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Polêmicas da colonização: intrusos, corrupção e terras indígenas

Desde o início do século XX, o município de Soledade estava em processo de colonização. Conforme pesquisa de Sérgio da Costa Franco159, as “amplas extensões de terras

devolutas”, atraíam interesses públicos e privados. Para o autor, essa situação ocorria porque faltava aos posseiros recursos e informações para a legalização das terras, além disso, as florestas eram consideradas como áreas públicas. Assim, foram sendo estabelecidos os núcleos coloniais. Colonos ítalo-brasileiros provenientes de Guaporé e Anta Gorda foram para o distrito de Itapuca; de Caxias e Dona Francisca foram para a colônia São Paulo, em lotes colonizados pela Companhia Predial e Agrícola; e outras famílias fixaram moradia em Espumoso e na Nova Colônia de Sobradinho.160

Ao mesmo tempo, entre 1900 e 1918, agricultores teuto-brasileiros foram para Tunas, para o Arroio do Tigre e para colônias na divisa com o município de Santa Cruz de onde alguns eram procedentes. Reflexo deste aumento populacional, em janeiro de 1903, Tunas passava a vila, sede do sexto distrito de Soledade.161 Os migrantes de origem alemã trouxeram

a religião luterana e a assistência religiosa para as famílias evangélicas fixando pastores e

159 FRANCO, Sérgio da Costa. Soledade na história. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Soledade, 1975, p. 105. O trabalho deste autor serviu como referência de informação em diversos aspectos desta dissertação.

160 PELLANDA, Ernesto. Imigração e Colonização Italiana. In: BECKER, Klaus (org.). Enciclopédia Rio-Grandense. V. 1. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 1968, p. 146; BANDEIRA, Aurélio. Aspectos Históricos. In: BRIDI, Eda Thereza Piccinin (coord). Histórico de Sobradinho. Venâncio Aires: Ouro Verde, 1976, p. 19.

161 BANDEIRA, Aurélio. Op. cit., p. 19; RIO GRANDE DO SUL. Assembleia Legislativa/Comissão de Estudos

Municipais. Os novos municípios gaúchos: Tunas. Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 1988, p. 17; FORTES, Amyr Borges & WAGNER, João B. S. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1963, p. 419-22; DEPARTAMENTO ESTADUAL DE ESTATÍSTICA. Divisão administrativa e judiciária do

igrejas nas localidades do Arroio Bonito, Arroio do Tigre, Candelária, Jacuizinho, Rincão da Estrela e na Nova Colônia de Sobradinho, seriam cerca de 100 famílias.162

O estabelecimento de colônias modificava a paisagem e as relações comunitárias. Com os novos morados vinham outras culturas e interesses econômicos alterando também os vínculos de dominação e poder. Conforme apontado pela historiadora Luiza Kliemann163 o

governo republicano, ao entregar para particulares as terras devolutas do Estado para a colonização, não se preocupou com os posseiros, assim, as companhias vendiam os lotes com os “intrusos” que habitavam as áreas. Ou seja, as áreas utilizadas para a colonização possuíam moradores, era o “povo do mato”, em denominação do jornal Kolonie. Segundo a autora, “restava ao último comprador resolver o problema que, invariavelmente, acabava em conflito, quando, então, o Estado intervinha através dos aparelhos repressores.”164 Instalada a

violência, a Brigada Militar atuava para expulsar os mais fracos.

O crescimento demográfico das colônias mais antigas, os conflitos gerados pelas demarcações e a escassez crescente de terras agricultáveis, fizeram com que os colonos, nacionais ou estrangeiros, e os posseiros saíssem das regiões em litígio em busca de novas terras. Deste modo, foram ocupando terras aparentemente desocupadas. Conforme Kliemann, a “intrusão, existiu no Rio Grande em pequena escala desde o período monárquico. Durante a República Velha, tornou-se, por sua extensão, o maior problema enfrentado [...] pelo Estado.”165 Com o aumento da imigração, a partir de 1907, a partir do incentivo do governo

da União166, a intrusão deu-se em terras particulares, devolutas e indígenas. Para a autora167:

assim “foram sendo devastadas as matas e ocupadas também, em maior extensão, as áreas reservadas aos indígenas”. Colonos e posseiros ocupavam os “territórios indígenas com a anuência do governo estadual”.

