) – sustentam essa visão. Conforme demonstra Del Giudice, esse texto, se devidamente interpretado, evidencia uma ruptura com o período de metafísica e “interioridade” estética inspirado em Schelling, e a tomada de consciência da realidade objetiva e de suas

Bakunin investiga o fenômeno da alienação na modernidade e oferece a educação como resposta – esta permitiria a reintegração do indivíduo na totalidade social e ofereceria as condições para a ação racional.

“Da Filosofia” dá continuidade ao “Prefácio”76 e possui originalmente duas partes, que

foram escritas em 1839; a primeira foi publicada em 1840 na revista Отечественные записки [Notas da Pátria], editada por Andrei Kraevsky em São Petersburgo (onde Bakunin viveu de julho a novembro de 1839), e a segunda permaneceu inacabada e inédita. Este escrito é uma das maiores contribuições filosóficas da Rússia dos anos 1840, tendo colaborado, naquele país, para o desenvolvimento da filosofia, especialmente do idealismo objetivo hegeliano. (Del Giudice, 1981, p. 311) Marcando uma transição da filosofia para a práxis, a primeira parte do artigo discute o conhecimento filosófico e, partindo de um método crítico- dialético, elabora em profundidade o conceito de unidade entre teoria e prática como caminho para a mudança social. A segunda parte formaliza uma teoria da ação, sustentando que a mudança deve visar à liberdade e ser concebida em termos de uma transformação do mundo prático, resultado da realização da ideia racional por meio da vontade racional.

Ainda assim, cumpre pontuar que, em seu período hegeliano, Bakunin não foi ortodoxo. Tomou o filósofo alemão como ponto de partida mas, rapidamente, foi além dele, entendendo haver elementos revolucionários em seu pensamento, mas que careciam de desenvolvimento; e, para tanto, as contribuições de Fichte foram fundamentais. Como se pode notar, trata-se de um movimento similar àquele dos jovens hegelianos alemães, dos quais Bakunin soube da existência em 1838. Mesmo se desenrolando independentemente, as ideias de Bakunin e dessa esquerda hegeliana encontram paralelos e similaridades. (Del Giudice, 1981, p. xx)

Em 1840, a situação de Bakunin em Moscou era complicada: o Círculo de Stankevitch havia praticamente se dissolvido e ele vivia, desde sua chegada, de favores e com o dinheiro alheio. Ao mesmo tempo, a realidade na Alemanha mostrava-se promissora, não apenas em termos profissionais, mas principalmente filosóficos. Bakunin decidiu então mudar-se para Berlim. Pretendia doutorar-se e retornar para ser professor na Universidade de Moscou.

manifestações concretas. No “Prefácio”, Bakunin mostra-se crítico da realidade e partidário da mudança social. (Del Giudice, 1981, pp. 242-243)

76 Ainda de acordo com Del Giudice (1981), o pensamento de Bakunin entre 1838 e 1842 possui continuidade.

Tal tese rompe também com o argumento de que foi apenas depois da ida para a Alemanha, em 1840, que Bakunin rompeu com o conservadorismo e, em função da influência da esquerda hegeliana, assumiu uma posição revolucionária. Para Del Giudice (1981, p. vii), há “continuidade lógica na evolução do pensamento de Mikhail Bakunin antes e depois da data ‘crucial’ de 1840”, ou seja, do “Prefácio” de 1838 até “A Reação na Alemanha” de 1842, passando por “Da Filosofia” de 1839-1840.

Convenceu seu pai, já reconciliado com ele, e Aleksandr Herzen – o qual havia conhecido juntamente com Nikolai Ogarev, um ano antes – a comprometerem-se com uma contribuição financeira futura e planejou a mudança. (Nettlau, 1964, p. 34; Carr, 1961, pp. 82-93)

Documentos relacionados