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Um bom exemplo da diversificação agrícola do Rio Grande do Sul foi a produção, comercialização e exportação da banha de porco. Segundo afirmou Wolfgang Harnisch133, nos

seus estudos de 1940, o milho e a criação de suínos representavam 17% do valor global da produção agrária do Brasil. A suinocultura garantia de 15 a 18 milhões de cabeças, sendo o país o maior produtor da América do Sul. Entre os estados brasileiros, o Rio Grande do Sul estava em segundo lugar, depois de Minas Gerais, com quatro milhões de cabeças. O porco criado pelos colonos era o “macau”, procedente da colônia portuguesa na Ásia, produzia muita banha e pouca carne. O colono providenciava o abate, recolhia a banha e salgava parte da carne. A banha recolhida em “latas de folha” era transportada nas carroças, ou, na falta de estradas, “tropa de mulas” carregavam as latas: “era este um dos aspectos clássicos do interior do nosso Estado, durante os decênios de 1870-1920.”

Em cada picada, um comerciante remetia a produção colonial para a cidade mais próxima. Em múltiplas pequenas refinarias, a banha era tratada e encaixotada de maneira rudimentar. Os caixotes de banha refinada chegavam a Porto Alegre pelas embarcações e da capital seguiam viagem para os mercados nacionais, especialmente para o Rio de Janeiro e São Paulo. O produto era largamente utilizado para a alimentação. No entanto, a superprodução da banha passou a ser um problema constante para os produtores. As refinarias tinham o compromisso com o governo de adquirirem toda a banha e todos os porcos produzidos pelos colonos.

129 PESAVENTO, Sandra Jatahy. RS: a economia & o poder nos anos 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 151. 130 GERTZ, René E. O fascismo no Sul do Brasil. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987, p. 106; ROCHE, Jean. A

colonização alemã e o Rio Grande do Sul, 2 v. Porto Alegre: Globo, 1969, p. 527.

131 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit, p. 173. 132 Ibidem, p. 146.

Duas alternativas foram utilizadas para enfrentar as crises de superprodução agrícola. De um lado, a melhora da produtividade com iniciativas de mecanização, de outro o associativismo empresarial. Entre 1926 e 1930, os criadores, produtores rurais e negociantes criaram mais de 70 associações comerciais, agrícolas e pastoris. Em 1926, os arrozeiros organizaram um sindicato para controlar a oferta do produto, visando à manutenção dos preços. A lavoura mecanizada garantiu ao arroz o terceiro lugar na pauta de exportação do governo Vargas. Em 1928, foi criado o sindicato dos charqueadores. Os viticultores e os fabricantes de banha também criaram associações e cooperativa. Assim, em 1927, foi recriada a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (FARSUL) com o objetivo de atender os problemas da pecuária. É dessa mesma época a criação da Federação das Associações Comerciais. Estas iniciativas dos produtores eram apoiadas pelo governo estadual e demonstravam a necessidade de associação para o enfrentamento das crises.134 Aos

grandes produtores era facilitada e estimulada a organização.

Seguindo a tendência de concentração e articulação dos negócios agrícola, em 1933 foi criada a Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Banha Ltda em Cruz Alta.Já o sindicato sul- rio-grandense da banha foi formado por 30 refinarias. Para a exportação foi criada a Sociedade de Banha Sul-Rio-Grandense, que deu origem aos Frigoríficos Nacionais Sul- Brasileiros. Desde 1920, essa firma vinha comercializando com Londres, principal mercado para o produto, mas enfrentando a concorrência com os norte-americanos que competiam com preços mais baixos. Antes da Segunda Guerra Mundial, os frigoríficos nacionais dominavam grande parte dos mercados de toucinho na Suécia, Noruega e Finlândia. Essa situação foi interrompida por volta de 1940, quando este mercado foi perdido fazendo regredir as exportações. Com a profissionalização dos negócios da banha, os colonos foram sendo proibidos de abater os porcos. Os animais tinham que ser levados para os matadouros e frigoríficos para serem inspecionados por veterinários do governo federal. Enquanto o mercado dos derivados suínos crescia, com avanços e recuos, a crise da pecuária continuou até o final da década de 1930.135

