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Em 1940, o padre Pedro Luiz Bottari182, de Santa Maria, percorreu os Campos de

Sobradinho buscando as origens históricas do local, com auxílio de um carro da prefeitura, cedido pelo prefeito, capitão Edison Ketzer183. Em fevereiro, as conclusões foram

apresentadas em conferência realizada em Santa Maria. O autor, preocupado em definir se Sobradinho teve origem missioneira, entrevistou moradores da região e teve acesso a documentos importantes. No trabalho de pesquisa, ele descreveu os campos do município como um local onde o trabalho era pouco, vivendo os habitantes dali “da parca criação pastoril”. Nas outras regiões do município “é a riqueza e o conforto”. Mencionou as matas que cobriam as terras “primitivamente”. Observando que “ainda agora, de longe em longe, se ateia algum pinheiro solitário”. Destacava que na “Serrinha Velha e em outros pontos, o

182 BOTTARI, Luiz Pedro. Sobradinho: Conferência. Santa Maria: Escola Tipográfica Santo Antônio, 1940, p. 5-6. 183 Nomeado pelo governo estadual, iniciou o mandato em 27 de agosto de 1938, permanecendo até 15 de abril de 1941.

pinheiral subsiste”, atribuindo à colonização o desmatamento da região: “O colono entrou de machado a mão e abriu clareiras enormes.”184

Para Bottari, na produção agrícola, as terras férteis de Sobradinho não necessitavam de fertilizantes. Para o autor: o “trigo, nos bons anos de produção, compensa além do esperado. Os vinhedos, quase sempre nas encostas das colinas, cobrem-se, cada safra, de cachos sãos e abundosos, entre pâmpanos que se não contêm dentro das proporções comuns, por abundância de seiva.” E quanto a plantação do fumo: os “tabacais são numerosíssimos, constituindo a maior produção comercial do município, mas o camponês, porque não necessita, não conhece o adubo, hoje, tão em uso”. Tudo crescia e frutificava, disse Bottari.185

O autor186 afirmava que a religião “é a espinha dorsal do povo suparense. O camponês

assimilou a língua e conservou a religião”. O pesquisador relatou costumes e lendas da região. Um deles, considerado cômico por ele, era o hábito de descanso no sábado à tarde: “quase ninguém trabalha, porque o trabalho constitui pecado e retalha as costas de nossa Senhora”. Além dessa, outras crenças eram correntes na região. Perto de um velho cemitério à beira da estrada, onde estariam sepultados os antigos proprietários da sesmaria dos Campos de Sobradinho, existia um bosque. No meio do mato, um caminho ia dar na Serrinha Velha, depois dali, seguia “serpeando para Soledade”. A partir do entardecer, começavam os fenômenos: eram ventanias e redemoinhos. Em meio às rajadas de vento, apareceria um burro sem cabeça “ajaezado com arreios de prata e cheio de adereços” carregando “alforjes especiais” com “bisturis, facas, tenazes e ferramentas de tipos diversos”, andando em galope e “disparadas desgovernadas pelos arredores”. Havia, também, quem acreditasse em tesouros enterrados.187

O conferencista falava do progresso que chegava a Sobradinho, manifesto nas buzinas dos carros. No entanto, salientava a falta “de meios rápidos de comunicação”. Somente em 1942 foi estabelecida a linha Sobradinho – Porto Alegre.188 O autor também alertava para que

os poderes públicos tomassem providências para impedir a destruição completa das matas. Apontava que, se não fossem tomadas providências: “em poucos anos, a colônia se verá desvestidas de matas, empobrecida de solo e de madeira e quase seca de águas” e o controle da derrubada que poderia parecer “um mal para particulares, porém, reverteria em benefício comum.”189 Interessante observar que o padre pesquisador fazia um alerta similar ao dos

184 BOTTARI, Luiz Pedro. Sobradinho: Conferência. Santa Maria: Escola Tipográfica Santo Antônio, 1940, p. 11. 185 Ibidem, p. 10.

186 Ibidem, p. 13, 15. 187 Ibidem, p. 5-6.

188 BANDEIRA, Aurélio. Aspectos Históricos. In: BRIDI, Eda Thereza Piccinin (coord). Histórico de Sobradinho. Venâncio Aires: Ouro Verde, 1976, p. 35, 38-9.

monges barbudos que, em 1938, valorizavam a flora local, as águas e alertavam para os

“venenos” que passavam a ser utilizados na produção do fumo.

