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RÚSSIA, OS BAKUNIN, PRIMEIROS ANOS EM PREMUKHINO E SÃO PETERSBURGO (1814-1835)

DA FILOSOFIA À PRÁXIS (1836-1843)

2.1 RÚSSIA, OS BAKUNIN, PRIMEIROS ANOS EM PREMUKHINO E SÃO PETERSBURGO (1814-1835)

Esquerda hegeliana na Alemanha (1840-1842); 4.) Comunismo na Suíça (1843). Ao final, numa quinta parte, ele apresenta elementos importantes para a compreensão da teoria política bakuniniana no período em questão.

2.1 RÚSSIA, OS BAKUNIN, PRIMEIROS ANOS EM PREMUKHINO E SÃO PETERSBURGO (1814-1835)

Mikhail Aleksandrovitch Bakunin nasceu na Rússia, em 30 de maio de 181467, no seio de uma família de nobres em Premukhino, propriedade localizada na província do Tver, entre Moscou e São Petersburgo. Seus pais, Alexandre (Aleksandr) e Varvara Bakunin (nascida Varvara Muravieva), tiveram 11 filhos, sendo Mikhail o terceiro mais velho e primeiro homem.

No início de século XIX, o Império Russo tinha como principal fundamento as relações de servidão entre nobres proprietários de terras e servos camponeses, estes que constituíam 85% da população. A economia russa, de base predominantemente agrária, caracterizava-se pela baixa produtividade, encontrando no comércio internacional (especialmente de cereais, minerais, madeira e cânhamo) os recursos indispensáveis para sua sobrevivência. O Império era governado de forma absoluta e centralizada pelo czar – naqueles anos, respectivamente, Alexandre I (1801-1825) e Nicolau I (1825-1855) –, num regime de poder quase ilimitado do Estado, no qual a violência e a arbitrariedade constituíam regra, sem proporcionar quaisquer liberdades, mesmo à nobreza; a terra era considerada propriedade do

67 Data relativa ao calendário gregoriano, adotado na Rússia somente em 1918; de acordo com o calendário

czar e havia a obrigatoriedade de serviços por parte dos súditos em geral. (Tragtenberg, 2007, pp. 43, 86-87)

A família Bakunin fazia parte da nobreza russa desde o século XVI, quando ascendera na hierarquia social e tivera membros ocupando postos destacados no Estado. Em 1779, Mikhail Bakunin e Liubov P. Myshetskaya (avós de Mikhail) adquiriram a propriedade de Premukhino, onde passaram a morar com os filhos – mas Alexandre Bakunin (pai) seguiu um caminho diferente dos irmãos. Nascido em 1768, foi enviado à Itália aos nove anos, em razão de uma debilidade física; a família pensava que, naquele país, o jovem poderia beneficiar-se do clima mais ameno. Lá permanecendo, ingressou na Universidade de Pádua, concluiu seu doutorado em história natural e, em seguida, trabalhou na diplomacia russa em Florença e Turim. Presenciou, não apenas na universidade, mas também nas viagens que fez, um ambiente político e intelectual liberal, profundamente distinto daquele que vigorava na Rússia, e influenciou-se positivamente pela Revolução Francesa, que ocorria então.

Em função de um problema de saúde de seu pai, Alexandre teve de retornar à Rússia para dedicar-se à gestão da propriedade familiar. Premukhino era parte de uma propriedade maior, composta de três vilas, que contavam juntas com 16 km2 de floresta, 3 km2 de terras agrícolas e 1,5 km2 de pastos. Além

disso, os Bakunin possuíam 500 servos (homens adultos). Somente para servir a casa de Premukhino havia 35; outros 30 dedicavam-se à serventia das outras casas e o restante trabalhava na terra, no corte de madeira, na criação de animais, na pesca, na produção de roupas e de outros bens. Quando Alexandre retornou, a propriedade possuía enormes problemas de gestão e vultosas dívidas. Foram necessários significativos esforços de sua parte para saná-los.

