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4 A (IN)COMPLETUDE DO ORDENAMENTO JURÍDICO LABORAL: AS LACUNAS

4.4 A interpretação jurídica

Segundo BARROS, “de origem etimológica grega, a hermenêutica tem sua genealogia no deus Hermes, que era o intérprete da vontade divina. Hermenêutica, em um

464 BOBBIO, Teoria do ordenamento..., p. 155. 465 BOBBIO, Teoria do ordenamento..., p. 155. 466 BOBBIO, Teoria do ordenamento..., p. 160.

sentido amplo, quer dizer “compreender o significado do mundo”.467 Em sentido semelhante,

BOBBIO diz que “o que interessa ao jurista quando interpreta uma lei é o seu significado”.468

Pois bem, então, o que vem a ser interpretação jurídica?

SAMPAIO apresenta definição comumente conferida à interpretação: “uma operação de atribuir sentido às suas partes e ao todo de forma a torná-lo inteligível e claro ao vulgo. Em Direito, classicamente, é uma etapa prévia e necessária à aplicação dos enunciados de normas a casos concretos”.469

Como se percebe pela definição lançada, os processos “interpretação” e “aplicação” do Direito são interdependentes, embora a interpretação não pressuponha a consequente aplicação do Direito, e a aplicação requeira interpretação prévia, ao menos (necessariamente), uma pré-compreensão textual.470

A interpretação é a “reconstrução racional do direito objetivo”471, na busca por um

resultado normativo para o fato em exame (real ou hipotético). A aplicação é “o processo de adaptação dos preceitos normativos às situações de fato que se lhes subordinam”.472

Momentos próximos e correlatos, contudo distintos. Ambas localizadas no ínterim entre normas abstratas e situações de fato: “aplicação”, mais próxima destas; interpretação, daquelas.

Com o advento do pós-positivismo jurídico, alguns dogmas da hermenêutica tradicional caem por terra: o dogma da completude do ordenamento jurídico (como visto) e o entendimento de que interpretação jurídica é processo silogístico de subsunção de fatos à norma, bem como a ficção do “neutro julgador”.473

Sob essa ótica, por exemplo, torna-se superado o entendimento tradicionalista de que a interpretação jurídica deve ser direcionada para alcançar “a vontade do legislador”. Tal posição doutrinária (teoria subjetiva) foi sustentada principalmente pela escola exegética,

467 BARROS, Curso de Direito do..., p. 125. 468 BOBBIO, Teoria da norma..., p. 74.

469 SAMPAIO, Adeus aos métodos?... In ROCHA; MORAES, Direito Constitucional..., p. 361.

470 De acordo com PALMER, como a denominação já designa, a pré-compreensão é uma compreensão

pressuposta que consubstancia o primeiro passo para que o interprete possa chegar ao sentido do texto interpretado, “significa que o texto, antes de ser interpretado, tem que ser decifrado e, possivelmente, reintegrado e restituído à sua autenticidade”. AFONSO DA SILVA, com um questionamento, elucida o que seja pré- compreensão: “Como pode um texto ser compreendido, quando a condição para a sua compreensão é já ter percebido de que é que ele fala?” PALMER, Richar. E. Hermenêutica. p. 27-8 apud AFONSO DA SILVA, Interpretação da... In: ROCHA; MORAES, Direito Constitucional..., p. 440.

471 BARROS, Curso de Direito do..., p. 126. 472 BARROS, Curso de Direito do..., p. 126.

473 Segundo BARROS, o questionamento sobre a impessoalidade do juiz é feito pela Escola Realista Americana,

da primeira metade do século XX, que destacada a importância de se analisar o comportamento do magistrado, vez que o Direito é reflexo da realidade social. BARROS, Curso de Direito do..., p. 131.

“para a qual todo direito está na lei”474 e está atrelada ao “originalismo”475, segundo o qual o

que for diverso da intenção dos legisladores representa uma usurpação de poder. Notam-se nessa posição teórica: estrito legalismo; vinculação ao dogma da completude do ordenamento e à doutrina da separação dos poderes; e adoção estrita do método hermenêutico lógico e literal.

Superado também entendimento próximo ao da escola exegética, sustentado pelos pandectistas, no sentido de que a interpretação deve visar alcançar “a vontade do legislador”, contudo não no momento da edição normativa, mas à época da interpretação (isto é, como seria a vontade do legislador, ficticiamente, diante dos novos fatos sociais postos a exame do Judiciário).

