• Nenhum resultado encontrado

Instabilidade e Mudança: as crises dos anos 1930

O entendimento das motivações dos agricultores que se identificaram com a religiosidade dos monges barbudos passa pela análise das crises políticas e econômicas dos anos 1930 que incidiram sobre Soledade e Sobradinho. Mas, para além das instabilidades conjunturais, passa pelo exame da dinâmica de poder desenvolvida no Rio Grande do Sul a partir da abolição da escravatura e da proclamação da República e seus reflexos nos núcleos de poder e de produção nos municípios. Nos três exemplos apresentados anteriormente, verifica-se as características da época: crise de superprodução e retração dos mercados consumidores, especialmente os mercados internacionais, com o exemplo da erva-mate; alterações nos meios de produção, com o início dos processos de mecanização da agricultura e a utilização de processos químicos, tendo a produção de fumo como modelo desse fenômeno; a busca de produtos alternativos para o mercado internacional, como o comércio de ágatas e de cristais de rocha de Soledade.

114 RIO GRANDE DO SUL. Justiça Pública. Processo Crime João da Silva, Jacuhy, Sesmaria do Sobradinho, 1930, n. 34, autos n. 53, maço 4. (APERS)

115 RIO GRANDE DO SUL. Justiça Pública. Arquivamento Adão Gonçalves, Sobradinho, maio de 1941. N. 229, autos n. 832, maço 24, estante 41. (APERS)

116 HARNISCH, Wolfgang Hoffmann. O Rio Grande do Sul. A Terra e o Homem. 2. ed. Porto Alegre, Globo, 1952, p. 300-3.

A inserção do Rio Grande do Sul no mercado internacional de produtos agrícolas e o papel do Brasil no cenário econômico e político global acabaram por alterar o modo de vida e as relações de poder mesmo em regiões bastante distantes dos centros urbanos. A década de 1930 iniciou com uma das mais agudas crises do sistema capitalista – uma crise de superprodução iniciada ainda na década de 1920 e manifesta de forma global em 1929 – e terminou com o mais sangrento episódio da história da humanidade, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), alterando de forma significativa o modo de vida das populações. No começo da década, a depressão econômica norte-americana levou consigo diversos países: a produção industrial retrocedeu, a agricultura foi atingida dramaticamente com a redução vertiginosa dos preços dos produtos agrícolas, a diminuição do poder de consumo levou os tradicionais países exportadores de produtos agrícolas, como o Brasil, a enfrentar a superprodução e a ruína econômica de vários setores produtivos.

As crises que afetaram a economia mundial fizeram surgir alternativas políticas radicalizadas e centralizadoras. Para enfrentar os impasses econômicos, foram gestados e ampliados modelos políticos antagônicos entre si: de um lado, o fascismo, e de outro, o comunismo. Ambos propugnavam estados fortes e autoritários. As ideologias fascistas europeias absorveram a mobilização de massas, com grandes manifestações políticas, aos moldes das tradicionais concentrações de trabalhadores anarquistas e comunistas. No período precedente a Segunda Guerra Mundial, o mundo como um todo viveu um momento de radicalidade de opiniões e de intolerância social, com violências, crueldades, humilhações e perseguições que resultaram em milhares de mortos.

No Brasil, a crise econômica e política vivenciada no final da década de 1920 produziram descontentamentos com a República Velha e com o monopólio político de São Paulo e Minas Gerais. Segundo a historiadora Sandra Pesavento117, antes de 1930 tínhamos

“um governo oligárquico e de uma fração das camadas dominantes agrárias” e com a Revolução de 1930, foi constituído “um governo para as ‘burguesias’, no atendimento aos problemas nacionais”. Para atenuar os efeitos da crise de 1929 sobre o principal produto brasileiro de exportação, o café, a República Nova tomou medidas de efeitos imediatos e de longo prazo. Inspirada no processo sulista buscou diversificar a produção agrícola nacional, visando minorar os efeitos produzidos pela dependência quase que exclusiva de um único produto no mercado internacional. O Governo Provisório de Getúlio Vargas118 diversificou os

parceiros comerciais fazendo acordos com outros países que voltavam a despontar no cenário mundial como potências tais como a Alemanha e o Japão. Como apontou Carlos Cortés119,

117 PESAVENTO, Sandra Jatahy. RS: a economia & o poder nos anos 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 49. 118 Getúlio Vargas era governador do Rio Grande do Sul, eleito em 1928, quando foi liderar a Revolução de 1930. Assumiu

como Presidente Provisório da República pela Aliança Liberal.

