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4 A (IN)COMPLETUDE DO ORDENAMENTO JURÍDICO LABORAL: AS LACUNAS

4.5 O princípio in dubio pro operario: a diretriz interpretativa jurídico-trabalhista

Tradicionalmente, o entendimento acerca do princípio in dubio pro operario era no sentido de que, nas hipóteses de uma norma ser suscetível a diversas interpretações, dever- se-ia preferir obrigatoriamente o modo de entendimento mais favorável ao trabalhador.490 Por

488 Dispõe o art. 5º da LINB: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e às

exigências de bem comum”.

489 BARROS, Curso de Direito do..., p. 129.

490 De acordo com PINHO PEDREIRA, a distinção do princípio in dubio pro operario em relação aos princípios da

norma mais benéfica e da condição mais benéfica reside no fato de que aquele pressupõe a existência de uma única norma, suscetível de diversas interpretações, e estes exigem uma pluralidade de normas, como fato antecedente. PEDREIRA DA SILVA, Principiologia do Direito..., 2. ed., p. 41.

essa razão, afirma MONTOYA MELGAR491 que esse princípio é “uma regra de hermenêutica

jurídico-laboral”.

Em verdade, em face das mudanças na forma de se pensar e interpretar o Direito, ao princípio in dubio pro operario deve ser atribuído maior extensão conceitual e, consequentemente, de aplicação. Isto é, não deve apenas ser compreendido como uma simples regra de hermenêutica jurídico-laboral (aplicável em caso de dúvida quanto ao alcance significativo de uma única norma), mas, também ser consubstanciado à própria linha mestra (principal diretriz) interpretativa do Direito do Trabalho. Por essa razão, é também adequado o designativo simplificado pro operario (ou pro trabalhador).

Em outros termos, como as diversas possibilidades de interpretação da norma são consideras contemporaneamente como elemento da objetividade do Direito, o emprego do princípio pro operario deve ser amplamente adotado, influindo na técnica de integração do Direito do Trabalho (até mesmo na aplicação da analogia), na interpretação extensiva de normas que traduzem benefícios ao trabalhador e na interpretação restritiva de normas excetivas que precarizam condições de trabalho.

PLÁ RODRIGUES492 afirma que “pode ser aplicado tanto para estender um benefício

como para diminuir um prejuízo” e, colacionando CATHARINO493, completa rememorando a

máxima latina que exprime a mesma ideia: “odiosa restringenda, favorabilia amplianda”. Explica-se: valendo-se do método sistemático, teleológico e histórico, verifica-se que a proteção ao trabalhador é da gênese do Direito do Trabalho, refletindo a unidade de

sentido do seu ordenamento, ou seja, o seu “núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes”.494

Assim, o ordenamento e as normas juslaborais devem ser enfocados – interpretados, integrados e aplicados – com esse mesmo espírito495 (com a mesma ideia

fundante de proteção ao trabalhador), já que é a ratio que lhe atribui unidade e coerência e que se mostra perfeitamente compatível aos valores positivados na Carta Política de 1988.

491 De acordó com PINHO PEDREIRA, o catedrático espanhol Montoya é um autor que ve com reserva o principio

in dubio pro operario. MELGAR, Derecho Del..., 9. ed., p. 211 apud PEDREIRA DA SILVA, Principiologia

do Direito..., 2. ed., p. 41-48.

492 PLÁ RODRÍGUEZ, Princípios de Direito..., p. 51.

493 CATHARINO, Compêndio universitário..., apud PLÁ RODRÍGUEZ, Princípios de Direito..., p. 51. 494 AFONSO DA SILVA, Interpretação da... In: ROCHA; MORAES, Direito Constitucional..., p. 434.

495 JOSÉ AFONSO DA SILVA, referindo-se à hermenêutica constitucional, esclarece que “A hermenêutica do

espírito procura a ideia fundante, a concepção básica que encontra a sua expressão ou incorporação na Constituição”. AFONSO DA SILVA, Interpretação da... In: ROCHA; MORAES, Direito Constitucional..., p. 442.

Expõe ALKMIM, ao se referir à atuação do juiz do trabalho, “alguém menos juiz, e mais cidadão [...] intérprete do caso concreto, não pode se esquecer que (pelo menos, em tese), legislador e Estado protegem aquele que é explorado (ou seja, o trabalhador), devendo na hora de julgar colocar-se na mesma orientação (tutelar)”.496

Contudo, no cotidiano da aplicação do Direito do Trabalho o princípio da proteção normalmente cede espaço a regras e princípios mais particularizados, inquestionavelmente inspirados por ele.

