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5 A PLURALIDADE DE ORDENAMENTOS JURÍDICOS: A INTER-RELAÇÃO ENTRE

5.1 O universalismo e o pluralismo jurídicos

Durante muito tempo, o universalismo jurídico, manifesto pelo ideal de um direito universal único, persistiu no pensamento jurídico ocidental, sobremaneira pelo prestígio a ele atribuído, advindo do Direito romano e, posteriormente, do Direito natural. Eis aí a gênese do monismo jurídico.511

Para os jusnaturalistas, o monismo jurídico é atrelado à noção de existência de um direito universal único, fruto não da vontade, mas da revelação do direito natural à razão humana. De outro lado, os direitos particulares dos diversos povos e épocas “não eram outra coisa senão especificações históricas”.512

Já a origem do pluralismo jurídico, compreendido como a existência concomitante de diversidade de ordenamentos jurídicos, conforme anota BOBBIO, pode ser auferida de dois momentos (ou processos) históricos.513

A primeira concepção do pluralismo jurídico, de caráter estadista, remonta ao surgimento do historicismo jurídico que sustentava a existência, em contraponto ao direito natural comum e universal, de diversidade de ordenamentos, tanto quanto for o número de nações no mundo, que exprimem o seu gênio jurídico (sua personalidade) ao ordenamento estatal.

Com o advento do positivismo jurídico, fundado na concepção do direito apenas quando emanado da autoridade competente, o pluralismo passa a prevalecer. Por certo, o próprio positivismo jurídico estrutura-se na possibilidade da existência de pluralidade de ordenamentos, vez que entende que cada poder soberano é independente e detém o poder de criação de ordenamentos jurídicos próprios e autônomos. Segundo MURADAS, a crença ns exclusividade da produção estatal foi reforçada no plano internacional pela afirmação da

511 Cf. BOBBIO, Teoria do ordenamento..., p. 161. 512 BOBBIO, Teoria do ordenamento..., p. 161. 513 BOBBIO, Teoria do ordenamento..., p. 162-3.

soberania estatal no modelo wesphaliano, na medida em que tal sistema funda-se no princípio da soberania territorial e dele deriva o reconhecimento da igualdade formal entre Estados.514

O “positivismo identifica-se com a concepção voluntarista do Direito”515, na

medida em que reconhece o direito não como fruto da razão, mas como vontade.

Neste esteio, para esse entendimento do direito, somente haveria possibilidade de se falar em unidade de ordem jurídica caso se conceba apenas um poder soberano universal.516

Já o segundo momento do pluralismo jurídico, chamado de “institucional”, é assim denominado por BOBBIO “porque a sua tese principal é a de que existe um ordenamento jurídico onde existe uma instituição, ou seja, um grupo social organizado”.517

As correntes que lhes deram origem foram as sociológicas e as antiestatais, atreladas à escola do direito livre, e estão ligadas ao entendimento de ser possível a co- existência de diversas ordens jurídicas oriundas não só do Estado, mas também de toda a sociedade. Logo, para essa teoria, a existência de pluralidades de ordenamentos jurídicos seria verificada não só no plano interno518 dos Estados, mas também na ordem jurídica

internacional.

514 Diz ainda, a autora: “Nestes termos, é assegurada a não intervenção estatal em assuntos internos de outros,

com o que impõe o respeito recíproco e a independência dos Estados soberanos”. MURADAS, O princípio da..., p. 101.

515 BOBBIO, Teoria do ordenamento..., p. 162. 516 BOBBIO, Teoria do ordenamento..., p. 163.

517 BOBBIO, Teoria do ordenamento..., p. 163. A teoria do direito como instituição contrapõe-se à teoria

normativa do direito, entendendo o direito não como norma (ou seja, que o “fenômeno originário da experiência jurídica é a regra de conduta”), mas como instituição, surgida no âmbito da sociedade civil, como fenômeno social. Em linhas gerais, para este entendimento haverá direito sempre que houver grupos sociais organizados, isto é, grupos que suplantaram a fase inorgânica e que, portanto, passaram à fase de institucionalização (inclusive, grupos organizados de delinqüentes e a família). Mas, ao contrário, não haverá direito em grupos sociais inorgânicos (por exemplo, classes sociais não organizadas). A crítica que se faz a esse entendimento é que combate-se propriamente a teoria estadista do direito, ao invés da teoria normativa do direito (teoria esta que admite a pluralidade de centros de positivação jurídica e que, em princípio, não coincide, na sua acepção ampla, ao estadismo jurídico). Outra crítica que se faz a teoria do direito como instituição é que as normas (regras de conduta) antecedem as instituições (grupos sociais organizados). Em verdade, são as regras de conduta que possibilitam a transformação dos grupos de inorgânicos em grupos organizados. E, de outro lado, nem todas as regras de condutas são suficientemente hábeis a constituir uma instituição. Cf. BOBBIO, Teoria da norma..., p. 28-37.