As movimentações macroeconômicas refletiam-se nas condições de vida dos pequenos produtores. A crise da pecuária e as dificuldades no setor agrícola trouxeram novos desafios produtivos e de sobrevivência para os camponeses que deveriam aprender a lidar com as crises de superprodução, a queda dos preços dos produtos agrícolas, a mecanização de processos produtivos, a introdução dos processos químicos na agricultura, o controle do abate

134 LOVE, Joseph. O Rio Grande do Sul como Fator de Instabilidade na República Velha. In: FAUSTO, Boris. História

Geral da Civilização Brasileira. 3. ed., tomo 3, v. 8, São Paulo: Difel, 1982, p. 116-7; PESAVENTO, Sandra Jatahy. RS:

a economia & o poder nos anos 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. p. 24, 72; VIZENTINI, Paulo F. A Crise dos

Anos 20. Conflitos e Transição. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1992, p. 42-3.

135 HARNISCH, Wolfgang Hoffmann. O Rio Grande do Sul. A terra e o homem. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1952. p. 466- 9, 472; PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit, p. 109, 111, 117, 141.

dos animais e diferenças na forma de organização e comercialização dos produtos agropecuários. Os novos tempos desorganizavam a vida e os negócios dos camponeses.

Alguns exemplos locais ajudam a qualificar e vincular a problemática exposta com os agricultores e criadores de Soledade e Sobradinho. Para alguns pequenos produtores, foi possível acumular recursos ao longo dos anos 1920 e adquirir terras. Para outros, a solução limite foi vender propriedades, ou parte delas, para um vizinho em melhores condições. Alguns negócios alternativos à pecuária puderam garantir sustento para esses produtores agrícolas. Temos como exemplo da busca da diversidade econômica dos camponeses sulinos o agricultor Anastácio Desidério Fiúza, líder dos barbudos. Em 19 de dezembro de 1929, em sociedade com seu irmão, Aristeu Desidério Fiúza, ambos casados, conseguiram comprar um lote de terras de 10 alqueires136, em Campinas, no Lagoão, sexto distrito de Soledade, por dois

contos e quinhentos mil réis (2:500$000).137 Anastácio sustentava a família criando e

comercializando suínos. Tocava mais de 100 animais a pé – suas criações e as dos vizinhos –, com o auxílio de jovens da família. Vendia também cristais de quartzo, comprava na região e levava para o município lindeiro de Lajeado, percorria cerca de 85 km com animais, milho e cristais de rocha.138 Com certeza, buscava melhores condições de venda para esses produtos

rompendo com os intermediários locais.

No dia anterior ao registro de compra de terras pelos agricultores Anastácio e Aristeu, em 18 de dezembro de 1929, a família Gonçalves da Costa, importante núcleo formulador e participante do movimento religioso dos monges barbudos, registraram a partilha dos bens do agricultor Pedro Inácio Gonçalves, com seus 12 herdeiros.139 Aos 84 anos, Pedrinho Barnabé,

como era conhecido, dispunha a meação das terras herdadas de sua esposa, Maria Pacífica da Costa, que falecera naquele mesmo ano, entre filhos, filhas e uma neta, todos agricultores. Os dois imóveis rurais partilhados somavam 52,5 alqueires, no valor de treze contos quatrocentos e cinqüenta mil réis (13:450$000), localizados no quintoe sexto distrito de Soledade.140 Com

a propriedade fragmentada, os filhos de Pedro Inácio puderam realizar seus negócios. O criador Crescêncio Gonçalves da Costa, viúvo, com seis filhos pequenos, vendeu um pedaço das terras herdadas da esposa, também recentemente falecida. Eram 9,75 alqueires, no quinto distrito de Soledade, no Rincão do Caixão. A terra foi vendida para o bem situado criador de

136 Conforme Novo Dicionário Eletrônico Aurélio, versão 6.1, 4. ed. Editora Positivo, 2009: o alqueire é: “Unidade de medida de superfície agrária equivalente em MG, RJ e GO a 10.000 braças quadradas (4, 84 hectares), e em SP a 5.000 braças quadradas (2, 42 hectares)”.