Em 1938, com uma nova estrutura de poder do Estado Novo no país, o interventor federal solicitou aos municípios um relatório de prestação de contas. Apesar do ufanismo dos interessados em permanecer nos cargos municipais, os documentos dos prefeitos de Soledade e Sobradinho registram algumas questões importantes. O prefeito de Sobradinho190, Santo

Carniel, bastante otimista com relação a sua gestão, exultava com o desempenho municipal. Para Carniel a situação do município “é das melhores do Estado”. Argumentava: as atividades “comerciais se acham bastante animadas, a sua agricultura em franca fase de expansão, em todos os setores de sua atividade”. Observava ainda: “para o que muito tem concorrido esta administração, estimulando todos os ramos de indústria e amparando a grande classe de trabalhadores rurais”. Interessante observar que o prefeito refere-se aos “trabalhadores rurais” e não a colonos ou agricultores.

Diferentemente da situação de Soledade, que buscava se equilibrar com uma dívida de quase mil contos de réis, o município de Sobradinho não possuía dívidas. Ao contrário, em agosto de 1938, tinha em caixa cento e quarenta contos de réis. A conservação e a ampliação do sistema rodoviário, assim como em Soledade, era uma preocupação. Santo Carniel afirmava ter gasto, no primeiro semestre de 1938, 35% do total arrecadado (223:080$900) no plano rodoviário. No entanto, a distribuição de água potável era “deficiente”. Na ampliação do manancial teria sido gasto 2:697$400. Quase a metade dos 5:003$200 que teriam sido gastos no atendimento aos “indigentes”, “os quais tem necessidade de amparo desta administração”. Sobradinho possuía 32 escolas primárias mantidas pelo município, e um “colégio de Irmãs”. A instrução pública, segundo o prefeito, atingia 2.100 crianças.191

Se em 1938, a receita total arrecadada no município de Sobradinho era de 321:892$000, em 1939, subia para 427:000$000. Neste mesmo ano, as exportações do município chegavam a 10 mil contos de réis. Do total, 5.900 contos de réis eram provenientes da produção de 235 mil arrobas de fumo: 195.000 em folha e 40.000 em corda. Sobradinho vendeu, ainda, 24 mil sacos de feijão, 32 mil sacos de milho, 16 mil arrobas de banha, 5.400 suínos e 500 mil quilos de uva, revertendo para o município, em impostos, pela venda dos produtos, dez contos de réis.192

190 SOBRADINHO. Ofício n. 81 do Gabinete do Prefeito de Sobradinho, Santo Carniel, ao secretário do Interior, Miguel Tostes. Relatório Financeiro de Sobradinho. Correspondência Expedida Sobradinho, 1938. Lata 128, Maço 384. (AHRGS)

191 Loc. cit.

Em Soledade, o prefeito interino de Soledade193, farmacêutico Olmiro Ferreira Porto,

historicamente vinculado ao Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e à Frente Única Gaúcha (FUG), também prestava contas ao interventor federal, coronel Cordeiro de Farias, através um relatório financeiro sobre a situação municipal. O prefeito interino saudava a “nova fase de reconstrução nacional” e aproveitava para fazer demarcações políticas e responder à oposição. Com relação a aspectos econômicos mencionava a “Campanha do Trigo” que prosseguia “com entusiasmo”, uma vez que a cultura obtinha bons resultados no município. O prefeito lamentava a “insuficiência de 100 sacos de semente enviados, não tendo sido satisfeito nem a metade dos que desejavam plantar esse cereal”. Não esclarecia os critérios que teriam sido usados na distribuição das sementes.

Em agosto de 1938, em novo relatório financeiro194, agora destinado ao secretário do

Interior, Miguel Tostes, Olmiro Porto seguia alinhado e na defesa do novo regime. Sobre a situação econômica, constatava que a pecuária já não predominava, mas era uma das maiores fontes de renda do município. Ele garantia que os campos de Soledade eram os “melhores da região serrana” e que os rebanhos estavam em bom estado sanitário. O total de cabeças de gado, entre bovinos, equinos, ovinos e muares era de 157.500. Essa informação apresenta uma pequena diferença com o Censo de 1940, que agrupados da mesma forma, chegava a 148.127, com uma diferença de pouco mais de 9 mil cabeças. Mas bem inferior as 235 mil cabeças apontadas por Alfredo Costa195 em 1922.