Suplantado, ainda, o entendimento de que a hermenêutica jurídica deve buscar o significado da norma na sua vontade (isto é, vontade da própria norma), conforme pugnado pela teoria objetiva. De acordo com MARANHÃO: “não é admissível, da mesma sorte, ‘personalizar’ a lei, atribuindo-lhe uma ‘faculdade volitiva’, o que seria ridículo”.476

No que concerne à superação da ficção do “neutro julgador”, VIANA, referindo-se à atuação do juiz do trabalho durante as audiências, constata:

O próprio juiz traz para a sala de audiências as suas simpatias, os seus preconceitos, os seus humores. Mesmo como simples receptor de informações, não consegue ser neutro. Ele as seleciona, não apenas (ou nem sempre) a partir de critérios racionais, mas também sem perceber que o faz.477

Ora, a tão almejada neutralidade, “entendida como um distanciamento absoluto da questão a ser apreciada, pressupõe um operador jurídico isento não somente das complexidades da subjetividade pessoal, mas também das influências sociais”478. Ou seja, é

algo inalcançável! Como retirar do homem a sua história, suas posições ideológicas, seus desejos, traços de personalidades, enfim, a sua experiência? Assim, chega-se à conclusão de que no processo interpretativo “a compreensão não é uma questão de receptividade passiva”.479

474 Cf. DÉLIO MARANHÃO, in SÜSSEKIND et al. Instituições de Direito..., v. 1, p. 189.

475 Cf. AFONSO DA SILVA, originalismo é o modo de interpretação constitucional que entende o sentido da

Constituição através dos antecedentes históricos. AFONSO DA SILVA, Interpretação da... In: ROCHA; MORAES, Direito Constitucional..., p. 440-1.

476 DÉLIO MARANHÃO, in SÜSSEKIND et al. Instituições de Direito..., v. 1, p. 191. 477 VIANA, Aspectos curiosos... In: Revista do Tribunal..., p. 123-156, p. 127.

478 BARROSO, Fundamentos teóricos....

Nesse sentido, a moderna dogmática jurídica supera o ideal das leis com sentido unívoco, capaz de atribuir uma única solução para cada caso concreto. Por isso, afirma BARROSO: “A objetividade possível do Direito reside no conjunto de possibilidades interpretativas que o relato da norma oferece”.480 Portanto, as diversas possibilidades de

interpretação da norma passam a ser elemento da objetividade do Direito.

Acerca das razões anteriores das quais podem decorrer as possibilidades interpretativas, elucida BARROSO:

Tais possibilidades interpretativas podem decorrer, por exemplo, (i) da discricionariedade atribuída pela norma ao intérprete, (ii) da pluralidade de significados das palavras ou (iii) da existência de normas contrapostas, exigindo a ponderação de interesses à vista do caso concreto. Daí a constatação inafastável de que a aplicação do Direito não é apenas um ato de conhecimento – revelação do sentido de uma norma pré-existente –, mas também um ato de vontade – escolha de uma possibilidade dentre as diversas que se apresentam.481

Contudo, registre-se que o próprio Direito, essencialmente por intermédio de seus princípios normativo-estruturantes482, orienta o jurista (em especial, o juiz) sobre como deve

ser realizada a interpretação, direcionando-o para qual sentido interpretar as normas no exercício de seu papel criativo, sobremaneira de forma a afastar voluntarismos de matizes diversos.

Frisa-se que, embora se reconheça o papel criativo do juiz (exercido com base na interpretação, reverberado no momento da aplicação do Direito, sobretudo quando adequa a lei a novos fatos sociais e integra o ordenamento), não pode ser ele contrário à lei, tal como pugnado pela corrente do direito livre.

Ressalva-se, contudo, a possibilidade de o exercício do poder criativo pelo juiz ser exercido para adequar o texto legal, quando este é contrário à própria Constituição e aos valores que a permeiam, em especial à dignidade humana (fundamento do Estado Democrático de Direito do Brasil) e aos valores sociais do trabalho.

Assim, o poder criativo do juiz está adstrito aos valores positivados na Constituição e atrelados à própria norma, não podendo implicar processo legiferante de novas normas.483

480 BARROSO, Fundamentos teóricos... 481 BARROSO, Fundamentos teóricos...

482 Conforme discorrido no capítulo 2 deste trabalho.

483 Aqui se critica a postura por vezes adotada pelo Tribunal Superior do Trabalho no sentido da criação de

normas jurídicas (por exemplo, a Súmula 331) sem respaldo legal e, mais gravemente, quando implica retrocesso a direitos trabalhista, além de flagrante violação ao arcabouço princípiológico e tuitivo do ramo jurídico-laboral.