Vargas deparou-se com “gigantescos problemas econômicos e políticos da nação”. Para a gestão econômica, optou pela experiência política do advogado alegretense Osvaldo Aranha, saído do governo estadual do Rio Grande do Sul. Ele coordenou uma série de medidas radicais de controle da crise internacional como ministro da Fazenda.

No entanto, nem a Revolução, nem a crise alteraram “a hegemonia e predominância do setor agropecuário” no estado, conforme registrou a historiadora Sandra Pesavento120: “A

reiteração do modelo agropecuário estadual implicava a consolidação da noção de constituir- se o Rio Grande em ‘celeiro do país’, portanto integrado ao mercado nacional.” Os gaúchos determinaram o país como o seu melhor mercado consumidor:

O desenvolvimento do capitalismo no Brasil iria [...] cada vez mais acentuar o relacionamento centro-periferia. O Sul agropecuário assumiria um papel fundamental de fornecer alimentos para o consumidor nacional, permitindo, desta forma, que a acumulação pudesse se exercer em função das novas formas produtivas que iriam se impondo no centro. Tal processo, que iria se acentuar após o Estado Novo, neste momento apenas se esboçava.

O governo instalado no Rio Grande do Sul com a Revolução de 1930 manteve a defesa dos interesses agropecuaristas. Como interventor federal, ocupou o cargo o general José Antônio Flores da Cunha121, pertencente a oligarquia estadual e vinculado aos partidos

tradicionais tendo sido eleito para diversos posto como deputado estadual, federal e senador, e na Secretaria da Fazenda assumiu José Antunes Maciel, também vinculado à agropecuária.122

Sandra Pesavento123, ao analisar a economia gaúcha dos anos 1930, chamou a atenção para a

crise persistente da pecuária no início da década, em especial nos anos de 1931 e 1932. A instabilidade nos negócios forçou os pecuaristas a se tornarem produtores capitalistas ou a migrarem para os centros urbanos: vender ou arrendar as terras eram as saídas encontradas pelos fazendeiros. Outra possibilidade era delegar a produção para um administrador ou capataz que tratava com os agricultores que cultivavam a terra ou com os peões que tratavam do gado. As relações de poder estabelecidas entre os trabalhadores rurais e esses intermediários ainda precisam ser melhor conhecidas. A instabilidade rural promoveu também a migração dos trabalhadores, que passaram a buscar nas cidades melhores possibilidades de vida. A economia gaúcha como um todo estava imersa na crise, não somente a pecuária, e

120 PESAVENTO, Sandra Jatahy. RS: a economia & o poder nos anos 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 90, 92. 121 José Antônio Flores da Cunha nasceu em 1880 em Santana do Livramento. Estudou direto em São Paulo e no Rio de

Janeiro e formou-se em 1902. Foi delegado de polícia no Rio de Janeiro em 1903. Estabeleceu escritório de direito em 1904 em Santana do Livramento. Em 1909 foi eleito deputado estadual pelo PRR. Elegeu-se para quatro mandatos federais, um pelo Ceará, antes de 1930. Foi eleito senador em 1928. Foi sub-chefe de polícia do Rio Grande do Sul. Foi intendente municipal de Uruguaiana (1920). Participou da criação da Frente Única integrada pelos partidos Libertador (PL) e Republicano Rio-Grandense (PRR) em 1929. Conforme RIO GRANDE DO SUL. Assembleia

Legislativa/Diretoria de Atividades Culturais. Parlamentares gaúchos. José Antônio Flores da Cunha. Discursos (1909- 1930). Org. Carmen Aita e Gunter Axt. Porto Alegre: ALERGS, 1999. 2. ed, p. 27, 77-8.