Ainda de acordo com as informações do prefeito Olmiro Porto, o comércio de madeira mobilizava 50 serrarias196, que atendiam ao consumo interno e abasteciam Carazinho,

Encantado e Porto Alegre. Para a Alemanha, eram exportados “cristais de várias espécies”. Na agricultura, Soledade produzia diversas culturas, destacando-se o arroz para as necessidades locais e o trigo vendido no mercado de Carazinho, Cruz Alta, Sobradinho e Passo Fundo. Em 1937, a produção de trigo atingiu 400 toneladas. Para o escoamento da produção era necessária a conservação de estradas e a construção de pontes. A ponte sobre o rio Jacuizinho, na estrada que ligava Soledade a vila do Jacuizinho, foi reconstruída e inaugurada em maio. Olmiro Porto afirmava ter construído duas pontes na estrada geral para Passo Fundo, uma no 8o distrito, sobre o rio Pardo, duas no 4o distrito, sobre os rios Butiá e

São Bento, e a reconstrução da ponte intermunicipal, no 7o distrito, sobre o rio Camargo, em

193 SOLEDADE. Ofício n. 61, Do Gabinete do Prefeito interino, Olmiro Ferreira Porto, ao interventor federal, Osvaldo Cordeiro de Farias em junho de 1938. Relatório Financeiro de Soledade. Correspondência Expedida, 1938. Lata 128, Maço 384. (AHRGS)

194 SOLEDADE. Ofício s/n, Do Gabinete do Prefeito interino, Olmiro Ferreira Porto, para o secretário do Interior, Miguel Tostes. Relatório Financeiro de Soledade. Correspondência Expedida Soledade, 3 de agosto de 1938. (AHRGS) 195 COSTA, Alfredo. O Rio Grande do Sul. V. 2. Porto Alegre: Globo, 1922, p. 229-232.

196 Em meados da década de trinta, uma das firmas que comercializavam pinheiros era de Lino Lazzari, segundo registro: RIO GRANDE DO SUL. Justiça Pública. Cartório de Notas. Vila de Jacuí. Livro n. 8, p. 92-92v. (APERS) Outros Lazzari localizados por essa pesquisa são: Berto Lazzari, escrivão designado, e Egidio [ou Egydio] Lazzari, comerciante de fumo.

parceria com Passo Fundo. Todas estas obras teriam sido feitas com o auxílio dos moradores das localidades. Sobre a instrução pública, o prefeito afirmava que existiam 75 aulas com 2.003 alunos matriculados. O único Grupo Escolar do município estava na vila do Jacuizinho.197

Esse conjunto de informações sobre o ambiente socioeconômico da década de 1930, em Soledade e Sobradinho, dentro do contexto estadual e nacional, tem por finalidade compor o ambiente onde se desenvolveu o movimento religioso dos monges barbudos. Esse quadro colabora para que se observem as condições de vida na época. Como pôde ser evidenciado, tratava-se de municípios com predominância nas atividades primárias, mas com iniciativas na indústria da transformação. Verificam-se várias coerências entre as atividades produtivas em transformação e às pregações de alerta dos monges barbudos. Pode-se destacar, especialmente, a preocupação com relação à introdução de produtos químicos nas lavouras de fumo, os receios de contaminação das águas e a valorização do conhecimento tradicional da vegetação das matas, que estavam sendo intensivamente derrubadas. Os fatores que pressionavam de forma mais intensa para a derrubada das florestas eram a indústria madeireira, a queima da vegetação para a transformação em carvão – para secar a erva-mate e o fumo – e a abertura de novos roçados ou novas áreas coloniais para atender as necessidades de produtos alimentícios para o mercado nacional e para a exportação.