Ao Direito do Trabalho interessa muito a interpretação que prestigia seus princípios e os valores que pretende realizar. Portanto, a ele mostra-se perfeitamente compatível o método interpretativo da Jurisprudência dos Valores, isto é, aquele que atribui relevo sobremaneira à dignidade humana como valor supremo. Nesse sentido, AFONSO DA SILVA:

Nessa perspectiva, não terá cabimento a crítica que certa corrente faz à jurisprudência dos valores no sentido de que ela propicia a atuação subjetiva do juiz. Ora, no que tange à proteção dos direitos fundamentais não há que ter limites. A força expansiva dos direitos fundamentais impõe o dever de interpretar a normatividade vigente no sentido mais favorável a sua efetividade.484

Diversos são os métodos de interpretação: literal ou gramatical (que implica a análise morfológica e sintática do texto); lógico ou racional (que estabelece conexão entre a lei objeto de interpretação e outros textos legais); histórico (que leva em consideração o momento histórico pretérito à edição da norma e concomitante a ela, bem como a evolução dos institutos jurídicos); sistemático (aprecia o complexo legislativo semelhante, a fim de auferir as ideias inspiradoras da legislação no seu conjunto).485 Em regra, todos são

perfeitamente aplicáveis ao Direito do Trabalho.

Em verdade, de acordo com COVIELLO, citado por MARANHÃO, “não há uma interpretação gramatical, uma interpretação lógica, uma interpretação histórica ou sistemática: não há várias espécies de interpretação, e sim vários meios de interpretação, que deve ser usado em conjunto e não isoladamente”.486

Particularmente no que tange ao método sistemático, BARROS esclarece que “no campo do Direito do Trabalho, essa ideia consiste no abandono da autonomia da vontade e em uma inclinação para o intervencionismo, em face do princípio da proteção”.487 Assim, o

método sistemático de interpretação deve sempre ser adotado quando da interpretação das normas trabalhistas, já que sem a proteção e a tutela ao hipossuficiente trabalhador a própria razão de ser do Direito do Trabalho esvanece-se.

No caso do Direito do Trabalho, a mais importante diretriz interpretativa consiste no princípio é in dubio pro operario (que será logo analisada), claro que somada aos fins

484 AFONSO DA SILVA, Interpretação da... In: ROCHA; MORAES, Direito Constitucional..., p. 447. 485 Cf. BARROS, Curso de Direito do..., p. 133-4.

486 SÜSSEKIND et al. Instituições de Direito..., v. 1, p. 192. 487 BARROS, Curso de Direito do..., p. 134.

sociais a que a norma se destina (no caso do Direito do Trabalho, a proteção do trabalhador) e às exigências do bem comum, conforme preceituado pelo art. 5º da LINDB488.

No que concerne à previsão da direção interpretativa “de acordo com os fins sociais a que a norma se destina”, trata-se da positivação pelo Direito brasileiro do sistema

hermenêutico teleológico, que, surgindo como reação ao sistema tradicional (fundado na vontade do legislador e da norma), inspira-se na busca da finalidade da norma. Referida linha hermenêutica foi defendida por IHERING, para quem a finalidade do Direito “é a proteção de interesses, que, se opostos, devem ser conciliados com a predominância dos interesses sociais”.489

No que se refere ao norte interpretativo em conformidade com “as exigências do bem comum”, significa o mesmo traçado pelo art. 8º da CLT: “Nenhum interesse de classe ou particular prevalecerá sobre o interesse público”. Adverte-se que o interesse maior na regulação do trabalho humano (via normas imperativas, cogentes, irrenunciáveis e tutelares que reafirmam a dignidade humana) não se restringe ao trabalhador, isolada ou coletivamente considerado, mas é afeto aos interesses da própria coletividade.

Então, o significado das normas trabalhistas, alcançado por intermédio da interpretação, deve estar compatibilizado com o princípio da proteção (especificamente como o seu princípio diretamente derivado in dubio pro operario), com os fins sociais a que a norma se destina (novamente, o princípio da proteção) e com as exigências do bem comum (indiretamente, também no sentido de tutela do homem trabalhador).

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