• Nenhum resultado encontrado

Outro aspecto econômico relevante para que se entenda o contexto das dificuldades dos agricultores, que pode ter motivado o surgimento do movimento religioso dos monges

barbudos, é o das mudanças na produção e comercialização do fumo ocorrido na década de

1930. De origem sul-americana, a erva era cultivado pelas populações nativas. No Rio Grande do Sul, com a colonização alemã, no século XIX, o tabaco passou a ser produzido em larga escala, especialmente em Santa Cruz, mas também em Soledade e Sobradinho, tornando-se importante produto de transformação e exportação. Desde o final da Primeira Guerra Mundial, a agricultura simples e sem adubação, passou a requerer a utilização de fertilizantes químicos, secagem em fornos e acompanhamento técnico por parte das grandes empresas. Assim, foram sendo estabelecidas outras formas de relação que significaram maior subordinação dos agricultores e dos colonos frente aos interesses da indústria fumageira.

O tema do plantio e industrialização do fumo também foi abordado por Wolfgang Harnisch105. Ele afirmava que 99,9% do fumo de “todos os cigarros fumados entre Manaus e

Jaguarão” provinham do Rio Grande do Sul. O autor alemão registrou o depoimento de um

101 HARNISCH, Wolfgang Hoffmann. O Rio Grande do Sul. A Terra e o Homem. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 288, 385, 403.

102 Com a Revolução de 1930, o ex-deputado e senador eleito em 1928, José Antônio Flores da Cunha (PRR), “discípulo de Borges de Medeiros”, foi nomeado pelo presidente provisório Getúlio Vargas como interventor federal no Rio Grande do Sul. Permaneceu como interventor até 1935, quando foi eleito pela Assembleia Legislativa para governar o Estado. Em 17 de outubro de 1937, abandonou o cargo e foi exilar-se no Uruguai. Conforme GERTZ, René E. O Estado Novo no

Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005, p. 11-13.

103 SOLEDADE. Oficio s/n., Do Gabinete do Prefeito Reinaldo Heckmam, 22 de setembro de 1937. Correspondência Expedida, 1937. Lata 128, Maço 384. (AHRGS)

104 SOLEDADE. Relatório financeiro Soledade. Do Prefeito interino, Olmiro Ferreira Porto, para o secretário do Interior, Miguel Tostes. Correspondência Expedida Soledade, 3 de agosto de 1938. Lata 128, maço 384. (AHRGS)

velho colono que afirmava serem as terras de Santa Cruz, principalmente aquelas que recentemente tiveram as matas derrubadas, ótimas para o plantio do fumo. Ali o fumo levava três meses para se desenvolver. No entanto, advertia o velho entrevistado: “Acho que os atuais processos de fumo-de-forno só servem para lançar o colono na miséria, porque o seduz à monocultura, fazendo com que esqueça até de plantar os seus víveres indispensáveis. Além disso, o fumo-de-forno depende muito dos ‘anos bons’, aliás, bem raros”. Como se verifica, não eram somente André Ferreira França, Anastácio Fiúza e o monge João Maria que percebiam as desvantagens no plantio de fumo, como será visto no capítulo 5.

Na época da Primeira Guerra Mundial, os norte-americanos desenvolveram um fumo a partir da utilização de adubos químicos para a preparação do solo para o plantio. As folhas tornaram-se mais leves, menores e mais claras, resultando um fumo mais “apreciado” e mais bem pago, desenvolvido em dois meses. Esse fumo passou a ser conhecido como fumo-de- forno por necessitar da secagem em forno de tijolos ao estilo de uma torre106, utilizando

carvão para o processo de industrialização. As pesquisas e a sofisticação dos métodos de produção iam monopolizando os negócios do tabaco. Em 1919, foi criada a Companhia de Fumos Santa Cruz, consórcio entre as seis fábricas existentes que, unidas, atingiram a marca de 100 milhões de cigarros. A partir de 1920, a Companhia Brasileira de Fumo em Folhas, firma autônoma, de aquisição de fumos, do grande consórcio de cigarros Souza Cruz, começou a incentivar que os colonos produzissem o fumo-de-forno. Criaram regiões de cultivo, cada qual com um instrutor da companhia que visitava sistematicamente cerca de 100 colonos: distribuíam as sementes e descontavam um valor referente ao adubo na época da safra. Assim, o colono assumia o compromisso de entregar a colheita.107

Com o tempo, o fumo-de-forno foi superando o fumo-de-galpão. Nos arredores de Santa Cruz havia centenas de fornos “a fumegar”. O Rio Grande do Sul tinha a primazia no fornecimento do fumo-de-forno para os cigarros de todo o Brasil e algumas quantidades eram exportadas para a Argentina. O fumo-de-galpão esterilizado continuou a ser utilizado para cigarros. Fermentado ao natural, servia para cigarrilhas. Também era exportado para ser transformado em charutos na Alemanha, Argélia, Holanda e Suíça. Em 1938, foram negociados com o exterior 50 mil fardos com 70 kg.108 Nas roças de fumo-de-galpão,

terminada a colheita, o colono selecionava as sementes dos melhores pés que podiam alcançar de dois a três metros. A produção de cada colono estava em torno de 100 a 300 arrobas. A

106 HARNISCH, Wolfgang Hoffmann. O Rio Grande do Sul. A terra e o homem. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 391- 2.