Tem-se também um conjunto de potenciais participantes do movimento religioso dos

monges barbudos: ervateiros, carvoeiros, jornaleiros, lavradores, peões e safristas – os

“xucros” do campo e dos matos. Esses trabalhadores temporários estavam submetidos a relações de trabalho visivelmente opressivas onde a remuneração era feita com produtos alimentícios e/ou por baixo valor. Embora esses trabalhadores rurais desenvolvessem uma técnica agrícola eficiente para o manejo das florestas e no trato de animais – o que garantia de a Soledade e Sobradinho uma produção bastante equilibrada com relação aos municípios vizinhos –, a mão de obra local, apontada como sendo dos “caboclos”, não era valorizada. No entanto, como pode ser observado, o trato com os ervais exigia um manejo delicado e especializado. A existência dessas florestas nativas serviu como possibilidade de refúgio para esses trabalhadores agrícolas de origem indígena e africana. Com certeza, esses safristas eram descendentes e ex-escravos adaptando-se as novas relações de trabalho iniciadas há apenas 50 anos com a abolição da escravatura no Brasil em 1888. Assim, o processo acelerado de alteração da paisagem natural afetava e inviabilizava um modo de vida mais autônomo e comunitário dessas populações dos matos e das florestas.

197 SOLEDADE. Ofício s/n., Do Gabinete do Prefeito interino, Olmiro Ferreira Porto, para o secretário do Interior, Miguel Tostes. Relatório Financeiro de Soledade. Correspondência Expedida Soledade, 3 de agosto de 1938. (AHRGS)

Além disso, as sucessivas crises de superprodução da década de 1920-1930 afetaram também os pequenos produtores, conforme verificado, com a redução de preços dos produtos agrícolas e com a desvalorização das terras. Foi preciso buscar alternativas para a sobrevivência camponesa. Dessa forma, o perfil traçado para o agricultor Anastácio Fiúza está dentro das possiblidades produtivas da região e coerente com as iniciativas dos camponeses locais: criar e vender animais, especialmente os suínos, comercializar os cristais de quartzo, produzir fumo para a indústria de Santa Cruz, que era articulada por colonos de origem alemã, cultivar lavoura de arroz, feijão e milho para as necessidades cotidianas e também para a comercialização de excedentes. Talvez o que tenha diferenciado Anastácio Fiúza dos demais agricultores foi sua busca por mercados alternativos no município de Lajeado para a venda dos produtos agrícolas, rompendo com o domínio dos comerciantes locais. Como será visto nos capítulos seguintes, o enfrentamento aos monges barbudos partiu desses comerciantes, que intermediavam a venda dos produtos agrícolas, e dos colonos de origem alemã, receosos que as pregações de alerta sobre os malefícios da produção do fumo pudesse influenciar na redução da produção do tabaco na região. Com segurança, a crise econômica dos anos 1930 associada aos conflitos econômicos e políticos de Soledade e Sobradinho, influenciados pela conjuntura estadual e nacional, contribuíram para a organização dos “caboclos” em um movimento religioso de busca por justiça divina.

2 AMBIENTE POLÍTICO DO CONFLITO

Neste capítulo são examinadas as relações de poder estabelecidas em Soledade e Sobradinho na década de 1930, a partir dos elementos econômicos apontados no capítulo 1. A intenção é estabelecer as possíveis motivações dos agricultores que organizaram um grupo informal com características de movimento religioso messiânico198. A perspectiva de análise é

apontar o poder de mando das elites locais nas questões municipais, suas formas de organização política, tanto na esfera estadual quanto na perspectiva nacional, seus consensos e suas dissensões, e os espaços de decisão – ou a ausência deles – para os trabalhadores rurais199. Dessa forma, são apontados os grandes marcos políticos do período e o

engajamento, subordinação ou exclusão das classes subalternas rurais de Soledade e Sobradinho nesses processos. Além dos aspectos conjunturais, sempre que for necessário, são introduzidas informações sobre a história local como fator de entendimento dos grupos sociais em disputa, a composição étnica e cultural, a inserção econômica e as possíveis causas da conflitualidade entre os monges barbudos e os seus antagonistas.

O período em análise, a década de 1930, foi intensa de movimentos e radicalidades. A exacerbação política acabou por consolidar um modelo centralizado de administração pública conformado na ditadura do Estado Novo (1937-1945). Em linguagem weberiana200, vivia-se a

transição de um poder patriarcal para a construção de uma burocracia de Estado. Ou seja, no caso específico de Soledade e Sobradinho, os antigos “barões” escravistas do gado e da erva- mate, amparados nas patentes militares conquistadas nas guerras de fronteira, precisavam adaptar-se aos novos tempos da República. No caso brasileiro, era preciso construir um aparelho de Estado suficientemente legítimo para continuar garantindo os grandes negócios privados associados à exportação, conforme verificado no capítulo anterior. Ainda: era necessário garantir os votos dos novos setores sociais, que começavam a adentrar na arena política, como condição da consolidação da nova estabilidade do poder. Por isso, aqui são examinadas as questões políticas da década de 1930 no Rio Grande do Sul, no Brasil e os reflexos da grande conjuntura internacional nos arranjos de poder local. Assim, verifica-se