Por volta de 1801, graças a uma herança recebida por sua mãe, os domínios familiares puderam ser melhorados e os servos chegaram a mil. Dois anos depois, com a morte de seu pai, Alexandre tornou-se senhor de Premukhino, e parte de seu empenho à frente da propriedade foi marcado por uma tentativa de modernização liberal. Propôs a seus servos um “Acordo entre senhor e camponeses” que, caracterizado pela moderação contrária à tirania, e

obviamente sem colocar em xeque sua condição de senhor, pretendia implementar direitos e deveres mútuos, além de garantir terras e direitos hereditários para os servos. Visava, com isso, não somente ao aumento de produtividade, à fidelidade dos camponeses e à conciliação de classes, mas também à promoção do progresso e da tranquilidade, garantindo uma convivência harmoniosa, próspera e feliz entre todos. (Leier, 2006, pp. 3-10; Carr, 1961, pp. 3-6)

Em 1810, com 42 anos, Alexandre apaixonou-se pela jovem Varvara Muravieva, de 18 anos. Nascida em 1791, ela também provinha de uma família nobre. Seu pai, Alexandre F. Muraviev, falecera um pouco depois do nascimento da filha, e sua mãe, viúva, casara-se depois de alguns anos com Paul Poltoratsky – que possuía uma propriedade, Bakhovkino, nas imediações de Premukhino – e levara consigo Varvara. (Randolph, 2007, p. 94) Alexandre e Varvara casaram-se naquele mesmo ano de 1810, e logo tiveram os primeiros filhos. Foram, como apontado anteriormente, 11 no total: a mais velha, Liubov, nasceu em 1811, seguida de Varvara, em 1812; Mikhail Bakunin, o primeiro homem, em 1814; Tatiana e Alexandra (1815 e 1816); Nikolai, Ilya, Pavel, Alexander e Alexei (entre 1818 e 1823) e Sofia (1824), que morreu de disenteria com dois anos. (Nettlau, 1964, pp. 29-30)

Em relação ao processo de educação dos filhos, Alexandre estabeleceu diretrizes similares àquelas adotadas em relação aos servos, resolvendo

incluir as crianças no experimento liberal de Premukhino. Inspirado pelo

Emílio, de Jean-Jacques Rousseau, Alexandre sinceramente tentava não

incorrer nos erros que haviam transformado sua infância em “tédio e cativeiro”. Em vez da frieza de sua mãe e do autoritarismo de seu pai, ele encorajaria seus filhos a discordar dele; quando fosse necessário instruí-los ou corrigi-los, ele utilizaria a razão, a orientação, a sugestão. Mais impressionante na Rússia Ortodoxa, ele não insistiria para que seus filhos fossem religiosos, mas “tentaria apenas mostrar-lhes que a religião é a única base de toda virtude e de nossa completa prosperidade”. (Leier, 2006, p. 13) Tal modelo de educação, que foi o mesmo adotado para filhos e filhas, distinguia-se sobremaneira daquele que vigorava na nobreza russa, em especial por estimular a racionalidade e o pensamento crítico.

Refletindo sobre isso num bosquejo autobiográfico iniciado em 1871 e nunca terminado68, Bakunin, qualificando seu pai como “um homem muito sagaz, muito instruído e mesmo erudito, muito liberal, muito filantropo, deísta não ateu, mas livre pensador”, entendia que, por isso mesmo, ele era um homem “em completa contradição com tudo aquilo que existia e que ele respirava em seus tempos de Rússia”. Criado e educado no exterior, Alexandre reproduzia em Premukhino modos e valores ocidentais, que pouco tinham a ver com a realidade da maioria dos russos: seus filhos, educados sobretudo em francês, usufruíam de condições quase inexistentes na Rússia e praticamente desconheciam seu próprio país. (Bakunin, 71030[o], pp. 1-2)

A educação de Bakunin, levada a cabo pelo pai e por tutores de diferentes nacionalidades, incluía aulas de ciências naturais, história, geografia, filosofia, matemática, literatura ocidental, artes, religião e música. (Carr, 1961, pp. 8-9) Em termos morais, Bakunin recorda-se, no mencionado bosquejo autobiográfico, não ter cultivado naqueles anos qualquer base mais robusta de valores, normas e padrões, capazes de subsidiar um julgamento mais consistente do mundo à sua volta. Entretanto, considera, numa análise bem mais crítica do que aquela do momento, que havia naquele contexto uma desvirtuação de sua educação moral, pois toda sua “existência material, intelectual e moral estava baseada numa injustiça gritante, numa imoralidade absoluta, na escravidão de nossos camponeses que sustentavam nosso ócio”. (Bakunin, 71030[o], p. 3) Ou seja, as premissas que tornavam possível sua educação eram garantidas pela exploração do trabalho dos servos e havia, inegavelmente, uma contradição entre os valores preconizados por Alexandre e a situação a que os servos estavam submetidos.