É aí que resplandece o princípio in dubio pro operario, derivado direto do princípio da proteção, específica e fundamentalmente, destinado a desempenhar a função normativo-estruturante da interpretação do Direito do Trabalho.

Importante salientar que, ao dizer que incumbe ao princípio in dubio pro operario a função de servir de diretriz interpretativa do Direito do Trabalho, não se está a negar a função interpretativa comumente atribuída aos princípios, de forma geral. Ao contrário, está a dizer, dada a relevância da interpretação tuitiva das normas e do ordenamento jurídico- laboral, que existe um princípio peculiar destinado a nortear a interpretação desse ramo jurídico.

Ora, se a busca pelo significado das normas e do ordenamento jurídico- trabalhistas (alcançado mediante o procedimento interpretativo) não for no sentido da tutela ao trabalhador e, consequentemente, da impressão de transformações sociais balizadas pela melhoria progressiva e ininterrupta das condições de pactuação da força de trabalho, verifica- se grave ruptura das estruturas normativo-axiológicas do Direito do Trabalho, criando um abismo entre o direito abstrato e o direito aplicado às relações fáticas.

Desse modo, o princípio pro operario deve ser compreendido como a diretriz principiológica atávica ao Direito do Trabalho, proveniente do princípio da proteção ao hipossuficiente trabalhador, fundamentalmente destinado a atuar como diretriz interpretativa geral do ordenamento e das normas juslaborais.

O princípio sob análise atua, também, como substrato de escolha pelos juristas dos diversos métodos interpretativos (como literal, lógico e histórico), norteando-os pela diretriz interpretativa a favor do trabalhador.

Deve ser ainda empregado o princípio em tela na interpretação de textos normativos heterônomos nacionais e internacionais, de cláusulas contratuais, de regulamentos internos empresariais e de sentenças normativas.

A polêmica surge quanto à aplicação deste princípio na interpretação de convenções e acordos coletivos de trabalho. PLÁ RODRIGUES497 explica que BARASSI e

TISSEMBAUM adotam posição negativa, pela inaplicabilidade, sob o fundamento de que desaparece a situação de inferioridade do trabalhador quando ele é representado por organização sindical, o que o faz encontrar em igualdade com o empregador.

PINHO PEDREIRA498 e PLÁ RODRIGUES afiançam a tese da aplicabilidade do

princípio in dubio pro operario também no âmbito das convenções e acordos coletivos de trabalho. Este último considera:

Sabe-se que toda norma trabalhista tem um propósito protetor. Que esse propósito tenha sido concretizado pelo legislador em um texto legal ou pelo sindicato, atuando como representante dos próprios trabalhadores, numa convenção coletiva, não altera substancialmente as coisas. O certo é que a norma está inspirada pela finalidade de proteção ao trabalhador e, em consonância com essa finalidade, a aplicação deve se efetuar com intuito de proteção, ou melhor dito, resolvendo os casos de dúvida em favor de quem devia ser protegido. Não que se suponha que a norma esteja mal redigida ou que padeça de ambigüidade ou de outras deficiências como conseqüência da debilidade do trabalhador individual a quem se vai aplicar a norma. A desigualdade que se deve compensar surge no momento da aplicação e não no da elaboração da norma, pelo que não interessa a forma pela qual tenha sido constituída.499

Acredita-se que a posição de PLÁ RODRIGUES e PINHO PEDREIRA expressa de melhor forma a realidade, visto que, em verdade, nas negociações coletivas verifica-se melhora nas condições de negociação dos trabalhadores que, porém, não é suficiente para pôr fim às desigualdades existentes, em especial diante do cenário sindical contemporâneo pátrio. Soma-se a esse argumento o fato de que o momento de criação normativa autônoma não se confunde com o momento de aplicação dessas normas. Ademais, como Direito do Trabalho deve ser compreendido como unidade orgânica, que possui dinâmica normativo-estruturante própria e peculiar, a qual abarca as normas negociadas autonomamente, inquestionável a aplicação do princípio in dubio pro operario como diretriz geral de interpretação também das convenções e acordos coletivos de trabalho.

É de ressaltar que não se aplica nas relações laborais o princípio do direito privado

favor debitoris. Ou seja, na ocorrência de dúvida deve-se favorecer o devedor, que, na generalidade das relações civis e comerciais, é o mais fraco e necessitado. Nas relações

497 PLÁ RODRÍGUEZ, Princípios de Direito..., p.52.

498 PEDREIRA DA SILVA, Principiologia do Direito..., 2. ed., p. 54. 499 PLÁ RODRÍGUEZ, Princípios de Direito..., p. 52.

laborais, ocorre comumente o contrário500, posto que o trabalhador, cuja situação de debilidade

econômica diante do empregador é visível, apresenta-se, na maioria dos casos, como credor. Ressalte-se que mesmo quando o trabalhador figurar na relação como devedor prevalece o princípio in dubio pro misero, já que a proteção é para a parte débil da relação, independente de que posição se encontre, seja credor ou devedor.