De acordo com Luiza Kliemann168, a atuação de companhias e empreendimentos

particulares no processo de colonização não priorizou condições de vida e trabalho para os

162 BANDEIRA, Aurélio. Aspectos Históricos. In: BRIDI, Eda Thereza Piccinin (coord). Histórico de Sobradinho. Venâncio Aires: Ouro Verde, 1976, p. 42, baseado no Reverendo Armindo Müller: “História da Paróquia Evangélica de Confissão Luterana - Arroio do Tigre”; MÜLLER, Armindo L. A comunidade evangélica alemã de Nova Colônia de Sobradinho. In: MUSEU HISTÓRICO VISCONDE DE SÃO LEOPOLDO/INSTITUTO HISTÓRICO DE SÃO LEOPOLDO. IV Simpósio de história da imigração e colonização alemão no Rio Grande do Sul 1980. Anais 1987. São Leopoldo: Gráfica Unisinos, 1987, p. 49-53; GERTZ, René E. O Perigo Alemão. Porto Alegre: Editora da

Universidade/UFRGS, 1991, p. 35.

163 KLIEMANN, Luiza H. Schmitz. RS: terra & poder. História da Questão Agrária. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. 164 Ibidem, p. 114-5. Em 1902, no Alto do rio Taquari, no então município de Estrela, próximo aos povoados de Muçum e

Encantado, na localidade de Pinheirinho, ocorreu um movimento de resistência a desapropriação das populações dos matos. O autor FERRI, Genuino A. Os monges do Pinheirinho. Encantado: Encantado, 1975, fez importante registro sobre esse movimento que também foi identificado como sendo protagonizado por monges. O muncípio de Encantado foi emancipado em 1915 com áreas de Soledade e Lajeado.

165 KLIEMANN, Luiza H. Schmitz. Op. cit., p. 121-2.

166 Ver CANCELLI, Elizabeth. O Mundo da Violência. A Polícia da Era Vargas. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993, p. 121.

167 KLIEMANN, Luiza H. Schmitz. Op. cit., p. 125. 168 Ibidem, p. 16, 114.

colonos, ao contrário, na condução das vendas, valorizavam as terras e estabeleciam negócios paralelos como a exploração da madeira. O alcance das companhias foi muito além da venda dos lotes. Elas exploravam os recursos naturais e a mão-de-obra dos agricultores com o consentimento do governo estadual: as áreas próximas “às vias de comunicação ou aos centros urbanos, [...] foram muitas vezes reservadas a capitalistas, políticos e mesmo a particulares que esperavam, para vendê-las, o momento em que pudessem ter mais lucro”. Assim aconteceu em Sobradinho, entre 1929 e 1930, o coronel Santo Carniel, que se manteve como prefeito ao longo da década de 1930, antes disso, adquiriu vários terrenos na vila: em 16 meses, foram 5.402 m2, no valor de 1.993,950.169

A situação foi de tamanho descontrole que, em 1908, foi necessária a criação da Comissão de Terras de Soledade pelo Governo do Estado com o objetivo de demarcar e lotear terras públicas nos municípios de Cachoeira, Lajeado, Rio Pardo, Santa Cruz, Soledade e Venâncio Aires. Segundo Sérgio da Costa Franco170, a Comissão deveria abrir estradas,

promover o estabelecimento de núcleos coloniais e regularizar as posses. No mesmo ano, o engenheiro Torres Gonçalves, da Diretoria de Terras e Colonização do Estado, apontou irregularidades em Sobradinho. O relatório do secretário das Obras Públicas, Cândido de Godoy, para o presidente do Estado, Carlos Barbosa, mencionava fraudes detectadas pelo engenheiro Torres. Os documentos regularizando as propriedades, que deveriam existir no cartório de Soledade, não existiam porque estes foram extraviados ou incendiados durante a guerra civil de 1893-1895, a Revolução Federalista. Desta forma, os republicanos colocavam sob suspeita todas as propriedades da região.171

Uma das justificativas para a instalação da Comissão de Terras seria a situação confusa pela qual vinha se desenvolvendo a colonização de Sobradinho nos distritos do Lagoão e do Jacuí. O encarregado em Soledade informava ao secretário das Obras Públicas que os habitantes da colônia eram nacionais, italianos e alemães. No entanto, “a situação desordenada da colônia a impede que prospere, apesar de produzirem as terras abundantemente toda sorte de cereais.” A pequena produção de fumo e banha de porco só podia ser escoada pela vila de Candelária, “pagando de frete 33 mil-réis a tonelada, porque não há estrada e os caminhos são maus”.172 Os problemas apareciam também no núcleo