No geral, a educação progressista e liberalizante recebida por Bakunin proporcionou a ele certa solidez em distintas áreas do conhecimento. Possibilitou, ainda, condições para a manutenção da posição social familiar, para uma ampliação de horizontes e, mesmo, para o questionamento de determinados aspectos do statu-quo. Contudo, tal paradigma educativo vigorou somente até 1825, quando Bakunin tinha apenas 11 anos. Depois disso, por razão dos desdobramentos do Levante Decembrista, Alexandre, com receio e medo do que poderia acontecer no futuro, modificou radicalmente suas posições.

Tal levante concretizou-se em 26 de dezembro de 1825, quando, com a repentina morte de Alexandre I e o cenário de incertezas que se seguiu, duas sociedades secretas de

68 “Histoire de ma vie: Première Partie – 1815-1840” [História de Minha Vida: primeira parte – 1815-1840]

(Bakunin, 71030[o]) é um pequeno texto escrito em 1871, no qual Bakunin inicia uma exposição de sua história da vida. Como diversas outras produções, esta também permaneceu inacabada. Foram escritas apenas 12 páginas, nas quais Bakunin aborda seus primeiros anos em Premukhino. Destaca-se, nesse texto, ainda, uma discussão um pouco mais pormenorizada do Levante Decembrista de 1825.

oficiais progressistas vinculados à baixa e à média nobreza protagonizaram uma tentativa de golpe de Estado, visando a solucionar a crise econômica e política que assolava a Rússia.69 Colocava-se, para o país, uma necessidade iminente de modernização, que era encampada por esses agrupamentos políticos clandestinos, que haviam surgido em 1816, como fruto do endurecimento de Alexandre I, posterior à vitória na guerra contra a França.

Dois agrupamentos, constituídos em 1821 a partir de uma cisão – a Sociedade do Norte, politicamente mais moderada, que preconizava uma monarquia constitucional de inspiração inglesa70, e a Sociedade do Sul, politicamente mais radical, que preconizava uma

república de inspiração francesa e norte-americana –, encabeçaram o movimento decembrista (assim chamado em função do mês do sua ocorrência). Este deveria, segundo seus protagonistas, marcar essa mudança modernizante na Rússia – por meio da tomada do poder de Estado – e iniciar-se com a recusa das tropas a prestar juramento ao novo czar, Nicolau I. No dia do juramento, os oficiais sediciosos conseguiram reunir 3 mil militares na praça do Senado em São Petersburgo e, sem um planejamento consistente, ocuparam-na, lá permanecendo. As tropas do czar posicionaram-se em frente aos rebeldes aguardando ordens, e assim se mantiveram por algumas horas. Depois de um tempo de hesitação, Nicolau I ordenou o massacre: os insurgentes foram duramente reprimidos com tiros de canhões e perseguidos, até que, no fim do dia, a sublevação foi completamente contida. Os insurgentes foram duramente punidos com perdas de direitos, trabalhos forçados, deportações para Sibéria e Cáucaso, e até mesmo com a morte. Ademais, instaurou-se, por parte de Nicolau I, um regime generalizado de profunda repressão política e intelectual. (Brupbacher, 2015, pp. 21- 26; Tragtenberg, 2007, p. 54; Hepner, 1950, pp. 37-48)

A proximidade dos Bakunin com os rebeldes – dentre os quais Sergei Muraviev- Apostol, primo de segundo grau de Varvara (mãe), que terminou enforcado – e o ambiente familiar conhecido pelas ideias liberais subsidiaram a mencionada virada conservadora de Alexandre: quanto aos servos, ele passou a enxergar a relação com os senhores algo natural; quanto à educação dos filhos, passou a reforçar para eles a fidelidade ao novo czar. No

69 Economicamente, pioravam as condições para o comércio internacional e complicavam-se as exportações dos

produtos agrícolas. Mesmo com o crescimento da industrialização, o modelo quase totalmente agrário de produção era ainda marcado pela baixa produtividade e as relações de servidão. Politicamente, a guerra com a França mostrara fraquezas do Império e as necessidades de um exército maior e com maior capacidade operativa, maiores quantias em dinheiro e um modelo de governo mais moderno. (Brupbacher, 2015, p. 19; Leier, 2006, p. 25)

70 Conforme apontado por Leier (2006, p. 24), a afirmação de Bakunin (71030[o], p. 1) de que seu pai teria sido

entanto, uma semente distinta já havia sido plantada, e teria, ao menos em Mikhail, efeitos mais duradouros do que essas novas posições.

Em novembro de 1828, Bakunin, com 14 anos, partiu para São Petersburgo com a pretensão de seguir a carreira militar. Ingressou em fins de 1829 como cadete na escola de artilharia de São Petersburgo, posição que ocupou até os fins de 1832. Em seus três anos como cadete, permaneceu confinado na escola; nostálgico, desmotivado e pouco aplicado, adotava, como os outros cadetes, comportamentos heterodoxos que, sem possuir caráter público ou articulado, serviam para minimizar os impactos do ambiente autoritário em que vivia.

