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Para tirar a força, corta-se barba e cabelo

Cortar a barba e os cabelos dos monges passou a ser um dos objetivos da repressão. Conforme Orlandino, quando achavam um “fora, meio desgarrado” aproveitavam para raspar os pelos. O crente Horácio da Silva suicidou-se por isso: “Cortaram um lado do bigode e um lado da sombrancelha e deram um ‘sal’ no cabelo dele. E ele veio embora e chegô em casa e se matô”. Com mais de 40 anos, não aguentou a humilhação frente à família e aos vizinhos. Acabou tirando a própria vida, ao que parece, com uma pistola. Gregório confirmou que a polícia raspava a barba e cortava os cabelos das pessoas.

A barba e os cabelos compridos seriam um “distintivo dos monges”, explicou Gregório. Para ele, foi “o seu Deca” que disse que “iam perseguir os monges era por causa da barba, assim que o pessoal usasse barba”, porque são João Maria [...] era barbudo”. Os participantes desenvolveram características próprias que os identificavam como adeptos do grupo. Construíram uma marca distintiva ou responderam ao estigma com outras feições. Segundo Erving Goffman 560 o estigma pode servir como identidade social uma vez que

aponta de imediato o portador do atributo e o identifica como uma “pessoa estragada e diminuída”. Não pelo atributo em si, mas pela “linguagem de relações” que estabelece. Essas marcas, preexistentes ou criadas, podem fazer com que os membros dessa “categoria de estigma particular” associem-se em “pequenos grupos sociais”. Para o autor, três tipos de estigma podem ser identificados. São as deformidades corporais, as questões de caráter e as características étnicas:

Em primeiro lugar, há as abominações do corpo – as várias deformidades físicas. Em segundo lugar, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família. Em todos esses exemplos de estigma, entretanto, (...) encontram-se as mesmas características sociológicas: um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que se pode impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus.561

Quais seriam, assim, os estigmas preexistentes que teriam feito com que os monges

barbudos buscassem a associação entre os estigmatizados? Para Gregório, “os contra”

arranjavam “motivos para perseguir”, assim a polícia vinha bater nos monges. Contudo, de

560 GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Tradução de Márcia Bandeira Nunes. Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan, 1988, p. 8, 12, 13 e 32.

tudo o que foi dito “não puderam prová nada daquilo. E não vão prová!” Ao contrário: “De vez em quando, quando não esperava, eles batiam na casa da gente, também. Assaltavam as casa”. Roubaram alguma coisa? “Muitas cosa eles roubaram. [...] Pegaram, levaram.” Orlandino confirmou essa versão, referiu-se ao fato de que os barbudos é que foram roubados: não foram uma, nem duas, mas muitas vezes. Chegaram a fazer denúncia em Soledade, com advogado, entre as vítimas estavam Gregório Costa e Adão Raymundo562.

Apesar disso, não conseguiram solucionar, nem recuperar os prejuízos.

Além dessas questões envolvendo roubos, com acusações de ambos os lados, outros boatos de violências ou orgias sexuais ocuparam as atenções tanto na época, quanto nas versões escritas posteriormente. Andreza Gonçalves Reis, filha de Estácio Gonçalves da Costa e de Delfina Ferreira Gonçalves, e a prima Idalcinéia desmentiram a versão de estupro publicada no livro Os monges barbudos & o massacre do fundão563. Segundo Idalcinéia, as mulheres não foram agredidas pela polícia: “Eles chegavam, podia tê uma menina de casera, podia tê uma moça, podia tê uma mulher, eles não entravam. Dali pra dentro não. Dali eles queriam o chefe, se o chefe não tava, eles não entravam.” Para ela, a maior agressão vinha dos vizinhos: “os de roda da casa [...] paisanos, os [alemão]. Iam lá com 50, conversa, com tiro, a polícia aí vinha. Chegava e não tinha nada.” Lembrou um episódio:

Então uma vez, nós távamo colhendo trigo, o meu pai não tava. O pai dexô cinco peão cortando trigo. Ele foi chamado em sede Aurora, que uma irmã dele ia se operá. Ele foi. E daí foram denunciá que tinha um grupo de barbudo, acima de 500 barbudo, lá na nossa casa. Aí veio a polícia de Soledade, que virgem mãe do céu. Eram dois sobrinho do pai e o meus ermão que tavam cortando trigo. Nóis puxando trigo pra casa.

Explicou Idalcinéia que não era a riqueza ou a pobreza que definia os perseguidores:

As veiz algum rico não era tão aperseguidor (...) porque nóis morava lá pertinho de gente fazendera. Como tinha os Ortiz564, tinha os Rodrigues.