Itapuca, no 2o distrito, em Campo Bonito, à margem direita do rio Guaporé, próximo a

Arvorezinha. O Estado indenizou Carlos Schaeffer, pela desapropriação de terras para a

169 Registro de Concessionários de lotes coloniais. Terras em Jacuí. (AHRGS)

170 FRANCO, Sérgio da Costa. Soledade na história. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Soledade, 1975, p. 106-7. 171 Ibidem, p. 106. O autor cita o Relatório do secretário das Obras, Cândido José de Godoy de 28 de agosto de 1908. 172 Loc. cit.

colonização, 25.749.500m2, em mais de 34 contos de réis, superior ao orçamento municipal

anual de Soledade, embora o objetivo da colonização fosse ocupar terras devolutas.173

No mesmo período em que o Estado buscava regulamentar a colonização, entre 1908 e 1913, foram demarcadas terras para os indígenas. Mesmo assim, continuaram os problemas. Como afirmou Kliemann, “havia grande distanciamento entre o que pregava a lei e aquilo que acontecia, na realidade, dentro das áreas reservadas aos indígenas”. Denunciava a autora que, mesmo com a adesão à causa indigenista por alguns membros do governo, como Torres Gonçalves, responsável pelas demarcações, permaneceu “a usurpação das terras dos índios e certas formas de extermínio daquelas populações”. Garantia Kliemann que “foram frequentes as violências como envenenamento das águas dos rios e a distribuição de roupas contaminadas por doenças causadoras de epidemias.” 174

Dentro desse processo de demarcação, em 1911 foi criado o toldo do Lagoão no então 4o distrito de Soledade175 para abrigar os guaranis. Era o único aldeamento oficial guarani dos

onze toldos existentes na época, os demais eram formados por caingangues176. Conforme

pesquisa de Kliemann, a área discriminada no Lagoão, era em torno de mil hectares, era parte da propriedade de oito mil hectares confiscada pelo Estado de João da Rocha: “após a doação aos índios, a família de Rocha voltou a apossar-se do território, vendendo a terra aos colonos. Em 1918, colonos teriam confiscado e vendido as terras dos indígenas.177 A partir de 1918, a

área indígena estava colonizada, os índios expulsos e o Estado completamente omisso.” A usurpação das terras demarcadas ocorreu “em quase todos os toldos do Rio Grande do Sul”. As causas apontadas pela autora seriam a intrusão de colonos “sem terra”, a entrada de “empresas particulares interessadas nos lucros da colonização e na exploração das riquezas” e o próprio governo que utilizou essas “áreas para indenizar proprietários lesados em parcelas de terras de outras regiões.”178

Para Cezimbra Jacques179, que registrou importantes informações sobre os indígenas

do Rio Grande do Sul, a partir de encontros ocorridos em Porto Alegre, em 1911, os “coroados selvagens eram cruéis”, atacavam “traiçoeiramente as comitivas que atravessavam os pontos, tais como as passagens dos matos Castelhano e o Português” e os moradores locais.

173 FRANCO, Sérgio da Costa. Soledade na história. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Soledade, 1975, p. 107. O autor cita o Decreto n. 1369, 24/8/1908 In: Leis, Decretos e Actos do Governo do Estado, 1908. POA, Tipogr. d' O Independente, 1910.

174 KLIEMANN, Luiza H. Schmitz. RS: terra & poder. História da Questão Agrária. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986, p. 131, 135, 137.

175 Em 1920, o Lagoão era o 6o distrito de Soledade.

176 JACQUES, João Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre, Cia União de Seguros Gerais/Editora Meridional Ema, 1979, p. 96 e 221. Na página 96, o autor estima a população dos toldos em 2.490 homens. Na página 221, o autor apresentou outra informação, seriam 5.500 habitantes.

177 KLIEMANN, Luiza H. Schmitz. Op.cit., p. 131, 135, 137. 178 Ibidem, p. 136.

Referia-se aos caingangues do planalto, também conhecidos por bugres, demonstrando a resistência dos ameríndios à ocupação e exploração de suas terras tradicionais de florestas de araucárias. Além dos caingangues, o autor registrou a passagem por Porto Alegre de três “chefes da tribo guarani” da Serrinha, próximo do Lagoão, no município de Soledade, onde teriam fixado residência “em terras devolutas”, “há mais ou menos 4 anos, sem oposição de ninguém.”