Efetuando-se, todavia, uma comparação entre o princípio in dubio pro misero e o semelhante aplicado ao Direito Penal, in dubio pro reo, percebesse que ambos têm uma função objetiva similar, qual seja, favorecer a parte hipossuficiente da relação, atuando, inclusive, na harmonização e na inversão do ônus da prova no campo do respectivo direito processual.

Adequada e oportuna, portanto, a aplicação do princípio in dubio pro operario na inversão do ônus da prova, mediante o estabelecimento de presunções favoráveis ao trabalhador e, destarte, considerando a aplicação desse princípio extensivo ao domínio do Direito processual do Trabalho.501

É possível, então, sustentar que o princípio in dubio pro operario situa-se no ponto em que se dá o encontro entre o direito material e o processual do trabalho (“no meio do caminho”), uma vez que a hermenêutica jurídica realiza o passo do direito material abstrato (previsto na norma) para o direito material concreto (aplicado ao caso real, muitas vezes, no bojo do processo judicial).

VIANA enuncia: “Se o processo vive para o direito material, este sobrevive, em boa parte, graças àquele, e essa relação de cumplicidade faz com que vários princípios que os informam se alimentem uns dos outros, numa relação contínua de causa e efeito”.502 Completa

ainda o seu entendimento: “Aliás, certos princípios de direito material praticamente só atuam no processo, como é o caso do in dubio pro misero”.503

500 PINHO PEDREIRA explicita: “No Direito do Trabalho cabe, pois, não só rejeitar o princípio do direito privado

[in dubio pro debitore] mas, em virtude do mesmo processo lógico que justifica tal princípio, deve ser admitido o outro princípio, que frequentemente resultará antagônico, do in dubio pro operario”. PEDREIRA DA SILVA,

Principiologia do Direito..., 2. ed., p. 43.

501 No sentido de extensão do princípio in dubio pro operario ao Direito Processual do Trabalho, RUPRECHT,

La autonomia... apud PEDREIRA DA SILVA, Principiologia do Direito..., 2. ed., p. 44. PEDREIRA DA SILVA

entende acertadamente ser inaplicável ao processo do trabalho o art. 620 do CPC (“quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”), podendo ser mais gravosa a execução ao empregador-devedor quando assim fizer necessário.

502 VIANA, A proteção social do... In: PIMENTA, et al Direito do Trabalho..., p. 178. 503 VIANA, A proteção social do... In: PIMENTA, et al Direito do Trabalho..., p. 178.

Destarte, adentra-se na grande celeuma que circunda o princípio em comento: o princípio in dubio pro operario também se aplica em matéria probante; isto é, pode auxiliar o juiz na apreciação de fatos e provas?

DELGADO sustenta pela inaplicabilidade do princípio em matéria probatória, sob o fundamento de que esta aplicação entra em choque com o princípio constitucional do juiz natural.504 Com embasamento teórico diverso, mas no mesmo sentido, VASQUEZ VIALARD

considera que no direito processual do trabalho existem “regras do jogo” que põem as partes “no mesmo pé de igualdade” e que suposta inferioridade do empregado pode até resultar em dificuldades de acesso a uma boa defesa, mas que tal motivo não é relevante para afastar regra processual.505

Em que pese a autoridade dos tratadistas que sustentam a tese da não aplicação do referido princípio em matéria probante, tal aplicação em nada viola a figura do juiz e sua função judicante; apenas o orienta no caso de dúvida autêntica e real quanto às provas colacionadas aos autos. Esta orientação principiológica se justifica diante da constatação de que a desigualdade do trabalhador em relação ao empregador não desaparece em juízo, em particular no que diz respeito a sua menor capacidade de assessoramento jurídico, às dificuldades para a obtenção de provas e à menor capacidade para suportar as delongas processuais.