Gente muito cheia da gaita, não é? Fazendero forte, que nunca perseguiram. Ficaram quieto. ‘Para mim eles são bão.’ Diz: ‘Eles não me roubam. Não vem roubá aqui. Não vem pedi. Se eles vem pedi um dinhero emprestado, nóis emprestamo’. Diz: ‘algum vem pagá nóis.’ Tamo certo. Disse um dia o falecido Júlio [Nunes]: ‘Eu quero lidá com deiz barbudo do que lidá com deiz alemão lá das Tuna, mais sem-vergonha e mentiroso.’

Na entrevista, Idalcinéia deu muita ênfase para a perseguição dos “alemães”, em especial os moradores das Tunas, sexto distrito de Soledade. Como foi apontado no capítulo 4, foi um grupo de colonos da localidade que acompanhou a escolta estacionada em Tunas que atingiu e matou André Ferreira França e Antônio Mariano dos Santos. Eram cinco

562 Na lista de presos do Jacuizinho conta Sebastião Raymundo.

563 PEREIRA, André Luiz S. e WAGNER, Carlos Alberto. Os monges barbudos & o massacre do fundão. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 55.

564 Em 1922, Euzebio dos Santos Ortiz foi apontado como um dos grandes pecuaristas do quinto distrito de Soledade por COSTA, Alfredo. O Rio Grande do Sul. V. 2. Porto Alegre: Globo, 1922, p. 229-32.

agricultores – todos naturais de Soledade, que transferiram residência para a colônia de Tunas há mais de 20 anos – que acompanharam o cabo Antônio Porto e o praça Lucas Campos Galvão do 3o regimento da cavalaria de Passo Fundo. Foram liderados por Pedro Guilherme

Simon565 – vinculado à Frente Única Gaúcha e aos movimentos políticos de 1932 de

enfrentamento ao governo Vargas. Compunham o reforço policial: o jovem José Henrique Simon, filho de Pedro Guilherme, Aparício Miranda, seu “peão”, Benedito Paulo do Nascimento e João Elberto de Oliveira – preso em Soledade por outros processos. Embora não identificando a etnia dos perseguidores, Gregório Costa confirmou a persecução dos vizinhos. Ele afirmou que o pessoal foi “muito, muito, muito perseguido”, pela polícia e pela “classe de vizinho”: comerciantes e fazendeiros, que “não entravam na religião, então abusavam”.

Os ânimos ainda estavam exaltados quando o padre do Arroio do Tigre recebeu ordem do governo para percorrer as casas para reconduzir os fanáticos para a vida cotidiana da produção rural. André França ainda estava vivo quando estiveram na casa de seu cunhado e de sua irmã, Estácio Gonçalves da Costa e Delfina Ferreira Gonçalves, no Despraiado. O objetivo do padre era reunir os fiéis para apurar os fatos, rezar o terço, celebrar uma missa e, também, para se certificar se eram da religião ou não. No entanto, uma semana antes, teriam estado ali dois oficiais da Brigada Militar. Seriam o major José Rodrigues e um capitão acantonado no Sítio, ambos procedentes de Santa Maria. O major Rodrigues teria dito: “Tá reconhecido que vocês cuidam de religião. Mas não façam reunião, (...) prá vê se termina com essas coisa.” Novas reuniões, somente se necessário e com ordem escrita.566

Ao receber o padre, Estácio Barnabé - que já havia estado preso em Soledade em março de 1938 -, receoso, tentou explicar: “Seu vigário, minha casa podia estar às ordens, mas não posso, porque tenho ordem do major José Rodrigues, veio de Santa Maria, me proibiu, pra mim não aceitar reunião.” O padre do Arroio do Tigre garantiu que possuía ordens por escrito do governo para fazer reunião de verificação e teria deixado a instrução escrita para Estácio. O encontro foi marcado para o dia 30, dia de Santo Antônio, os vizinhos foram avisados. Muita gente compareceu, trazendo as crianças.

No entanto, no outro dia, a “denúncia” da reunião já havia chegado a Soledade. Vieram um cabo e dois soldados prender Estácio. Ele estava em casa com três filhos, entre eles Andreza, quando foi detido em frente à casa, com um fuzil apontado, enquanto o cabo entrava para vasculhar. Pegaram Andreza, que começou a gritar pela Santa Catarina e a dizer que era da “lei divina”. Assim, como se tivesse proferido palavras mágicas, foi solta e o pai

565 Pedro Guilherme Simon era signatário do Manifesto ao povo do Rio Grande do Sul da Frente Única Gaúcha de Soledade, de 1o de setembro de 1932, justificando as razões para a adesão à causa constitucionalista.