137 RIO GRANDE DO SUL. Escritura de compra e venda de Nicanor Rodrigues de Almeida e esposa a Aristeu e Anastácio Desidério Fiúza. Cartório do Notário, Comarca de Soledade 19 de dezembro de 1929. Livro n. 68, 04 de dezembro de 1929 a 25 de março de 1931, p. 8-8v. (APERS) Preço pago pelo alqueire: 250 mil réis.

138 Entrevista Orlandino Gonçalves da Costa realizada no Rincão dos Costa, então município de Salto do Jacuí, em 21 de janeiro de 1990.

139 RIO GRANDE DO SUL. Escritura de doação inter-vivos de Pedro Ignacio Gonçalves a Salvador Gonçalves da Costa e outros. Cartório do Notário, Comarca de Soledade, 18 de dezembro de 1929. Livro 68, p. 7-8. (APERS)

gado capitão Inácio Diehl, vizinho da família. O negócio rendeu a Crescêncio a importância de dois contos, oitocentos e trinta e sete mil e quinhentos réis (2:837$500).141

Enquanto o agricultor Anastácio comprava, o criador Crescêncio vendia praticamente o mesmo montante a preço superior, demonstrando a valorização das terras no distrito do Jacuizinho. A partilha do Rincão do Caixão é um dos muitos exemplos das dificuldades dos agricultores na divisão das terras entre os numerosos herdeiros das grandes famílias rurais do Rio Grande do Sul. O que fora uma propriedade significativa, poderia tornar-se um reduzido lote de terras em apenas uma geração. Interessante observar que, em Soledade e Sobradinho, as mulheres participavam da divisão das heranças, elas eram proprietárias de terras e algumas não utilizavam o sobrenome do marido.142

Outro exemplo local, ocorrido no final da década de 1930, dessa vez entre os “estabelecidos”143 de Soledade foi a nova perspectiva produtiva do polêmico coronel Cândido

Carneiro Júnior, conhecido por Candoca. Ele havia sido filiado ao Partido Libertador (PL) e tinha sido dirigente da Frente Única Gaúcha (FUG) municipal. Protagonizou o enfrentamento ao interventor federal no Estado, governador Flores da Cunha, e ao presidente provisório da República, Getúlio Vargas, na Revolução Constitucionalista de 1932. Em 1934, ele foi baleado e preso, fugiu da prisão sendo processado e absolvido pela morte de dois militantes do Partido Republicano Liberal (PRL), na véspera da eleição complementar. Contudo, com o Estado Novo, Candoca conseguiu ampliar seus negócios e promover a diversificação agrícola em suas terras. Embora tivesse enfrentado o bloco político no poder, pôde contar com os governos estadual e federal para desenvolver “um importante núcleo agrícola”, no 9o distrito

de Soledade. O projeto, que promovia a reconversão da atividade pastoril para a agricultura mecanizada, desenvolvia o cultivo de alpiste, girassol, milho, feijão, soja, arroz e outros cereais, foi apresentado aos técnicos da Secretaria Estadual e do Ministério da Agricultura que visitaram o local em 1938.144 Os “estabelecidos”, embora com divergências políticas intensas,

mantinham-se com prestígio e capacidade de readaptação.

141 RIO GRANDE DO SUL. Escritura de compra e venda de Crescêncio Gonçalves da Costa e seus filhos a Ignácio Diehl. Cartório do Notário, Comarca de Soledade 30 de junho de 1930. Livro n. 68, p. 45-45v. (APERS). Valor do alqueire: mais de 291 mil réis.

142 RIO GRANDE DO SUL. Escritura de doação inter-vivos de Pedro Ignacio Gonçalves Gonçalves a Salvador Gonçalves da Costa e outros. Cartório do Notário, Comarca de Soledade, 18 de dezembro de 1929, p. 7-8; _____. Livro 58, 30/dez/1920 a 04/out/1922. (APERS)

143 ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 19-50.