198 Conforme conceito de messianismo de QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. 2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1977, p. 46. Na análise dos movimentos messiânicos verifica-se o desejo de uma nova realidade: “Nosso objetivo é a análise de movimentos messiânicos, isto é, de grupos em ação tendo em vista um determinado objetivo, que é o de instalar o paraíso na terra; noutras palavras, que é o de transformar o mundo em que vivem.” 199 A categoria de trabalhador rural busca incluir os agentes da produção agrícola dedicados às diferentes tarefas rurais: a

preparação da terra, a semeadura, o acompanhamento do cultivo, a colheita, a criação de animais e o extrativismo. Essa força de trabalho realiza ações de forma permanente ou sazonal, em terras próprias ou para outros proprietários, com vínculos formais ou informais de trabalho. Como sinônimo inclui-se camponês e agricultor. O colono no Rio Grande do Sul é o trabalhador rural com terra. O jornaleiro é o que executa trabalho sazonal, podendo ser o safrista, que participa da colheita como peão, ou o que auxilia na semeadura.

que a instabilidade econômica no final dos anos 1920 e no início dos anos 1930 refletiu-se fortemente no aspecto político.

Alguns marcos definiram a década no Brasil e tiveram intensa repercussão nos rincões de Soledade e Sobradinho, definiram o ambiente político e as conflitualidades que podem ter motivado o surgimento de um movimento religioso com caráter de resistência pacífica às diversas situações de violência local. Essa conjuntura política é analisada a partir de quatro grandes momentos: 1) o processo de ruptura institucional conhecido como Revolução de 1930 e a ascensão de uma geração de políticos sul-rio-grandenses ao poder federal; 2) a revolta encabeçada pelos paulistas denominada de Revolução Constitucionalista de 1932, movimento armado de contestação ao poder estabelecido em 1930 e marco da ruptura no interior das elites gaúchas frente a perspectiva do poder nacional; 3) o período de institucionalização da democracia, o estabelecimento do arcabouço legal e os processos eleitorais de 1934 e 1935; 4) o recrudescimento do governo eleito de Vargas na presidência da República e a consolidação do Estado de exceção com suas violências que estancaram as radicalidades políticas através do golpe do Estado Novo (1937-1945) com a extinção da forma tradicional de distribuição e organização do poder: os partidos políticos.

Uma pergunta pertinente a ser feita é como a conjuntura política nacional e internacional chegava às distantes regiões de Soledade e Sobradinho? Nos anos 1930, os jornais, os rádios e os telégrafos eram as tecnologias de comunicação. Para além desses meios, as informações se disseminavam com a ajuda das patas velozes dos cavalos e dos passos rápidos da população rural. Além disso, a administração pública também cumpria o papel de promover a circulação de informações, através de subprefeituras, subdelegacias de polícia e estruturas regionais. Os clubes recreativos, os partidos políticos, as igrejas, os “bolichos”, as organizações “classistas” – como as associações de produtores criadas nesse período com a finalidade de buscar alternativas para as sucessivas crises econômicas – eram os locais de reunião e de debates até mesmo nas regiões mais longínquas e de difícil acesso.

Assim, pode-se afirmar que os conflitos locais estavam influenciados pela política estadual e nacional. Dessa forma, em paralelo às mudanças proporcionadas pelas revoluções de 1930, 1932 e o processo constitucional de 1934, observam-se os grupos de poder que compunham as elites locais e estaduais. Examinam-se os reflexos dos grandes processos políticos nas localidades de Soledade e Sobradinho, com exemplos de desavenças entre as elites e as autoridades constituídas – eleitas ou indicadas, civis ou militares – e o papel reservado para as populações mais desamparadas. Na perspectiva de Norbert Elias201, são

tratadas as relações de poder entre os “estabelecidos” e os outsiders.

201 ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, Zahar, 2000, p. 19-50.

Para os efeitos deste trabalho, poderíamos traduzir outsiders por aqueles que são tratados como se fossem estranhos, forasteiros e intrusos, mas também os leigos e profanos.