107 Ibidem, p. 393, 395. 108 Ibidem, p. 393.

Companhia de Fumos publicava os preços em 1o de abril. Segundo Harnisch, cada cem

arrobas, nos anos de boa colheita, podia render cinco contos de réis.109

Em 1939, a produção nacional de fumo em folha era de 52.493 t. O Rio Grande do Sul era responsável por 23.213 t, mais de 44% do total. Sobradinho era o segundo maior produtor estadual com 2.875 t, ficava atrás somente de Santa Cruz, com 5.504 t – 23,71%, e à frente de Venâncio Aires, produtor de 2.251 t. Os três municípios eram responsáveis por 45,79% do tabaco gaúcho e 20,25% da produção brasileira.110 Verifica-se desta forma que, ao falar sobre

os riscos do fumo, fosse por ser guardado nas casas, ou por exigir vários esforços dos agricultores, os monges barbudos estavam a desafiar interesses muito poderosos e articulados com grandes interesses nacionais e internacionais.

A situação dos plantadores de fumo de Sobradinho pode ser exemplificada com o processo crime envolvendo Guilherme Steinhaus111, em 1939. As dívidas dos agricultores no

comércio faziam com que, na época da safra, uma alternativa fosse tentar buscar outro comerciante para ganhar algum recurso pela safra. Esta era uma das poucas formas de tentar driblar as dívidas, senão a safra toda era consumida no pagamento dos débitos ou na sua renovação. Assim fez Guilherme, entregou uma parte da safra de fumo para Albino Faller, para quem já era devedor, e o restante a Egídio Lazzari. Foi processado por isso.

A situação de submissão e dependência que se encontravam os agricultores chamava a atenção dos estudantes. Em abril 1938, no 2o Congresso da União Nacional de Estudantes

foram apresentadas teses sobre o ensino rural onde eram defendidas medidas como o estabelecimento do crédito agrícola para “liberar o camponês do tão conhecido processo de receber por conta da safra, nos armazéns e casas de comércio, onde ficavam presos pelo resto da vida”.112 Outra alternativa para obter algum dinheiro era conseguir emprestado. Os

advogados estavam entre aqueles com capital disponível para empréstimos. Em novembro de 1940, o agricultor Francisco C. da Silva, fabricante de fumo em corda, morador do 1o distrito

de Sobradinho, recorria ao advogado Henrique de Freitas Lima Filho para fazer um empréstimo de um conto de réis.113

Assim verifica-se que as condições de vida dos trabalhadores rurais não eram das melhores. Em Sobradinho, na época da safra, os colheiteiros de fumo moravam em barracas de lona. Fácil de imaginar as dificuldades com o inverno especialmente em uma das regiões

109 HARNISCH, Wolfgang Hoffmann. O Rio Grande do Sul. A terra e o homem. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 394. 110 FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul. Censos do RS: 1803-1950. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística/Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, 1986, 2. imp., p. 222, 235.

111 RIO GRANDE DO SUL. Justiça Pública. Processo Crime Guilherme Steinhaus e Francisco Baptista. Sobradinho, primeiro distrito, maio de 1939, n. 101, autos n. 511, maço 19. (APERS).

112 POERNER, Artur José. O Poder Jovem. História da Participação Política dos Estudantes Brasileiros. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 138-9.

113 RIO GRANDE DO SUL. Justiça Pública. Processo Crime Francisco C. da Silva, Sobradinho, 2. zona do primeiro distrito, 1940. n. 324, autos n. 728, maço 27. (APERS)

mais frias do estado. Outra habitação, que parecia ser comum, eram as pequenas casas de madeira com teto baixo e de capim. Em períodos de seca, a palha incendiava com facilidade. Dois acidentes deste tipo vitimaram o casal Alfredo Alves e Maria Olália da Rosa, moradores do 2o distrito de Sobradinho, em Boa Esperança.114 Em 15 de maio de 1941, a moradia do

casal foi incendiada. Abrigaram-se na casa do genro. Três dias depois, a casa de Adão Gonçalves, uma construção de madeira de 4 m de largura por 6 m, também pegou fogo. A causa mais provável do sinistro era que o fogo tenha começado no fogão, feito no chão, a um metro e meio do telhado.115

Um terceiro tema abordado por Wolfgang Harnisch que chama a atenção é o do comércio de ágatas. Sabe-se que Anastácio Desidério Fiúza comercializava, em Lajeado, suínos e cristais de quartzo de Soledade. O autor afirmou que, na década de 1930, encontrava- se em Santa Cruz um dos maiores negociantes rio-grandenses de pedras preciosas: Wilhelm Lamberts. Alemão de Idar ele exportava para sua terra natal as ágatas, ametistas e topázios brasileiros. Da Alemanha iam para a África. No Rio Grande do Sul, existia uma grande reserva de ágatas e os melhores “topázios” (citrinos), quase todos de Soledade e Palmeira. A exportação total estava estimada em três mil contos. O polimento das pedras, em Porto Alegre, tinha iniciado há pouco tempo.116