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O primeiro grande marco da década foi a ruptura com a República Velha (1889-1930). A insipiente experiência democrática hegemonizada por São Paulo e Minas Gerais, após a Proclamação da República e a abolição da escravatura, foi encerrada com a chamada Revolução de 1930. Alguns autores defendem que a Revolução de 1930 levou para a esfera federal a prática política gaúcha do início do século XX com os seus principais protagonistas.

202 Entre a extensa e qualificada bibliografia sobre imigração pode-se destacar DE BONI, Luis Alberto e COSTA, Rovilho.

Isso porque esse processo de dissidência conduzido por setores da elite econômica brasileira teve especial participação de políticos oriundos do Rio Grande do Sul. Como apontou PauloVizentini203, a ruptura de 1930 destacou-se por estabelecer um novo arcabouço legal,

pela intervenção estatal na economia e pelo autoritarismo político:

(...) institucionalizou em nível nacional as experiências políticas, sociais e econômicas que haviam anteriormente sido desenvolvidas no Rio Grande do Sul, tais como legislação trabalhista, intervencionismo governamental no campo sócio-econômico e uma postura autoritária, ao nível político, de inspiração positivista.

Como parte constitutiva da estratégia de poder no Sul do Brasil insere-se a tradição militar e o permanente recurso armado para a resolução das disputas de poder na fronteira ou internamente. Com isso, os homens da elite proprietária foram acumulando patentes militares na medida em que se destacavam como chefes de contingentes armados. Com a República e os partidos políticos, essas lideranças acauteladas na força das armas migram para as novas estruturas de poder levando consigo as práticas do caudilhismo. Pode-se dizer que a Frente Única Gaúcha (FUG) – formada pelo Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e pelo Partido Libertador (PL), em 1928 – foi fruto do esforço de composição de classe na esfera da articulação partidária. Assim, em paralelo ao enfraquecimento dos grupamentos privados armados foram sendo fortalecidas forças institucionais. A influência de práticas violentas na política partidária e no aparelho de Estado é o tema que conduz este capítulo.

A tradição beligerante gaúcha era a tal ponto reconhecida que a República manteve a prática imperial de ter de um quarto a um terço do Exército Nacional estacionado no estado, formando a 3a Região Militar, desde 1919. Com toda certeza, esses militares não tinham

poder somente na caserna, eles amplificavam as relações hierárquicas de mando e obediência para a sociedade como um todo. Desta forma, a Guarda Municipal foi sendo substituída pela Brigada Militar. Embora tendo sido extinta em dezembro de 1930, pelo interventor federal no Rio Grande do Sul, a Guarda ainda continuou existindo pelas necessidades do próprio processo revolucionário de 1930. 204

Para Elizabeth Cancelli205, a revolução política encabeçada pelo então governador

gaúcho, Getúlio Vargas, trouxe esperanças democráticas e de modernização para o Brasil. Segundo a autora, o presidente revolucionário associava processos políticos e simbólicos e por isso foi aclamado como “promessa de uma nova era, da moralização dos costumes políticos e sociais.” Cancelli recuperou o clima de festa na Capital da República com o novo

203 VIZENTINI, Paulo F. A crise dos anos 20. Conflitos e Transição. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1992, p. 69.

204 LOVE, Joseph. O Rio Grande do Sul como Fator de Instabilidade na República Velha. In: FAUSTO, Boris. História

Geral da Civilização Brasileira. 3. ed., tomo 3, v. 8, São Paulo, Difel, 1982, p. 113; VIZENTINI, Paulo F. Op. cit., p. 12.

205 CANCELLI, Elizabeth. O Mundo da Violência. A Polícia da Era Vargas. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1993, p. 75-6.

governo, as multidões saudavam a nova liderança: “um tipo de messias moderno que deveria readaptar o Brasil ao século XX e aos avanços tecnológicos. (...) Um homem que conduziria a nação inteira a uma nova mentalidade.” Pelo fato de ter estabelecido seu governo fora do processo institucional, foi considerado, conforme a autora, como um “ditador talhado para o exercício do poder, esperado por amplos setores da população.” A pesquisadora salientou a veneração que Vargas desfrutou, com um trabalho cuidadoso de promoção pessoal. A presidência mantinha a população naquilo que ela chamou de “um estado de excitamento contínuo” com discursos políticos, medidas administrativas de caráter “saneadoras” e com a prática de “incessante ação policial”. Toda orquestração visava à ideia de que, “efetivamente, articulava-se a transformação da sociedade.” Vargas desenvolvia o carisma pessoal institucionalizando a sua imagem vinculada ao Estado.

No entanto, segundo Carlos Cortés206, a “invasão gaúcha” promovida pela ruptura

institucional de 1930 não foi encarada de forma tão festiva como a apresentada por Cancelli. Ao contrário, a “avidez” com que os sul-rio-grandenses se apossaram de cargos do Poder Executivo e dos cartórios judiciais teria feito com que os demais estados, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo, estivessem contrariados com tantos gaúchos nos postos de mando federal e na intervenção dos Estados. Possivelmente, entre os descontentes estavam os que perderam os altos cargos da República, desalojados que foram do poder estatal.