liberado. Foram embora. No caminho, bateram em um rapaz e invadiram a casa de uma mulher aleijada. O “bicharedo estava agitado.”567 Andreza quis “dar parte” para o padre, mas

o pai desaconselhou: “Não adianta, minha filha. Tu não vê que a lei dá força só pros aperseguidor?” A moça pediu para um cunhado, que ia na casa do “chefe” André França, fazer a consulta se ela deveria relatar o acontecido ao padre. O tio Deca disse que sim, que ela denunciasse. Assim ela fez.568

Segundo Idalcinéia, o padre que percorria a região, na década de 1930, vinha de Soledade. No Rincão do Caixão, onde moravam, ele aparecia de três em três meses. Não havia igreja e o padre fazia a reunião dos fiéis. Depois dos confrontos, o padre ainda enfrentava as rusgas religiosas entre italianos e alemães. A velha Idalcinéia lembrava dos detalhes:

esse graduado do Rio de Janeiro569 (...) ordenô o padre, em 90 em 90 dia,

visitar os cantos de pessoal pra fazê... Tinha gente com 20 e tantos anos e não era batizado. Ele então ficô de obrigação, em trêis em trêis mêis, recorrer todo o município. (...) Então lá naquele lugar, ele vinha na nossa casa. E ali vinha o pessoal assisti a missa, fazia encontro pr’ele, batizava e tudo. Em cada um lugar tinha, daí que foi construído essa igreja, porque eles não queriam que fosse na igreja de lá. Os italiano tinham uma igreja ali, quebraram tudo. (...) O que era dono dessa terra aqui. Até cagá dentro da igreja cagaram. Os tal de Krods570. (...) Alemão. Não queriam. Aí os italiano

terminaram com a igreja. Aí pararam sem igreja. Aí formaram aquela igreja ali. Não foram. Nunca foram mais.

Como outros571, Idarsa destacou o papel do frei Clemente que teria confirmado a

religião e substituiu os líderes assassinados, por isso ela guardava uma foto dele no altarzinho de sua casa. Gregório também seguiu no mesmo sentido: “Esse tomô conta da religião. Quando deu-se essa perseguição, o padre tomô conta.” Explicou o entrevistado:

não tinha igreja, ele vinha nas casa rezá a missa [...]. Aqui no finado Alípio, ali no Orlando, ele vinha rezá a missa. Então, ele vinha no Despraiado, o padre. Lá, eu pegava o padre e trazia aqui, e ia no Salto do Jacuí e levava em Soledade. Eu viajava com ele, a cavalo. Então eu levava ele lá, porque ele tinha muito medo dos monge assaltá [...]. O pessoal diz que os monge iam assaltá, iam tomá isso, iam robá. Então que uma boa parte era o medo.

Os episódios narrados acima apresentam algumas das dificuldades da Igreja Católica em estar presente em territórios afastados como os rincões de Soledade e Sobradinho. O

567 Entrevista Andreza Gonçalves Reis. Despraiado, Lagoão, 21 de janeiro de 1990.

568 Entrevista Andreza Gonçalves Reis. Em PEREIRA, André Luiz S. e WAGNER, Carlos Alberto. Os monges barbudos &

o massacre do fundão. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, foi dito que neste episódio a jovem teria sofrido violência

sexual. Ela negou esta versão, dizendo que foi um mal-entendido dos jornalistas que a entrevistaram.

569 Perguntada se o graduado era o interventor federal no Rio Grande do Sul, Cordeiro de Farias, Idalcinéia respondeu afirmativamente.

570 Possivelmente era a família do agricultor Albino Groders [ou Groth] residente na Colônia das Tunas, em Soledade, citado anteriormente.

571 Na entrevista Thomás Desidério Fiúza. Campinas, Tunas, 21 de janeiro de 1990, ele lembrou-se do frei Clemente como alguém que foi ver “se tinha religião”, e do capitão Riograndino, do Rio de Janeiro, que verificou “se não tinha banditismo e ou má ideia”.

estado laico, estabelecido pela primeira Constituição da República (1891), deu ampla liberdade de manifestação para indivíduos e confissões religiosas fazendo com que a Igreja Católica perdesse privilégios da época colonial e imperial, quando era reconhecida como religião oficial do Estado.572 Com a reaproximação entre Estado e Igreja Católica, estabelecida a partir da era Vargas, duas questões passaram a mobilizar a hierarquia católica: maior presença da Igreja na sociedade brasileira e colaboração com o governo atuando para garantir a estabilidade social e tentando conter os movimentos de caráter revolucionário.573 Na fala de

Idalcinéia e Andreza percebe-se as iniciativas da Igreja Católica, através do bispado de Santa Maria e da Igreja Católica do Arroio do Tigre, para dar continuidade ao trabalho de controle dos monges barbudos iniciado com as ações policiais.