Os guaranis da Serrinha foram recebidos pelo intendente José Montauri e pelo chefe do Serviço de Proteção ao Silvícola do Ministério da Agricultura, Raul Abbott. Cezimbra Jacques180 conversou com os indígenas em guarani e afirmou que o idioma era falado e escrito

pelos demais autóctones “catequizados”. Os guaranis afirmaram ser “pobres” e não possuir machados para cortar as árvores, por isso não tinham como fazer grandes roças, limitavam-se a plantar um pouco de milho, feijão, batatas, mandioca e fumo. Frente a essa informação pergunta-se: os instrumentos solicitados não ajudariam também na poda dos ervais contribuindo para uma maior autonomia frente aos empreiteiros da erva-mate? Sobre a criação de animais, afirmaram que criavam galinhas, patos e porcos – os quais apenas vendiam: “não comemos, porque porco já foi homem”. O autor descreveu o estado lastimável dos “pobres guaranis da Serrinha” que viviam próximos de Sobradinho e do Lagoão: “vivem miseravelmente, sem ferramentas para trabalhar, sem meios de fazer suas roças”. No toldo da Serrinha, “entregam-se à plantação do tabaco e ao fabrico do fumo para cigarros.” Pode-se observar, assim, que os guaranis produziam os mesmos produtos que os demais agricultores e colonos: cereais, raízes, fumo e criavam animais.

Além disso, as áreas indígenas estavam muito próximas às terras dos “colonos” de origem portuguesa, para os quais eles trabalhavam como “peões”. Eles trabalhavam nas roças e nos ervais e eram “pagos com usura”. Conforme Cezimbra Jacques181: além do pagamento

no trabalho dos ervais ser “lamentável”, era “a troco de gêneros, vivendo assim de uma cruel exploração essa pobre gente”. Além disso: “costumavam tomar em arrendamento as terras dos índios, pagando-lhes uma insignificância, acontecendo mais ainda o fato grave de se acharem as ditas terras invadidas por intrusos.” O autor propunha que: uma vez que “eles não hesitam em sair a trabalhar como jornaleiros”, o governo poderia “chamá-los aos centros povoados, oferecendo-lhes nesses lugares algum trabalho bem remunerado que os estimulasse” como forma de cederem ao nomadismo, uma característica ainda forte dessas populações. Os guaranis afirmavam serem todos batizados, eram cristãos desde o nascimento. Revelaram um forte vínculo com Nonoai, afirmando terem nascido nas aldeias do Norte.

180 JACQUES, João Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre, Cia União de Seguros Gerais/Editora Meridional Ema, 1979, p. 82, 98, 219-20.

O autor apontava que grande número de caingangues viviam nas florestas do Rio Grande do Sul. Formavam os onze toldos “catequizados”. Também eles estiveram em Porto Alegre para exigir garantias para as terras que ocupavam do então presidente estadual Carlos Barbosa. Os bugres reclamavam que os brancos estavam invadindo suas terras, eles faziam uma roça e os descendentes de portugueses faziam “outra logo adiante”, a continuar naquele ritmo, eles preferiam voltar para a vida no mato. O pinhão fazia parte da alimentação dos indígenas e das populações rurais, era vendido em sacos como os de milhos nos povoados: sendo que “os habitantes dos pinhais fazem dessa fruta farinha e paçoca”. Com isso verifica- se que a exploração de pinheiros como madeira de lei afetava gravemente o abastecimento das populações que tinha nessas sementes a base de sua alimentação.

Toda essa problemática indígena apontada pelo major Cezimbra Jacques no início do século XX continuou a agravar-se. O avanço da colonização, visando à intensificação da produção agrícola para exportação, foi devastando as florestas de araucárias e os ervais nativos. Ao mesmo tempo, percebe-se a interação das populações nativas de guaranis e caingangues na produção agrícola como lavradores, peões e ervateiros. Quando o jornal Kolonie menciona os ervateiros, o “povo do mato”, os “mal-afamados” do Lagoão, “os fanáticos” que “estavam até agora escondidos no mato” e que “apareceram agora em grande número”, não resta dúvidas de que estavam falando dos guaranis.