518 Aqui se enquadra o entendimento de REALE no que se refere à pluralidade de ordenamentos na ordem interna,

porquanto afirma que “há, em suma, todo um Direito ‘grupalista’, que surge ao lado ou dentro do Estado”. O autor sustenta o seu entendimento no que se refere à pluralidade de ordens jurídicas no plano interno dos Estados: “Como contestar a juridicidade das organizações esportivas? Não possuem elas uma série de normas, e até mesmo de tribunais, impondo a um número imenso de indivíduos determinadas formas de conduta sob sanções organizadas? Lembre-se outro fenômeno do maior alcance, que é o profissional ou sindical, estabelecendo, no campo das atividades de classe, um conjunto de normas que também são protegidas por sanções organizadas. Parece-nos, pois, procedente a teoria da pluralidade das ordens jurídicas positivas”. Salienta-se que REALE fundamenta a teoria da pluralidade dos ordenamentos jurídicos internos em uma

gradação de positividade jurídica, “ou seja, diversos graus de incidência do Direito positivo, quer em extensão, quer em intensidade, devido exatamente à maior ou menor organização da sanção, sua objetividade e eficácia”. Então, para o autor, o ordenamento jurídico do Estado se distinguiria das demais ordens jurídicas (por exemplo, as sindicais, as esportivas e a canônica), já que só o Estado representaria o ordenamento jurídico soberano, ao qual todos recorrem para dirimir conflitos recíprocos. Cf. REALE, Fontes e modelos do Direito..., p. 77-78.

Contudo, em anteposição ao pluralismo jurídico, ressurge, notadamente após a Segunda Guerra Mundial e a criação das Nações Unidas, no seio do positivismo jurídico, a concepção da universalidade do direito (não aquela, fruto da razão e do estado de natureza, como pugnado pelos jusnaturalistas), mas como fruto do desenvolvimento histórico do próprio positivismo. Essa nova compreensão do monismo jurídico estaria atrelada à ideia de criação de um direito positivo unitário, oriundo de um Estado mundial único.519

Especificamente no que concerne à construção da ordem jurídica internacional, esse entendimento do monismo questiona a própria imprescindibilidade da soberania estatal, sustentando a doutrina do Direito Internacional Público que “o fenômeno jurídico internacional pode até mesmo prescindir da participação volitiva direta de um Estado particular”.520 Nessa mesma linha, BARROSO:

No plano internacional, vive-se a decadência do conceito tradicional de soberania. As fronteiras rígidas cederam à formação de grandes blocos políticos e econômicos, à intensificação do movimento de pessoas e mercadorias e, mais recentemente, ao fetiche da circulação de capitais. A globalização, como conceito e como símbolo, é a manchete que anuncia a chegada do novo século.521

Nota-se que a concepção monista do direito encontra adeptos na corrente jusnaturalista e na positivista. Sintetizando: naquela, o monismo é fundamentado em um direito natural universal, que inspira o direito positivo de todas as nações e em diferentes momentos históricos; neste, ele é alicerçado também em um direito universal, contudo positivo, fruto da evolução história do próprio positivismo jurídico dos diversos Estados e emanado de uma única autoridade mundial suprema.

De outro lado, a concepção pluralista do direito também conta com adeptos tanto na corrente jusnaturalista quanto na positivista. Na jusnaturalista, o pluralismo jurídico por si só decorre da concepção de duas espécies de direitos, o natural e o positivo. No positivismo, pela existência de distintas ordens estatais soberanas, que também se obrigam no plano do Direito Internacional Público ou, ainda, pelo entendimento de que são jurídicas outras ordens oriundas da sociedade e independentes do Estado (e.g. da Igreja e dos grupos sociais, incluindo as profissionais classistas).

519 BOBBIO, Teoria do ordenamento..., p. 164-5. 520 Cf. MURADAS, O princípio da..., p. 105.

521 Completa o autor: “Como o comércio internacional não tem fronteiras, tende a ser regulado por regras de

fontes não nacionais, denominadas lex mercatoria, que consagram o primado dos usos no comércio internacional e se materializam também por meio dos contratos e cláusulas-tipo, jurisprudência arbitral, regulamentações profissionais elaboradas por suas associações representativas e princípios gerais comuns às legislações dos países”. BARROSO, Fundamentos teóricos...

Diversos podem ser, portanto, os enfoques fundamentadores para se sustentar o pluralismo ou o monismo jurídico, encontrando terreno fértil de debates nos domínios do Direito Internacional Público, principalmente com o fito de justificar e compreender o modo como se procedem as relações cada vez mais intensas entre ordem estatal e a internacional, bem como entre as respectivas normas.

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