Bakunin vivenciava um choque cultural naquele que

era, afinal, seu primeiro contato mais aprofundado com a realidade russa: por um lado, mostrava-se admirado com o patriotismo dos colegas, que “amam sua pátria, adoram seu soberano e sua vontade é uma lei para eles; nenhum deles hesitaria sacrificar seus interesses mais caros, e mesmo sua vida, para o bem do czar e da pátria” (Bakunin, 31005[c], p. 6); por outro, surpreendia-se negativamente com as posições morais deles, afirmando, alguns anos adiante, a seu pai: “Na escola de artilharia aprendi de uma só vez tudo o que a vida pode apresentar de sombrio, de sujo e de odioso”. (Bakunin, 37055[c], p. 19) Começava a enfrentar, naqueles anos, um grande dilema, central no período subsequente de sua vida: Era inevitável seguir as necessidades do dever? Ou havia possibilidade de usufruir de alguma liberdade?

Em janeiro de 1833, aos 18 anos, Bakunin foi promovido a oficial, o que trouxe a ele maior autonomia. Numa visita a Premukhino, em agosto, envolveu-se na polêmica do casamento de sua irmã Liubov, que estava profundamente infeliz por ter aceitado o matrimônio com o barão Renne, algo que fizera por sacrifício e submissão à família. Bakunin conseguiria, algum tempo depois, aquilo que entendia como a libertação da irmã: os pais foram por ele persuadidos e o casamento foi cancelado. As irmãs Bakunin – que haviam recebido a mesma educação que ele, e que participavam ativa e igualitariamente das discussões familiares e das primeiras conversações filosóficas, com Mikhail e as irmãs Alexandra e Nathalie Beer – também vivenciavam esse dilema relativo às suas obrigações de classe. (Shatz, 1999) Questionavam se os desígnios familiares do casamento deviam

realmente ser seguidos, ou se havia possibilidade de um amor romântico. E o desfecho do caso Liubov, em alguma medida, mostrou a todos que era possível encontrar a felicidade e as realizações pessoais fora dos deveres sociais e familiares. Além disso, Mikhail estimulou reflexões, marcadamente progressistas, acerca das relações entre homens e mulheres, o casamento, a sexualidade e o amor em geral.

Não parece haver dúvida que o episódio de Liubov contribuiu para que Bakunin começasse a pensar mais seriamente em seu próprio destino. Escreveu às irmãs em janeiro de 1834, dizendo que aquele início de ano havia sido um período de “revolução intelectual” para ele. Sentia-se deslocado em relação à sua própria classe, analisava-se a si mesmo e decidia dedicar-se completamente ao seu próprio aprimoramento intelectual: “Agora estudo com paixão, pois é somente na ciência da natureza que se pode buscar o prazer sobre a Terra”, escreveu. Tal processo foi fortalecido por Nikolai N. Muraviev, primo de sua mãe, que lhe recebeu em casa e incentivou o estudo da política e da filosofia. (Bakunin, 34002[c], pp. 1-5)

Mas, em fevereiro de 1834, Bakunin foi duramente punido. Andava pela cidade em trajes civis e, ao ser cobrado por seu comandante, deu-lhe uma resposta atravessada. Por isso, foi expulso da escola de artilharia e, mesmo continuando no exército, terminou condenado a permanecer três anos sem promoções, e a ser transferido para uma distante região de fronteira com a Polônia. Em sua nova rotina, marcada novamente pelo tédio e pela dificuldade de relacionamento, conheceu o médico Danylo Vellansky, que mantinha contato com pensadores românticos e idealistas da Rússia, e que havia estudado com Schelling, na Alemanha. Sob sua influência, aproximou-se do romantismo e dedicou-se à leitura de D. Venevitinov, F. Schiller, A. Pushkin e à apreciação de L. van Beethoven.