No entanto, conforme o antropólogo Abner Cohen207, defensor da perspectiva política

e simbólica das relações de poder nos sistemas políticos: “os homens que detêm o poder desenvolvem uma ‘mística’ que os coloca em uma posição superior à da multidão, confere validade a essa posição ante as pessoas e as convence a si próprias do ‘direito’ que lhe autoriza a ocupá-la.” Poucos na história do país tiveram tanta habilidade para manusear questões políticas associadas a imagens simbólicas quanto Getúlio Vargas. Esse “messias moderno”, como definiu Cancelli, teve qualidades carismáticas para manter-se no poder por 15 anos, utilizando-se para tanto de diversos expedientes: acordos político-partidários, relações pessoais, processos democráticos, violação de acordos e medidas de exceção. Vargas ora utilizava-se de todos esses instrumentos, ora dispensava todos eles. Cohen208 define um

líder carismático por habilidades criativas e de mobilização, característica que se pode apontar em Vargas:

Existe, portanto, muito de artista criativo num líder que através de retórica, slogans e táticas manipula os símbolos existentes ou cria novos símbolos. Quando sua criatividade é particularmente original, quando contribui para

206 CORTÉS, Carlos E. Política gaúcha: 1930-1945. Porto Alegre: Edipucrs, 2007, p. 57-8.

207 COHEN, Abner. O homem bidimensional: a antropologia do poder e o simbolismo em sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1978, p. 30.

articular e objetivar novas relações e novos agrupamentos, o líder é chamado de ‘carismático’.

Assim, ainda segundo Cancelli209, Getúlio Vargas conseguia parecer estar presente

“em todos os lugares e em todas as manifestações”, diga-se que pessoalmente ou em fotografias espalhadas pelo país, as quais eram realizadas cerimônias de inauguração. De forma crescente, o novo regime passou a controlar o “cotidiano social”. A autora analisa a construção do poder de Vargas para além do vínculo e fascínio com os modelos autoritários que se gestaram ainda nas décadas de 1910 e 1920 e que tinham como referência e inspiração Mussolini, na Itália, e Adolf Hitler, na Alemanha. Para ela, o novo governo experimentou elementos ideológicos e simbólicos “inusitados” e construiu “a possibilidade de um vir a ser nacional através da construção messiânica de um líder ditatorial.”210

Com isso o Estado ia crescendo em institucionalidade, substituindo modelos anteriores de dominação marcados por relações interpessoais, derivadas do poder de mando familiar. No entanto, não podemos afirmar que o abrigo do Estado não tenha servido para o atendimento de questões particulares, tanto pessoais, quanto de grupos de interesses ou mesmo para a construção de estratégias político-partidárias de manutenção do poder de setores historicamente dominantes como os grandes proprietários e os grandes comerciantes. No entanto, inconstâncias nos acordos políticos e nas alianças entre os setores da classe dominante ficam bastante evidentes nos exemplos analisados da política partidária em Soledade e Sobradinho. Nesses territórios, uma disputa fratricida mobilizou contingentes masculinos para os embates armados, vitimando também protagonistas políticos de setores de classe em disputa política.

Em nível nacional, paralelamente a busca de legitimidade política do processo revolucionário de 1930, começou a existir, ainda segundo Canceli211, “uma dinâmica

subterrânea que tratava de eliminar os cancros sociais e possibilitar a construção da nova sociedade.” Para tanto, as polícias passaram a ter poderes ainda não experimentados no Brasil: “A ação policial caminhava como se fosse um poder independente, paralelo e despersonificado. (...) Brotavam como fruto de uma ação impessoal, como algo que acontecesse por si, à revelia de qualquer fato ou vontade.” As práticas policiais passaram a ser reguladas por procedimentos e protocolos: era necessário registrar os atos, constituir os laudos, grafar os depoimentos e produzir os relatórios. O objetivo era materializar a institucionalidade e a sensação de impessoalidade. O novo modelo de Estado era implementado em todos os cantos do país. É dessa forma que se observa a ação das delegacias

209 CANCELLI, Elizabeth. O Mundo da Violência. A Polícia da Era Vargas. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1993, p. 75.

210 Ibidem, p. 19. 211 Ibidem, p. 194 e 76.

de Polícia de Soledade e Sobradinho nos conflitos com os monges barbudos registrados em documentos trabalhados nos capítulos 3 e 4.

Na perspectiva de consolidar o poder nacional, o governo estabelecido em 1930 foi tecendo uma nova estrutura político-administrativa baseada na nomeação de interventores federais nos Estados. Essa foi a forma utilizada para neutralizar a oposição dos antigos detentores de poder, as oligarquias estaduais. Para além disso, Vargas também centralizou atribuições dos poderes Executivo e Legislativo. Manteve a Constituição Federal e as constituições dos Estados em vigor, mas fechou as Assembleias Municipais e Estaduais e o Congresso Nacional. Afastou todos os eleitos e nomeou interventores estaduais que nomeavam os interventores municipais.212 Como enfatizou Jairo Nicolau213, pela primeira vez

desde 1824, “todos os postos de poder no país foram ocupados por políticos não eleitos.” Essa situação perdurou até novembro de 1933, quando teve início o processo Constituinte iniciado com as eleições de 1932. Mas, não sem antes eclodir um movimento armado contra a falta de institucionalidade existente no país, capitaneado por São Paulo e com a adesão de políticos tradicionais do Rio Grande do Sul.