122 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit., p. 51. 123 Ibidem, p. 72.

todo setor agrícola sentia os efeitos da “baixa mundial dos produtos agrícolas”, como apontou Isabel Gritti124.

Em paralelo a crise escasseavam os financiamentos para os que permaneciam nas áreas rurais e insistiam na produção agrícola e na criação de animais. Como afirmou Pesavento125: “justamente quando a demanda de capital era maior, face à baixa do preço do

gado e à precária situação da indústria do charque”. Além disso, a atuação combinada dos dois grandes frigoríficos internacionais em atividade no Rio Grande do Sul – Armour e Swift – controlava a pecuária, estabelecendo preços baixos para o gado em pé e determinando o valor das carnes processadas. Os preços continuaram a cair na safra de 1932. Em 1933, o charque ainda mantinha-se como primeiro produto de exportação do Rio Grande do Sul. Em segundo lugar, estava a banha e, em terceiro, o arroz. Isso do ponto de vista do valor das exportações, quando analisada a tonelagem, observa-se que o arroz estava em primeiro lugar, o charque, em segundo, e a banha, em terceiro. A charqueada continuava a ser o principal escoadouro do gado do Rio Grande do Sul, apesar dos frigoríficos. No entanto, essa situação alterou-se entre 1935 e 1937, embora a pecuária gaúcha continuasse em crise, os frigoríficos passaram a ser os grandes compradores do gado e não mais as charqueadas.126

Acompanhou a crise da pecuária uma desvalorização nos preços das terras que chegaram a perder 40% de seu valor. Os criadores se voltavam para o governo central e estadual, como afirmou Pesavento127

: na “costumeira atitude de reivindicarem e esperarem soluções decisivas para atenuar a crise”. Para Garibaldi Wedy128, o setor rural estava

endividado: “Muitos agricultores e pecuarista eram tidos e havidos como insolventes, falidos, quebrados ou atolados.” Assim, já em 1933, o Governo Provisório de Vargas havia regulamentado limites para as taxas de juros visando salvaguardar os agricultores e pecuaristas. Em dezembro do mesmo ano, os débitos dos agricultores foram reduzidos em 50%, os credores recebiam os 50% em apólices do Tesouro Nacional.

Por outro lado, em 1935, o governo Vargas buscava saída para as exportações com as potências que emergiam no cenário mundial: Alemanha, Itália e Japão. O objetivo foi furar a barreira do dólar com o intercâmbio em bases privilegiadas. Com a Alemanha e a Itália conseguiu implementar a troca de mercadorias sem utilização de pagamento em ouro,

124 GRITTI, Isabel Rosa. Imigração Judaica no Rio Grande do Sul. A Jewish Colonization Association e a colonização de Quatro Irmãos. Porto Alegre, Martins Livreiro, 1997, p. 85.

125, PESAVENTO, Sandra Jatahy. RS: a economia & o poder nos anos 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 68-9, 131.

126 Ibidem, p. 109, 111, 117.

127 Ibidem, p. 144-147, 160, 162. 182.

128 WEDY, Garibaldi Almeida. Soledade: fatos políticos, violências e mortes, reminiscências. Década de 1930-1940. Porto Alegre: Editora Renascença, 1999, p. 177-8 O autor cita o Decreto Federal n. 22.626: Lei da Usura e Lei de

estabelecendo o chamado marco e lira “compensados”.129 Na época, o Rio Grande do Sul

exportava para a Alemanha: arroz, banha, couros, fumo, linhaça e madeira. O mercado alemão significava 26% das exportações estaduais.130 Com as dificuldades da pecuária, era

corrente no estado que a indústria, o comércio e os bancos fossem sustentados pelo trabalho agrícola.131 Assim, os anos de 1936 e 1937 foram considerados como de ressurgimento

econômico. As dificuldades provocadas pela crise do café acabaram favorecendo a economia gaúcha, pela necessidade de diversificação da produção nacional.132 O Rio Grande do Sul

manteve a característica de buscar mercados externos, realizando negócios próprios com outros países, como a venda de charque para os Estados Unidos da América e o comércio com a Alemanha.