O romantismo teve um papel peculiar para Bakunin. Distintamente da interpretação de Carr (1961, p. 21) e Grawitz (1990, p. 54), que observaram na relação de Bakunin com o romantismo uma tentativa de fuga da realidade, deve-se considerar, como Leier (2006, p. 47), que, ao menos na Rússia, o processo foi outro. Não se tratava da “retirada para um mundo lânguido dos sonhos”, mas de um “engajamento no mundo real”, que resultava da “incapacidade do regime para a mudança”. O “refúgio na ortodoxia, na autocracia e na nacionalidade de Nicolau I fizeram com que pensadores e artistas da juventude russa olhassem para o ocidente em busca de inspiração”. Russos como Pushkin, Venevitinov e o decembrista Alexander Bestuzhev, todos lidos por Bakunin, possuíam, além de seu vínculo com o romantismo, preocupações com as questões políticas – e foram reprimidos por isso. Durante os anos 1830, quando os principais traços do pensamento de Bakunin eram o

patriotismo e o cristianismo, esse contato com o romantismo permitiu que ele se aproximasse da realidade, questionando sua própria vida e concebendo soluções em alguma medida críticas.

Na fronteira com a Polônia, Bakunin aproveitou-se dos longos períodos sem nada para fazer. Teve acesso a uma biblioteca, que lhe possibilitou continuar os estudos em filosofia, história, matemática, estatística, física e estratégia militar.71 Triste e desmotivado pelo marasmo, e afirmando que “tudo em mim exige atividade, movimento”, Bakunin dizia estar disposto a romper com seus deveres para dedicar-se à ciência e ao serviço civil. (Bakunin, 34012[c], pp. 3-5) Tal inclinação, a bem da verdade, naquela altura era já uma decisão tomada. Bakunin apenas aguardava a circunstância adequada para abandonar o exército.

Ela apareceu no início de 1835, quando ele foi designado para ir ao Tver comprar alguns cavalos e, em sua ida, desviou-se do caminho dirigindo-se a Premukhino, sob pretexto de doença. Nunca mais retornaria ao exército. Nem mesmo seu pai – que lhe conseguiu, depois disso, um posto no serviço civil do Tver (não aceito por Mikhail) e, em seguida, sua demissão do exército sem punições – conseguiu dissuadi-lo da decisão de dedicar-se aos estudos.

Em Premukhino, onde passou todo o ano de 1835, Bakunin tentou dar continuidade ao seu projeto, mas teve dificuldades, principalmente por causa dos conflitos familiares. Durante aquele ano, estabeleceu relações com Nikolai Stankevitch, um jovem membro da intelligentsia russa que coordenava um importante círculo filosófico-literário, o qual reunia jovens semanalmente para consumir e discutir música, poesia romântica e filosofia ocidentais. Esse círculo ficou historicamente conhecido como o “Círculo de Stankevitch” e, juntamente com o “Círculo de Herzen e Ogarev” – que, também fundado em 1831, agregava outros jovens da intelligentsia russa –, foi responsável pela promoção do pensamento ocidental (especialmente francês e alemão) na Rússia.72 Stankevitch, que se tornou o mentor intelectual

71 Do período 1833-1834, destacam-se, no campo das leituras, além dos mencionados românticos: A Riqueza das

Nações, de Adam Smith; Tableau des Révolutions de l’Europe dans le Moyen Âge [Quadro das Revoluções da

Europa na Idade Média], de Christophe-Guillaume Koch; as ficções de Faddey Bulgarin, Nicholas Grech e Mikhail Zagoskin. (Bakunin, 33016[c], p. 2; Leier, 2006, pp. 43, 54)

72 A esses dois círculos, Marshall Shatz – em seu artigo “Mikhail Bakunin and the Priamukhino Circle: love and

liberation in the Russian Intelligentsia of the 1830s” [Mikhail Bakunin e o Círculo de Premukhino: amor e libertação na intelligentsia russa dos anos 1830] – entende ser possível adicionar ainda um terceiro, constituído posteriormente, mas também naquela primeira metade dos anos 1830: o “Círculo de Premukhino”: “Bakunin, suas irmãs, suas amigas mais próximas, Nathalie e Alexandra Beer, e, em menor medida, seus cinco irmãos mais jovens, formavam um grupo íntimo. Ainda que seus membros não o chamassem assim, ele pode ser razoavelmente chamado de Círculo de Premukhino”. (Shatz, 1999, p. 1) Cumpre ainda notar que o relato de Herzen, constantemente reproduzido pelos historiadores – de que o Círculo de Stankevitch era mais voltado à filosofia alemã, mais abstrato e reacionário, e que o Círculo de Herzen e Ogarev era mais voltado ao pensamento francês, mais concreto e progressista – não corresponde à realidade. (Del Giudice, 1981, pp. 78-84) Isso indica

de Bakunin, introduziu-o à filosofia alemã, especialmente por meio da obra de Immanuel Kant – estudaram juntos a Crítica da Razão Pura, não sem imensas dificuldades da parte de Bakunin. (Angaut, 2010a; Del Giudice, 1981, pp. 99-100)

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