Não se pode entender o processo, mormente o trabalhista, distante de todas as circunstancias que o permeia. VIANA enuncia: “É por isso que a relação processual sofre as mesmas pressões que afetam o vínculo material. Se o ideal de tutela se enfraquece aqui, também se fragiliza ali – afetando todos os princípios que lhe são conseqüentes”.506

Outrossim, a regra processual trabalhista do onus probandi em nada auxilia na eliminação das desigualdades encontradas também no Direito Processual do Trabalho, já que o art. 818 da CLT determina a incumbência do ônus a quem efetua as alegações (na maioria

504 Assim dispõe o autor: “Ora, o caráter democrático e igualitário do Direito do Trabalho já conduz ao

desequilíbrio inerente às suas regras jurídicas, a seus princípios e institutos, sendo que o Direito Processual do Trabalho também já produz a necessária sincronia entre esse desequilíbrio e a teoria processual do ônus da prova e demais presunções sedimentadas favoráveis ao obreiro, características desse ramo jurídico. Não se estende, contudo, obviamente, o mesmo desequilíbrio à figura do juiz e à função judicante – sob pena de se comprometer a essência da própria noção de justiça”. Em verdade, o autor vai mais além, pela redundância do princípio in

dubio pro misero, já que, segundo ele, a diretriz do princípio seria abrangida pelo princípio da norma mais favorável na dimensão interpretativa. DELGADO, Princípios de Direito..., p. 46, 84.

505 VILARD, Antônio Vasquez. Tratado de Derecho del Trabajo. Editorial Astrea, Buenos Aires, 1982, tomo II,

apud PEDREIRA DA SILVA, Principiologia do Direito..., p. 55.

das vezes, o trabalhador-autor), cabendo ao empregador-réu a prova dos fatos impeditivos, extintivos ou modificativos (arts. 333 do CPC c/c 769 da CLT).

PINHO PEDREIRA arrola GIGLIO507 e COQUEIJO COSTA508 como defensores da

aplicação deste princípio em matéria probatória, asseverando:

Ora, a debilidade econômica e jurídica do trabalhador justifica o tratamento privilegiado que se lhe dá no Direito do Trabalho material. Por que então passar a tratá-lo de modo igual ao empregador no Direito do Trabalho processual, não obstante a mesma inferioridade e quando esta repercute, no processo, tanto que o próprio Vialard reconhece a possibilidade de ela dificultar o acesso do empregado a uma boa defesa? Estamos de acordo com Wagner Giglio quando assevera que “o caráter tutelar do Direito Material do Trabalho se transmite e vigora também no Direito Processual do Trabalho”. E assim é porque, nas palavras de Coqueijo Costa “o processo não é um fim em si mesmo, mas o instrumento de composição de lides, que garante a efetividade do direito processual, por seu caráter instrumental, deve saber adaptar-se a essa natureza diversa.509

PINHO PEDREIRA expõe:

A nossa experiência judicante leva-nos a dar razão a Rubinstein, principalmente quando ele levanta a hipótese de paridade de provas, que acha deva ser solucionada pelo juiz fazendo apelo ao princípio in dubio pro operario. Diversas vezes julgamos casos em que nos defrontamos com “prova empatada”, isto é, em que não houve negligência do empregado, pois desincumbiu-se do seu ônus, levando a juízo testemunhas no mesmo número e de credibilidade igual às apresentadas pelo empregador, que ofereciam versão inteiramente contrária à das testemunhas do trabalhador, em processos nos quais não havia possibilidade de outra espécie de prova. Pelas maiores dificuldades com que arca o empregado para a produção de provas, numa situação como esta, a dúvida gerada no espírito do julgador há de ser dirimida pro operario e foi sempre neste sentido o nosso pronunciamento.510

Diante da dificuldade para o empregado de colacionar aos autos provas, dados, informações e documentos capazes de demonstrar de forma inequívoca sua realidade contratual, pelo fato de a proteção verificada no direito material também ter de ser ampliada ao direito processual do trabalho, para os casos de “prova empatada” e também como diretriz para a inversão do ônus da prova em circunstâncias em que o empregado não detenha aptidão para a prova, compartilha-se o posicionamento de PINHO PEDREIRA, GIGLIO, COQUEIJO COSTA e VIANA, qual seja, pela aplicação do princípio in dubio pro operario no que concerne às matérias probantes.

507 GIGLIO, WAGNER. p.197. apud id idem.

508 COSTA, Coqueijo. Direito Processual do Trabalho. 8. ed. São Paulo: LTr, 1993, p. 105 apud PEDREIRA

DA SILVA, Principiologia do Direito..., p. 55.

509 PEDREIRA DA SILVA, Principiologia do Direito..., p. 55. 510 PEDREIRA DA SILVA, Principiologia do Direito..., p. 58.

O princípio in dubio pro operário deve ser aplicado em matéria probante em conformidade com outro princípio geral orientador do direito, o da proporcionalidade, tomando-se por base, inclusive, o grau da desigualdade econômica, intelectual e cultural do trabalhador. Isto quer dizer que, em se tratando de um trabalhador com maiores desigualdades diante do empregador (principalmente, econômicas e de conhecimento), esta regra deverá ser aplicada com maior intensidade.

5 A PLURALIDADE DE ORDENAMENTOS JURÍDICOS: A INTER-

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